terça-feira, 30 de janeiro de 2024

NOSSO LAR 2 - AS CRÍTICAS E AS CONTROVÉRSIAS¹

 

Por Dora Incontri

Não posso me furtar a focar um tema eminentemente espírita no artigo dessa semana, porque estão por toda parte os debates, as críticas e os elogios ao novo filme Nosso Lar 2 – Os Mensageiros, além de um expressivo comparecimento do público nos primeiros dias de exibição. Trata-se de assunto complexo, que apresenta diversas camadas de apreciação – se não quisermos meramente falar do filme como um panfleto piegas de um espiritismo aferrado ao religiosismo adocicado, que aliás não era o proposto por Kardec, o fundador.

O filme é inspirado pelo livro homônimo de Chico Xavier, o mais célebre médium brasileiro, falecido em 2002. Mas o que não-espíritas podem ignorar é que nem o médium e nem seus livros são unanimidade entre os espíritas que se dizem kardecistas. Enquanto o movimento hegemônico conservador, liderado pela Federação Espírita Brasileira, considera Chico um santo, ou na linguagem espírita, um Espírito elevado; outros movimentos e lideranças, progressistas, mais críticos, atribuem ao médium a catolicização do espiritismo no Brasil, que acabou afastando os seguidores de seu caráter mais racional e filosófico, como era proposto pelo educador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, conhecido como Allan Kardec.

Entre os acirrados debates entre esses dois lados, há nos extremos aqueles que consideram as obras psicografadas por Chico, como sagradas, acima de toda análise crítica e os que as rejeitam como mera fantasia – e isso sobretudo se aplica aos livros de André Luiz, que descrevem a colônia espiritual Nosso Lar. Estou no meio desses extremos. Como Kardec, considero que todas as obras mediúnicas devem ser passadas pelo crivo da análise crítica, mas também aceito que Chico trouxe contribuições interessantes, porém longe de serem infalíveis. E que sim, essas contribuições podem ser embebidas num discurso às vezes excessivamente acrítico e piegas.

Nas discussões entre espíritas brasileiros, a própria noção de colônias espirituais é colocada em xeque, já que não houve essa ideia nas obras da Kardec, que tratou a vida feliz ou infeliz no Além, muito mais como estados de consciência, do que localidades de purgação ou felicidade. Coloco aqui um trecho de Kardec para o século 21, como prévia do meu livro que está indo para a gráfica essa semana, e que vai causar furores e controvérsias entre alguns e alívio e clareamento de conceitos entre outros:

“A tão debatida ideia de colônias espirituais, trazidas por médiuns norte-americanos e brasileiros, não aparece em Céu e inferno e em nenhuma outra obra de Kardec. Tudo no espiritismo por ele articulado se refere a estados mentais e não há materialidade em nenhuma visão do Além. Mas o corpo espiritual, com o qual os Espíritos se apresentam, é semimaterial e, no Livro dos médiuns, Kardec estuda casos em que Espíritos desencarnados são capazes de materializar objetos visíveis e palpáveis no Além, apenas com a força do pensamento. Dessa maneira, não é inverossímil que coletividades de Espíritos possam materializar cidades e locais de convivência, com características semelhantes aos que temos na Terra, como formas de organização temporária para os Espíritos em erraticidade. A percepção espiritual de vários médiuns nesse sentido viria confirmar um pressuposto lógico, que não contraria nenhum princípio básico do espiritismo.

A questão que se apresenta é que alguns cenários de sofrimento, descritos em regiões espirituais próximas à Terra, fazem lembrar o inferno cristão, com seus tormentos. E a narrativa de que as pessoas que praticam tal ou qual erro estão destinadas ao umbral, que veio substituir as ideias ora de purgatório, ora de inferno, pode levar a visão espírita a uma recaída num conceito de punição material. Então, mais uma vez é preciso lembrar que no espiritismo kardecista, tudo é sempre uma questão mental. Projetamos, criamos, concretizamos, desfazemos, desconstruímos tudo pela força do pensamento e as coletividades espirituais podem se reunir para o bem ou para o mal, segundo sua afinidade, e gerar formas-pensamentos, organizando um espaço espiritual. E quem disse que Dante não visitou mesmo alguns desses lugares tenebrosos, descrevendo-os evidentemente com a sua percepção subjetiva e com os condicionamentos da época?”

Ocorre é que se há uma espécie de materialização, às vezes chocante, de condições de vida pós-morte nas obras de Chico Xavier/André Luiz, na interpretação simplista e cinematográfica dos dois episódios de Nosso Lar (de 10 anos atrás e o de hoje) a coisa pesa demais, feita ainda com um mau gosto à toda prova. E não sei o quanto se deve isso à falta de recursos, criatividade ou senso estético mesmo. Pessoas se arrastando na lama, luzinhas que parecem enfeites de Natal, um bosque das águas absurdamente malfeito… tudo bastante constrangedor. Uma produção amadora. Uma espécie de céu de papelão.

E nesse contexto, o que é pior, o que se dá é uma ideia de punitivismo materializado no plano espiritual. E se devemos afastar das tradições espirituais essas ideias que reforçam culpa, punição, autodepreciação e depreciação do próximo, um filme como esse reafirma todos esses estereótipos, que estão presentes nos próprios livros do Chico.

Outra coisa que chama a atenção – já falei disso numa crítica ao primeiro Nosso Lar – é o quanto atores e seus diretores não sabem interpretar pessoas do bem. As falas, o tom, a expressão são sempre piegas, melífluos, sem nuanças, sem humanidade. Edson Celulari escapou disso. Como bom ator, soube ser simpático, bom, sem exageros. Esse é um problema que se dá em outros filmes, até hollywoodianos. Lembro do antigo Os Dez Mandamentos, com Charlton Heston no papel de Moisés. Enquanto ele esteve como irmão do faraó, era uma pessoa viva e espontânea. Quando se torna o profeta da terra prometida, assume essa voz mansa e irreal e a expressão extática e inumana. Nesse sentido, um elogio que faço aqui à série The Chosen, que está sendo veiculada na Netfllix, onde temos um Jesus que ri, pisca o olho, é simpático, próximo, acolhedor… enfim um ser humano pleno.

Quem se dedicar a ler o livro Os Mensageiros, no original, verá que alguns defeitos punitivista estão lá, mas também observará que se trata de uma obra muito mais elaborada, muito mais sutil, com várias análises psicológicas muito mais interessantes que as do filme.

Ainda assim, sobram algumas coisas boas na história contada por Wagner de Assis: a mensagem de que temos nossos Espíritos protetores, que fazem tudo pela nossa felicidade; a ideia de que o amor redime todos os pecados e de que todos se iluminarão, ninguém ficando fora do despertar para o bem – princípios básicos do espiritismo kardecista, que apesar dos pesares, ainda permanecem no espiritismo mais religioso que se desenvolveu no Brasil. Momentos em que essa relação amorosa se dá no filme, em que crianças demonstram sua mediunidade, em que se dão cenas de acolhimento e perdão – podem emocionar pessoas sensíveis. Nem tudo está perdido.

 

¹ publicado originalmente no Jornal GGN, 30.01.2024

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