sábado, 11 de junho de 2022

ÉTICA E CAPITALISMO - PARTE I

 


       Por Alysson Mascaro 

           Libertar o problema ético de sua vertente passadista religiosa já há muito é imperativo. Negar a divindade dos líderes religiosos, negar os milagres ou livros santos, isto é tarefa que não exige dos homens da atualidade nada mais do que o esforço de ler um Voltaire ou qualquer lúcido pensador do século XVIII.

Um problema maior, no entanto, é o de libertar o problema ético de suas amarras individualistas e racionalistas típicas do século XVIII. Na entrada do século XIX, um pensador na corrente das mudanças da história como Hegel já lustrara suas armas contra a moral individualista e a razão atemporal. Fuerbach, diria Marx em meados do século XIX, já havia destruído tudo o que era preciso em matéria de religião no seu livro A Essência do Cristianismo. Nietzche, esta espécie de razão enfurecida que a virada do século presenciou pasma e incomodada, sepultou a moral da razão iluminista da mesma forma que sepultada já estava a moral da religião medieval. Heidegger, no século XX, não cumpriu itinerário diferente destes seus colegas do passado próprio ao rejeitar não só a metafísica das religiões como o império racional, individual e universal. Ao cabo desta grande travessia, parece que o colosso da moral racional estava definitivamente vencido, dois séculos depois de ter se abatido o monstro da moral das teologias, religiões, revelações, metafísicas, livros sagrados e palavras divinas.

A quebra desta moral racionalista individualista e universalista foi feita por muitos ângulos, por autores que jamais tiveram consciência de que, de um lado e de outro, matavam o mesmo grande monstro. Nietzche e Marx, sem saberem um do outro, desferiram golpes mortais na moral da razão iluminista, e graças a eles e mis outros finou este jovem espécime, a moral racionalista.

Na verdade, é preciso entender que a moral racionalista do Iluminismo é o ajuste do mundo capitalista no momento de inflexão da sua conquista definitiva do mundo. A moral protestante é o tosco esboço de que o capitalismo necessitou para romper com o passado feudal. A luta contra o passado não-capitalista é a luta protestante, cuja lógica é sempre ser o não do sim católico, feudal, medieval. Até o nome, protestante ou reformado, remete imediatamente à matriz da qual se contrapõe. Toda a Idade Moderna, a era do protestantismo, é a era em que o capitalismo luta contra as amarras do passado feudal e medieval católico. Ao final desta etapa, já não bastava o ser o não de um sim já remoto, era preciso abandonar a teologia do não e instaurar a positivação de um novo sim, o da razão. O capitalismo, quando já não tem mais inimigos do passado, joga fora seu Deus com o qual lutava contra o Deus dos outros. Agora era preciso instaurar um mundo, definitivamente, sem religiões. Foi o que fez o Iluminismo; estava instaurada a moral definitivamente do capitalismo.

Esta moral, racionalista, passava por muito avançada em comparação com o passado. Não era própria nem de homens crédulos e subjugados como os católicos nem de homens crentes em amarras metafísicas como no caso protestante. Era uma moral de homens racionais, livres que julgavam por si próprios, livre-pensadores que rejeitavam a santificação da pobreza antiga e glorificavam suas especulações racionais no conforto de suas bibliotecas burguesas.

Esta moral, tal qual o capitalismo que então definitivamente ganhara a batalha contra seus inimigos, fazia de cada homem um princípio, fazia a humanidade girar em torno das individualidade, do empreendimento e do arrojo individual, não ditando nada mais do que as possibilidades das consciências. Da mesma forma que é o próprio burguês que conta seu lucro e o entesoura, é o próprio, é o próprio homem que se julgará por si só, pela consciência e sua amplitude racional. Não haverá o dízimo da igreja obrigando a contar os lucros do homem medieval na frente de terceiros: agora, da mesma forma que os lucros de cada qual, a moral também o é. E da mesma forma que o dinheiro que faz lucros é um só para todos mesmo sendo de cada um a sua apreensão, a moral será uma só pra todos mesmo sendo de cada qual a sua jurisdição.

Da mesma forma que a lógica capitalista é de propriedade individual, produção e circulação do lucro, a moral capitalista – racionalista e individualista – procede à sua semelhança. Kant guardou a moral na propriedade privada de cada consciência, e cada juízo é sua moral. Rousseau, Voltaire e outros mais apostavam na igualdade da moral de cada indivíduo como se aposta na igualdade do mercado, onde não importa quem compra nem quem vende, só importa o lucro. Da mesma maneira, a moral racionalista, capitalista por excelência, não pergunta sobre a procedência de nenhum indivíduo – cristão ou muçulmano, judeu ou ateu, tanto faz – mas pergunta exatamente a respeito de seus produtos morais circuláveis no grande mercado da moral racional humana. Assim, alguns escolhem ser empresários, patrões, que ganham lucros nos maquinários de exploração do trabalho, mas não tem necessidade de prestar contas de seus lucros a ninguém. A mais-valia do trabalho não é pecado pré-estabelecido. O acordo de vontades entre patrão e trabalhador, sim, é a verdadeira moral burguesa, e é para o burguês muito justa desde que haja quem queira negociar trabalho segundo tais condições estabelecidas.

A moral do mercado é a moral da negociação às claras, não importando o quando isto seja injusto na realidade: se ambos concordam, a moral aí se fez presente, pois ela é simplesmente uma concórdia entre iguais, a concórdia da forma, não do conteúdo. Patrão e empregado se fazem de iguais no mercado, e cumprem suas obrigações e recebem o que de direito, num contrato às claras. O contrato capitalista cumprido passa a ser sinônimo de moral, da mesma maneira que a moral antiga era o devido cumprimento do contrato com Deus, da aliança de Javé com o povo hebreu. O quanto o burguês leva à casa, ao recôndito de sua vida privada, não é mais problema moral desde que não tenha trapaceado as regras do mercado, as regras do contrato social. A moral passa a ser um meio de chancela das relações contratuais humanas cuja única medida é o acordo, a relação mútua de comum acordo. Nunca o preceito do antigo direito romano foi tão atual quando no caso da moral moderna: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere. (*)

(*) “Viver honestamente, não lesar a ninguém, dar a cada um o que é seu.” (Digesto, 1.1.10)

 

                                                                                             

                                                                                              (continua no próximo artigo)

 

 

Referências:

MASCARO. Alysson L. Cristianismo libertador. São Paulo. 2002

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