Pular para o conteúdo principal

CRAVO E IPÊS*

 

Por Marcelo Henrique

O velho cravo guardado, renitente, resgata o plantio e a colheita dos ideários dos homens livres e fortes, pela democracia, porque as sementes, as de lá e as de cá floresceram…

 **

 Cinquenta anos do 25 de abril de 1974. A Revolução dos Cravos, portuguesa, representou a libertação de uma sociedade do jugo da ditadura de Salazar, vigente desde 1933. Quarenta e um anos foi o período português. Em similaridade, o período ditatorial brasileiro foi, sabidamente, menor, de vinte e um anos (1964-1985), considerando a saída dos militares dos mais altos cargos executivos civis e a realização de eleições para presidente e vice – ainda indiretas, pelo Congresso Nacional brasileiro. No nosso caso, a “libertas quae sera tamen” só se consolidou com as eleições de 1989, que marca a completa redemocratização de nosso país.

Dos craveiros, portugueses, vieram os cravos, flores vermelhas para simbolizar as lutas, os sofrimentos, e a libertação. Dos ipês, brasileiros, flores multicoloridas, representando tanto as dores, agruras e dissabores de um povo sujeito a um regime espúrio, violento e castrador de liberdades, quanto as esperanças, venturas e amores de uma gente ordeira e pacífica.

Ser uma democracia, no entanto, não é tão-somente votar e ser votado, em eleições periódicas. É muito além. Simboliza que, tanto nos mínimos atos dos Poderes Públicos, quanto nas ações macro, que envolvem toda a população de um país, quanto reforçam a soberania estatal no contexto internacional, não podem nem devem ser toleradas ações despóticas, ditatoriais e antidemocráticas.

É justamente por isso que a democracia é uma flor a ser regada todos os dias, para que nos lembremos, sempre, dos tempos idos, desastrosos e asfixiantes, sem permitir qualquer brecha para o retorno do absolutismo, do despotismo e da autocracia. Como disse Leonel Brizola, nosso povo brasileiro diz um “ROTUNDO NÃO” para a ditadura.

É justamente por isso, tanto no nosso país, quanto no contexto mundial, mas especialmente aqui, porque falamos do nosso “quintal”, a democracia DEVE ESTAR SEMPRE NA RUA, isto é, deve ser motivo de observação, vigilância, interesse, zelo e ações coletivas sociais. Não pode ficar, o estado democrático, em dormência, como se tudo funcionasse bem e às mil maravilhas, sem ameaças de todo tipo, vindas de mentes que projetam suas intenções para o coletivo, e alcançam as massas passíveis de manipulação e influência direta.

Recentemente, inclusive, tais ameaças encontraram ressonância em cidadãos que, insuflados por “influencers”, reviveram bordões injustificáveis como “Ditadura é melhor”, “Militares Já”, “Voto impresso e auditável”, “Controle da opinião”, “Ordem e Progresso”, etc.

Começo pelo último: evidentemente o lema “Ordem e Progresso”, insculpido na Bandeira Nacional, nosso estandarte maior, é um retrato conjuntural da época e um efeito direto das ideias de Auguste Comte. Todavia, confundir os ideais de obediência à lei e crescimento coletivo, enquanto país com a abolição de direitos, o poder e o controle da força, as restrições aos direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição da República, é ação de alguns (ou até de um número significativo de cidadãos!) que, das duas uma, ou não conhecem, não viveram ou não se recordam do Estado de Exceção (1964-1981) e seus danosos e violentos efeitos; ou, então, é uma intenção pérfida, raciocinada, intencional de impor uma ideologia para toda a população, sem respeitar as diferenças que a democracia consagra.

Em relação ao controle de opinião, pasmem os que se arvoram em levantar este pequeno, injustificado e deplorável estandarte, como direito de expressão, a própria ordem jurídica brasileira, escudada em primeiro plano pela Constituição Federal e secundada por normas específicas, já prevê a liberdade de consciência, a liberdade de expressão (por todos os meios possíveis) e a submissão ao Judiciário de afrontas, danos ou ameaças a tais liberdades. Censura não, jamais!

Quanto à ode à Ditadura e ao Militarismo, além dos que eventualmente possam ter sido membros das Forças Armadas ou das Polícias Militares, ou estejam servindo a tais instâncias, atualmente e, com isso possam justificar certo apreço com a “gestão militarizada”, além dos próprios “inimigos da democracia”, que querem aniquilar ideologias contrárias às suas e implantar o “pensamento único”, temos os que são meros títeres nas mãos de lideranças inescrupulosas que têm objetivos escusos – como a perpetuação pessoal, de legendas partidárias ou grupos ideológicos à frente da Nação.

Por fim, a falácia – já devidamente derrubada pelas instâncias judiciais eleitorais – de que as urnas eletrônicas podem ser fraudadas e não conferem segurança ao sufrágio – devemos remontar ao ano de 2018 quando o “expoente” da direita brasileira venceu – em tais urnas, e sem contestação, da parte do polo vencedor – aquelas eleições e, na iminência de perdê-las, na tentativa de reeleição malograda, porque se consumou a vitória do seu oponente, democrático e de esquerda, desde antes do próprio pleito, as falaciosas mensagens e acusações já eram objeto de pronunciamentos, reuniões com autoridades (inclusive internacionais!) e pauta de propagandas partidárias gratuitas em redes de mídia (TVs e rádios).

Assim, devemos estar sempre partícipes em situações que envolvam a democracia – inclusive as relacionadas a vetustas e ilegítimas intervenções no sentido de afastar o regime democrático. Lembrando um célebre filósofo francês, J. J. Rousseau, em mensagem póstuma, temos:

“Está toda por criar-se a preocupação das questões morais. Discute-se a política, que agita os interesses gerais; discutem-se os interesses particulares; o ataque ou a defesa das personalidades apaixonam; os sistemas têm seus partidários e seus detratores. Entretanto, as verdades morais, as que são o pão da alma, o pão de vida, ficam abandonadas sob o pó que os séculos hão acumulado”. [1]

Fica patente, assim, a necessidade do bastião ético-moral como fio condutor das ações político-sociais, o elemento intencional (fins) para que a política (meio) possa alcançá-lo nos atos cotidianos de administração da “res publica”.

 Também o inventor e gravador alemão, Johannes Gutenberg, em comunicação psicográfica, destacou a importância da imprensa livre, como comunicadora de fatos e ideias, cabendo a cada um o julgamento, o exame racional, daquilo que é divulgado [2]:

“A revolução mãe, aquela que trazia no flanco o modo de expressão da Humanidade, o pensamento humano despojando-se do passado, de sua pele simbólica, é a invenção da imprensa. Sob essa forma, o pensamento mistura-se no ar, espiritualiza-se, será indestrutível. Senhora dos séculos futuros, ela alça seu voo inteligente para ligar todos os pontos do espaço e, a partir desse dia, domina a velha maneira de falar”.

Ele, inclusive associa o invento da imprensa à derrubada da teocracia das primeiras civilizações pela lei de liberdade, a democracia.

Ainda rememorando os dias difíceis recentes, que nos trazem à lembrança, no Brasil, dos atentados contra a democracia, pela desvalorização da educação (ensino superior e técnico), o sucateamento da saúde pública, o desrespeito às manifestações plurais, o desrespeito a mulheres, homossexuais, índios, pobres, negros, índios, deficientes e outros mais, lutamos permanentemente para que os ideais democráticos jamais tentem ser subordinados a interesses escusos e segregacionistas, inclusive os travestidos de “patriotismo”.

Nós, brasileiros, nos irmanamos aos portugueses, celebrando, hoje a Revolução dos Cravos a nos inspirar por uma mobilização e vigilância livres, pacíficas, e democráticas, que cognominamos “Revolução dos Ipês”.

E o velho cravo guardado, renitente, como cantou Chico Buarque [3], resgata o plantio e a colheita dos ideários dos homens livres e fortes, pela democracia, porque as sementes, as de lá e as de cá floresceram…

E é preciso navegar!

 

*publicado originalmente no blog Espiritismo com Kardec=-ECK

Notas do Autor:

[1] Mensagem psicografada, inclusa no Capítulo XXXI, item 3, da Segunda Parte de “O livro dos Médiuns”, de Allan Kardec. In: KARDEC, A. O livro dos Médiuns. Trad. J. Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: Lake, 1998.

 

[2] KARDEC, A. “Revue Spirite”. Abril de 1864. Instruções dos Espíritos. A imprensa. Trad. Salvador Gentile. São Paulo: Edicel, 2001.

 

[3] HOLANDA, C. B. Tanto Mar. 1975.

Comentários

  1. Excelente reflexão e convocação Marfelo Henrique. Gratidão, Doris Gandres.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

“TUDO O QUE ACONTECER À TERRA, ACONTECERÁ AOS FILHOS DA TERRA.”

    Por Doris Gandres Esta afirmação faz parte da carta que o chefe índio Seattle enviou ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1854! Se não soubéssemos de quem e de quando é essa declaração poder-se-ia dizer que foi escrita hoje, por alguém com bastante lucidez para perceber a interdependência entre tudo e todos. O modo como vimos agindo na nossa relação com a Natureza em geral há muitos séculos, não apenas usando seus recursos, mas abusando, depredando, destruindo mananciais diversos, tem gerado consequências danosas e desastrosas cada vez mais evidentes. Por exemplo, atualmente sabemos que 10 milhões de toneladas de plásticos diversos são jogadas nos oceanos todo ano! E isso sem considerar todas as outras tantas coisas, como redes de pescadores, latas, sapatos etc. e até móveis! Contudo, parece que uma boa parte de nós, sobretudo aqueles que priorizam seus interesses pessoais, não está se dando conta da gravidade do que está acontecendo...

NÃO SÃO IGUAIS

  Por Orson P. Carrara Esse é um detalhe imprescindível da Ciência Espírita. Como acentuou Kardec no item VI da Introdução de O Livro dos Espíritos: “Vamos resumir, em poucas palavras, os pontos principais da doutrina que nos transmitiram”, sendo esse destacado no título um deles. Sim, porque esse detalhe influi diretamente na compreensão exata da imortalidade e comunicabilidade dos Espíritos. Aliás, vale dizer ainda que é no início do referido item que o Codificador também destaca: “(...) os próprios seres que se comunicam se designam a si mesmos pelo nome de Espíritos (...)”.

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

"ANDA COM FÉ EU VOU..."

  “Andá com fé eu vou. Que a fé não costuma faiá” , diz o refrão da música do cantor Gilberto Gil. Narra a carta aos Hebreus que a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem. Cremos que fé é a certeza da aquisição daquilo que se tem como finalidade.

JESUS TEM LADO... ONDE ESTOU?

   Por Jorge Luiz  A Ilusão do Apolitismo e a Inerência da Política Há certo pedantismo de indivíduos que se autodenominam apolíticos como se isso fosse possível. Melhor autoafirmarem-se apartidários, considerando a impossibilidade de se ser apolítico. A questão que leva a esse mal entendido é que parte das pessoas discordam da forma de se fazer política, principalmente pelo fato instrumentalizado da corrupção, que nada tem do abrangente significado de política. A política partidária é considerada quando o indivíduo é filiado a alguma agremiação religiosa, ou a ela se vincula ideologicamente. Quanto ao ser apolítico, pensa-se ser aquele indiferente ou alheio à política, esquecendo-se de que a própria negação da política faz o indivíduo ser político.

A HISTÓRIA DA ÁRVORE GENEROSA

                                                    Para os que acham a árvore masoquista Ontem, em nossa oficina de educação para a vida e para a morte, com o tema A Criança diante da Morte, com Franklin Santana Santos e eu, no Espaço Pampédia, houve uma discussão fecunda sobre um livro famoso e belo: A Árvore Generosa, de Shel Silverstein (Editora Cosac Naify). Bons livros infantis são assim: têm múltiplos alcances, significados, atingem de 8 a 80 anos, porque falam de coisas essenciais e profundas. Houve intensa discordância quanto à mensagem dessa história, sobre a qual já queria escrever há muito. Para situar o leitor que não leu (mas recomendo ler), repasso aqui a sinopse do livro: “’...

FUNDAMENTALISMO AFETA FESTAS JUNINAS

  Por Ana Cláudia Laurindo   O fundamentalismo religioso tenta reconfigurar no Brasil, um país elaborado a partir de projetos de intolerância que grassam em pequenos blocos, mas de maneira contínua, em cada situação cotidiana, e por isso mesmo, tais ações passam despercebidas. Eles estão multiplicando, por isso precisamos conhecer a maneira com estas interferências culturais estão atuando sobre as novas gerações.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...