Pular para o conteúdo principal

NOSSO LAR 2 - AS CRÍTICAS E AS CONTROVÉRSIAS¹

 

Por Dora Incontri

Não posso me furtar a focar um tema eminentemente espírita no artigo dessa semana, porque estão por toda parte os debates, as críticas e os elogios ao novo filme Nosso Lar 2 – Os Mensageiros, além de um expressivo comparecimento do público nos primeiros dias de exibição. Trata-se de assunto complexo, que apresenta diversas camadas de apreciação – se não quisermos meramente falar do filme como um panfleto piegas de um espiritismo aferrado ao religiosismo adocicado, que aliás não era o proposto por Kardec, o fundador.

O filme é inspirado pelo livro homônimo de Chico Xavier, o mais célebre médium brasileiro, falecido em 2002. Mas o que não-espíritas podem ignorar é que nem o médium e nem seus livros são unanimidade entre os espíritas que se dizem kardecistas. Enquanto o movimento hegemônico conservador, liderado pela Federação Espírita Brasileira, considera Chico um santo, ou na linguagem espírita, um Espírito elevado; outros movimentos e lideranças, progressistas, mais críticos, atribuem ao médium a catolicização do espiritismo no Brasil, que acabou afastando os seguidores de seu caráter mais racional e filosófico, como era proposto pelo educador francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, conhecido como Allan Kardec.

Entre os acirrados debates entre esses dois lados, há nos extremos aqueles que consideram as obras psicografadas por Chico, como sagradas, acima de toda análise crítica e os que as rejeitam como mera fantasia – e isso sobretudo se aplica aos livros de André Luiz, que descrevem a colônia espiritual Nosso Lar. Estou no meio desses extremos. Como Kardec, considero que todas as obras mediúnicas devem ser passadas pelo crivo da análise crítica, mas também aceito que Chico trouxe contribuições interessantes, porém longe de serem infalíveis. E que sim, essas contribuições podem ser embebidas num discurso às vezes excessivamente acrítico e piegas.

Nas discussões entre espíritas brasileiros, a própria noção de colônias espirituais é colocada em xeque, já que não houve essa ideia nas obras da Kardec, que tratou a vida feliz ou infeliz no Além, muito mais como estados de consciência, do que localidades de purgação ou felicidade. Coloco aqui um trecho de Kardec para o século 21, como prévia do meu livro que está indo para a gráfica essa semana, e que vai causar furores e controvérsias entre alguns e alívio e clareamento de conceitos entre outros:

“A tão debatida ideia de colônias espirituais, trazidas por médiuns norte-americanos e brasileiros, não aparece em Céu e inferno e em nenhuma outra obra de Kardec. Tudo no espiritismo por ele articulado se refere a estados mentais e não há materialidade em nenhuma visão do Além. Mas o corpo espiritual, com o qual os Espíritos se apresentam, é semimaterial e, no Livro dos médiuns, Kardec estuda casos em que Espíritos desencarnados são capazes de materializar objetos visíveis e palpáveis no Além, apenas com a força do pensamento. Dessa maneira, não é inverossímil que coletividades de Espíritos possam materializar cidades e locais de convivência, com características semelhantes aos que temos na Terra, como formas de organização temporária para os Espíritos em erraticidade. A percepção espiritual de vários médiuns nesse sentido viria confirmar um pressuposto lógico, que não contraria nenhum princípio básico do espiritismo.

A questão que se apresenta é que alguns cenários de sofrimento, descritos em regiões espirituais próximas à Terra, fazem lembrar o inferno cristão, com seus tormentos. E a narrativa de que as pessoas que praticam tal ou qual erro estão destinadas ao umbral, que veio substituir as ideias ora de purgatório, ora de inferno, pode levar a visão espírita a uma recaída num conceito de punição material. Então, mais uma vez é preciso lembrar que no espiritismo kardecista, tudo é sempre uma questão mental. Projetamos, criamos, concretizamos, desfazemos, desconstruímos tudo pela força do pensamento e as coletividades espirituais podem se reunir para o bem ou para o mal, segundo sua afinidade, e gerar formas-pensamentos, organizando um espaço espiritual. E quem disse que Dante não visitou mesmo alguns desses lugares tenebrosos, descrevendo-os evidentemente com a sua percepção subjetiva e com os condicionamentos da época?”

Ocorre é que se há uma espécie de materialização, às vezes chocante, de condições de vida pós-morte nas obras de Chico Xavier/André Luiz, na interpretação simplista e cinematográfica dos dois episódios de Nosso Lar (de 10 anos atrás e o de hoje) a coisa pesa demais, feita ainda com um mau gosto à toda prova. E não sei o quanto se deve isso à falta de recursos, criatividade ou senso estético mesmo. Pessoas se arrastando na lama, luzinhas que parecem enfeites de Natal, um bosque das águas absurdamente malfeito… tudo bastante constrangedor. Uma produção amadora. Uma espécie de céu de papelão.

E nesse contexto, o que é pior, o que se dá é uma ideia de punitivismo materializado no plano espiritual. E se devemos afastar das tradições espirituais essas ideias que reforçam culpa, punição, autodepreciação e depreciação do próximo, um filme como esse reafirma todos esses estereótipos, que estão presentes nos próprios livros do Chico.

Outra coisa que chama a atenção – já falei disso numa crítica ao primeiro Nosso Lar – é o quanto atores e seus diretores não sabem interpretar pessoas do bem. As falas, o tom, a expressão são sempre piegas, melífluos, sem nuanças, sem humanidade. Edson Celulari escapou disso. Como bom ator, soube ser simpático, bom, sem exageros. Esse é um problema que se dá em outros filmes, até hollywoodianos. Lembro do antigo Os Dez Mandamentos, com Charlton Heston no papel de Moisés. Enquanto ele esteve como irmão do faraó, era uma pessoa viva e espontânea. Quando se torna o profeta da terra prometida, assume essa voz mansa e irreal e a expressão extática e inumana. Nesse sentido, um elogio que faço aqui à série The Chosen, que está sendo veiculada na Netfllix, onde temos um Jesus que ri, pisca o olho, é simpático, próximo, acolhedor… enfim um ser humano pleno.

Quem se dedicar a ler o livro Os Mensageiros, no original, verá que alguns defeitos punitivista estão lá, mas também observará que se trata de uma obra muito mais elaborada, muito mais sutil, com várias análises psicológicas muito mais interessantes que as do filme.

Ainda assim, sobram algumas coisas boas na história contada por Wagner de Assis: a mensagem de que temos nossos Espíritos protetores, que fazem tudo pela nossa felicidade; a ideia de que o amor redime todos os pecados e de que todos se iluminarão, ninguém ficando fora do despertar para o bem – princípios básicos do espiritismo kardecista, que apesar dos pesares, ainda permanecem no espiritismo mais religioso que se desenvolveu no Brasil. Momentos em que essa relação amorosa se dá no filme, em que crianças demonstram sua mediunidade, em que se dão cenas de acolhimento e perdão – podem emocionar pessoas sensíveis. Nem tudo está perdido.

 

¹ publicado originalmente no Jornal GGN, 30.01.2024

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DEUS¹

  No átimo do segundo em que Deus se revela, o coração escorrega no compasso saltando um tom acima de seu ritmo. Emociona-se o ser humano ao se saber seguro por Aquele que é maior e mais pleno. Entoa, então, um cântico de louvor e a oração musicada faz tremer a alma do crente que, sem muito esforço, sente Deus em si.

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: Uma revista espírita

“O homem é livre na medida em que coloca seus atos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se nas mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista.” ( Arthur Conan Doyle) Allan Kardec ao elaborar os princípios da unidade tinha em mente que os espíritas fossem capazes de tecer uma teia social espírita , de base morfológica e que daria suporte doutrinário para as Instituições operarem as transformações necessárias ao homem. A unidade de princípios calcada na filosofia social espírita daria a liga necessária à elasticidade e resistência aos laços que devem unir os espíritas no seio dos ideais do socialismo-cristão. A opção por um “espiritismo religioso” fundado pelo roustainguismo de Bezerra Menezes, através da Federação Espírita Brasileira, e do ranço católico de Luiz de Olympio Telles de Menezes, na Bahia, sufocou no Brasil o vetor socialista-cristão da Doutrina Espírita. Telles, ao ...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

ESPIRITISMO E POLÍTICA¹

  Coragem, coragem Se o que você quer é aquilo que pensa e faz Coragem, coragem Eu sei que você pode mais (Por quem os sinos dobram. Raul Seixas)                  A leitura superficial de uma obra tão vasta e densa como é a obra espírita, deixada por Allan Kardec, resulta, muitas vezes, em interpretações limitadas ou, até mesmo, equivocadas. É por isso que inicio fazendo um chamado, a todos os presentes, para que se debrucem sobre as obras que fundamentam a Doutrina Espírita, através de um estudo contínuo e sincero.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

É HORA DE ESPERANÇARMOS!

    Pé de mamão rompe concreto e brota em paredão de viaduto no DF (fonte g1)   Por Alexandre Júnior Precisamos realmente compreender o que significa este momento e o quanto é importante refletirmos sobre o resultado das urnas. Não é momento de desespero e sim de validarmos o esperançar! A História do Brasil é feita de invasão, colonização, escravização, exploração e morte. Seria ingenuidade nossa imaginarmos que este tipo de política não exerce influência na formação do nosso povo.

O ESPIRITISMO É PROGRESSISTA

  “O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõe todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem - a mão para marchar, na mesma rota ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.”   Revista Espírita – junho de 1868, (Kardec, 2018), p.174   Viver o Espiritismo sem uma perspectiva social, seria desprezar aquilo que de mais rico e produtivo por ele nos é ofertado. As relações que a Doutrina Espírita estabelece com as questões sociais e as ciências humanas, nos faculta, nos muni de conhecimentos, condições e recursos para atravessarmos as nossas encarnações como Espíritos mais atuantes com o mundo social ao qual fazemos parte.

OS ESPÍRITAS E OS GASPARETTOS

“Não tenho a menor pretensão de falar para quem não quer me ouvir. Não vou perder meu tempo. Não vou dar pérolas aos porcos.” (Zíbia Gaspareto) “Às vezes estamos tão separados, ao ponto de uma autoridade religiosa, de um outro culto dizer: “Os espíritas do Brasil conseguiram um prodígio:   conseguiram ser inimigos íntimos.” ¹ (Chico Xavier )                            Li com interesse a reportagem publicada na revista Isto É , de 30 de maio de 2013, sobre a matéria de capa intitulada “O Império Espírita de Zíbia Gasparetto”. (leia matéria na íntegra)             A começar pelo título inapropriado já que a entrevistada confessou não ter religião e autodenominou-se ex-espírita , a matéria trouxe poucas novidades dos eventos anteriores. Afora o movimento financeiro e ...