Por Jerri Almeida
A filosofia nas suas origens gregas buscou interpretar o enigma da vida numa dimensão gnoseológica e ontológica. Das interpretações míticas iniciais, aos vôos consideráveis da razão, os filósofos gregos ampliaram os modelos explicativos da vida e da própria natureza humana.
Nos situando em termos históricos, a filosofia surge em Mileto – uma das colônias jônicas que era um porto marítimo – na Grécia, no final do século VII e início do século VI a.C. O termo “filósofo” surge no século V a.C. criado por Pitágoras que, em sua escola, ensinava política aos discípulos, que o consideravam um homem “sábio”. Ele, entretanto, preferia ser chamado não de sábio, mas de “amigo da sabedoria” (Filo = amigo; sofia = sabedoria). A filosofia é usada no sentido etimológico do termo. Mas, na verdade, devemos nos referir sempre a “filosofias” – concepções diferentes sobre a realidade.
As filosofias gregas buscaram, portanto, explicar e esclarecer a realidade e, nesse sentido, destaca-se o pensamento dualista onde trabalha-se com questões abertas, isto é, não dogmáticas, sobre as quais se levantavam hipóteses. Nessa vertente de pensadores gregos, situa-se Platão (428-347 a.C.). A filosofia de Platão apresenta um modelo gnoseológico onde o físico só se explica pelo metafísico, transcendente, supra-sensível, inteligível.
Allan Kardec, na introdução (IV) de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” considera as idéias de Platão (e de Sócrates) como precursoras dos ensinos cristãos e, por conseguinte, do espiritismo. Daí, a necessidade de um rápido “mergulho” no cerne – a nosso ver – do pensamento platônico, objetivando chegarmos a algumas conexões com o pensamento espírita.
1-O dualismo platônico
Segundo o escritor e filósofo Tiago Lara: “Em Platão estrutura-se, pela primeira vez, de maneira sistemática, a justificativa filosófica de cunho metafísico, que se tornará paradigmática no Ocidente.” [1] Embora Platão não ter usado a palavra “metafísica” que não existia em sua época, ele busca, através de seus diálogos, a realidade causal, o mundo das justificativas e, portanto, o mundo real.
Dessa forma, chega a conclusão da existência de dois mundos: o Mundo das Idéias e o Mundo Sensível. O Mundo das Idéias em Platão – e “idéia” aqui não deve ser confundida com “conceitos de nossa mente” – é um mundo supramaterial, eterno, onde reina a verdade, a perfeição e a suprema importância do Bem. Esse mundo representaria a “forma” do mundo material, pois para tudo que existe aqui, haveria um modelo causal e perfeito no Mundo das Idéias.
O Mundo Sensível representaria, por sua vez, o mundo material com as imperfeições que lhes são inerentes. É o mundo ilusório, dos sentidos, mutável, perecível e caótico. Logo, um reflexo imperfeito do Mundo das Idéias. Nesse sentido, o conhecimento representaria uma importante via de transição, para o ser humano, da ilusão para a realidade, onde a idéia do Bem consubstanciaria o auge desse processo.
Temos, em linhas gerais, o dualismo platônico do espírito e do corpo, o imortal e o temporário, o incorruptível e o corruptível.
2-A alegoria da caverna
No livro VII da República, Platão narra o seu famoso Mito da Caverna:
Pensemos em uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada, nem locomover-se, forçados a olhar apenas a parede do fundo, e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do Sol. Acima do muro, um raio de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, ignorado pelos prisioneiros, há toda uma vida exuberante. Pessoas livres que transitam pelos campos verdejantes do Bem...
Um dos prisioneiros, porém, impregnado de curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna, no primeiro instante, tem os olhos ofuscados pela luminosidade do Sol, com a qual não estão acostumados; pouco a pouco, habitua-se à luz e começa ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja ficar longe da caverna e só voltará a ela se for obrigado, para contar o que viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era íngreme e a luz ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que habituar-se à luz. De volta á caverna, o prisioneiro será desajeitado, não saberá mover-se nem falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna.
A caverna, diz Platão, é o mundo sensível onde vivemos. O raio de luz que projeta as sombras na parede é um reflexo da luz verdadeira (as idéias) sobre o mundo sensível. Somos os prisioneiros. As sombras são as coisas sensíveis que tomamos pelas verdadeiras. Os grilhões são nossos preconceitos, nossas imperfeições. O instrumento que quebra os grilhões é a dialética, o conhecimento em conjunto com as ações enobrecedoras. O prisioneiro curioso que escapa é o indivíduo que despertou sua consciência para os valores da alma. A luz que ele vê é a luz plena do Ser, isto é, o Bem, que ilumina o mundo inteligível (espiritual) como o Sol ilumina o mundo sensível (material). O retorno à caverna é a expressão da necessidade de divulgar o esclarecimento e auxiliar o próximo, isto é, o princípio da “cooperação”. O tempo despendido na criação do instrumento para sair da caverna representa o esforço do espírito humano para produzir a "faísca" do conhecimento verdadeiro pela "fricção" dos modos de conhecimento e pelo “burilamento” de si mesmo. Conhecer é, portanto, um ato de libertação e de iluminação. [2]
Segundo Emmanuel esse processo de transição da caverna para à luz exige: “acurado aprimoramento individual para a travessia da estreita passagem de acesso às claridades da sublimação.”[3]
3-Ante as portas livres
As questões apresentadas por Platão, realmente, estão muito próximas do pensamento espírita. A gnoseologia espírita, entretanto, avança de forma mais ampla, situando o homem não somente na condição de espírito imortal e pluriexistencial, mas, fundamentalmente, como agente co-criador de seu próprio destino. É verdade que Platão também havia se referido em sua teoria da “reminiscências” sobre a reencarnação, asseverando, entre outras coisas, que a reminiscência é a recordação da experiência da alma no período em que estava no mundo da idéias e que, portanto, “viver é recordar”.
Para o Espiritismo, o Mundo Espiritual é o nosso mundo causal, donde viemos e para onde retornaremos após a experiência no mundo corporal. Por outro lado, o mundo material não deve ser visto como “um vale de lágrimas”, mas essencialmente, como um laboratório ou educandário onde estamos nos aprimorando na arte de desenvolvermos nossas potencialidades criadoras na área da inteligência e dos sentimentos.
Ainda, de modo geral, estamos presos à várias “cavernas”. Todavia, faz-se imprescindível nos libertarmos daquela que restringe o homem à uma realidade puramente material. Emmanuel no prefácio do livro “Libertação” de André Luiz , reporta-se a uma antiga lenda egípcia, certamente, uma variação do mito da caverna, intitulado-a “Ante as portas livres”. Refere-se a história de um “peixinho vermelho” que vivendo entre uma comunidade de peixes nas profundezas de um lago, um dia descobre a superfície e espanta-se com o novo mundo, até então inimaginado. No entanto, ao retornar ao seu reduto e contar a preciosa descoberta é ironizado e desacreditado.
De tempos em tempos, a criatura humana tem recebido informações a respeito de uma realidade supramaterial, extrafísica ou espiritual, para abandonarmos a caverna reducionista da concepção materialista. Não fomos criados para viver somente no limite de nossas percepções físicas, enclausurados numa dimensão só material. O espiritismo confirma que, filosoficamente, o homem é um ser transcendente que está no mundo, mas, não é do mundo. É um argonauta da evolução que viaja pelo mundo sensível, através de múltiplas reencarnações, objetivando lograr, com isso, a plenitude, a felicidade e a paz.
Vocabulário
- Gnoseologia: (Gnosis, conhecimento, e Logos, estudo) Teoria do conhecimento.
- Ontologia: (Onto = Ser, Logos = estudo) Estudo do Ser no sentido metafísico.
- Supra-sensível: o que transcende (está além) ao físico, material.
Bibliografia
1- LARA, Tiago Adão. A Filosofia nas suas Origens Gregas. Petrópolis, RJ. Vozes, 1989.
2- PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. Coleção Os Pensadores. Livro VII. São Paulo, Nova Cultural, 1997.
3- LUIZ, André. Libertação. Psicografado por Francisco Cândido Xavier. 12ª ed. Rio de Janeiro, Feb, 1986.
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