Pular para o conteúdo principal

A ELOQUÊNCIA MANIQUEÍSTA

 


                 A retórica maniqueísta está na agenda da sociedade brasileira. O maniqueísmo é religião sincrética e dualística fundada por Mani (216-276), filósofo heresiarca do Século III, que divide o mundo entre o bem (Deus) e o mal (Satanás). Depois de dois mil anos de cristianismo, os cristãos ainda acendem velas para essas ideias, e elas ecoam principalmente dentro do movimento neopentecostal.

            O maniqueísmo é considerado uma seita sincrética com fundamentos do zoroastrismo, do hinduísmo, do budismo, do judaísmo e do cristianismo. A partir do Século IV foi considerado heresia por Santo Agostinho, ex-adepto, e pela Igreja Católica; e seus praticantes foram perseguidos e duramente combatidos, tendo sido, por fim, totalmente eliminados do Ocidente no Século VI.

            Afirma o croata Rudolf Steiner (1861-1925), filósofo e educador, criador da Pedagogia Waldorf, acerca do maniqueísmo:

 

(...) o maniqueísmo ensina que o Mal é tão eterno quanto o Bem; que não há ressurreição do corpo, e que o Mal, como tal, não terá fim. Portanto, ele não tem começo, e sim a mesma origem do Bem, e nem tampouco terá fim.

 

            Esse fenômeno sempre marcou e marcará a evolução do ser humano. Vê-se isso na sociedade judaica à época do Cristo quando várias facções se destacaram: fariseus (separados), que enfatizavam as tradições e as práticas judaicas e se distinguiam da cultura pagã. Eram extremamente intolerantes com os considerados cerimonialmente impuros. Já os saduceus eram formados conservadores, dentre eles existiam membros da aristocracia de Jerusalém, de onde saíam o sumo sacerdote e os sacerdotes inferiores que controlavam o templo. Os zelotes ou zelotas faziam parte de um grupo de radicais cujo partido era favorável à resistência armada de todos os romanos presentes na pátria. Consta que o pai e até o próprio Judas Iscariotes integravam esse grupo. Por fim, os essênios são identificados como aqueles que tinham pouco ou nenhum interesse em política ou em guerra. Isolaram-se no deserto em comunidades monásticas isoladas onde estudavam as Escrituras e se preparavam para o reino do Senhor. Alguns estudiosos consideram que Jesus teve iniciação nesse grupo, o que hoje eu duvido. Jesus condenou o farisaísmo. Temo-los bem identificados nos dias atuais.

            As narrativas midiáticas tomam formas de discursos e os conflitos naturais dos contextos político, social e religioso são elaborados por inimigos estereotipados e generalizados, muitas vezes construídos pela mentira. O pensar diferente é desconstruído pela mentira e o cinismo, como estabelecimento de regras de convivência, parece normal.

Por trás desse discurso vibra o ódio ao pensamento que incita a violência contra grupos minoritários, supostamente representativos do mal na sociedade: nacionalidade, raça, cor, religião, ideologia política, comunismo, situação econômico-financeira etc. Como bem afirma Theodor Adorno, o mal não está dentro e nem fora de nós, é tecido pela própria sociedade.

Carolin Emcke, escritora e filósofa alemã, em suas pesquisas, afirma não entender como podem odiar tanto e serem tão seguros, caso contrário, não destilariam tanto ódio, não falariam, não agrediriam ou matariam dessa forma. Ela ressalta que a aversão ao diferente ou ao estranho, sem dúvida, sempre existiu, mas isso não era necessariamente percebido como ódio. Ela define os excluídos como invisíveis:

 

Não ser visto ou reconhecido, ser invisível aos olhos dos outros, é a forma essencial de desprezo. Os invisíveis, aqueles que não são percebidos socialmente, não pertencem a nenhum “nós”. Suas palavras não são ouvidas, seus gestos não são vistos. Os invisíveis não têm sentimentos, necessidades ou direitos.

 

O ódio parametriza o espaço público entre o bem e o mal. Como se estabelece esse parâmetro do bem e o mal entre dois indivíduos, em um mundo cheio de diversidades e contradições? Desse emaranhado de imperfeições surgiu o “cidadão de bem”. Como defini-lo?

O conceito político e sociológico defendido pelo Imperador romano César, que é preciso “dividir para reinar”, mostra o quão é antigo e utilizado o ódio na política, tendo por alguns como a origem do mito das Nações. O ódio como política na agenda neoliberal brasileira, através da burguesia organizada, cooptou o neopentecostalismo e a teoria da prosperidade, as forças armadas, além do judiciário com a sua constituição classista.

Através desses atalhos, a eloquência maniqueísta assumiu o Planalto Central Brasileiro, e a compulsividade pela mentira fez o ódio na política apresentar o odor fétido do sangue putrificado do período da ditadura emanar na psicosfera brasileira, de forma institucional, além de tomar cadeira no conhecido “gabinete do ódio”.

Em O Livro dos Espíritos (OLE), livro III, capítulo I:III, define a moral como a regra da boa conduta e, portanto, a distinção entre o bem e o mal, fundamentada na observação da lei de Deus. No desenvolvimento do tema, os Espíritos assinalam que qualquer indivíduo tem inteligência suficiente para entender um e outro. E são assertivos em afirmar, questão nº 632, de OLE: “Jesus vos disse: vede o que querereis que vos fizessem ou não; tudo se resume nisso. Assim não vos enganeis.”

O Espiritismo tem assentado em seus fundamentos a existência do Espírito imortal, que evolui moralmente através do tempo pelas várias vivências da alma, não avaliza esses tipos de comportamento, e se algum espírita o valida, na realidade é por desconhecer os conceitos básicos doutrinários.

Allan Kardec afirma que o mal é a ausência do bem, como o frio é do calor. “(...) Deus não quer senão o bem; o mal provém unicamente do homem. Se na criação houvesse um ser predisposto ao mal, ninguém o poderia evitar; porém, tendo o homem a causa do mal em SI MESMO, e tendo ao mesmo tempo seu livre-arbítrio e por guia as leis divinas, evitará o mal quando quiser.”

É necessário se quebrar as correntes de ódio que estão galvanizadas nos espaços sociais e públicos brasileiros. Isso só será possível a partir de cada brasileiro, encetando a viagem mais difícil de ser realizada que é viajar para fora de si em direção ao outro, promovendo a maior alquimia do Universo: eu, tu, nós.

            Assim, venceremos o ódio e o totalitarismo.

 

REFERÊNCIAS:

EMCKE, Carolin. Contra o ódio. Belo Horizonte, 2020.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo, 2000.

___________. A Gênese. São Paulo, 2010.

SOLANO, Ester (Org.) O ódio como política. São Paulo, 2021.

STEINER, Rudolf. O Maniqueísmo. São Paulo, 1979.

 

 

 

Comentários

  1. Muito boas reflexões e, particularmente, no que se refere à observação de que engrossar a fileira do ódio, do preconceito, da discriminação nada tem a ver com os princípios humanistas e de justiça adotados pela doutrina espírita.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

O CERNE DA QUESTÃO DOS SOFRIMENTOS FUTUROS

      Por Wilson Garcia Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina. ***   Inicialmente. O pior das discussões sobre os fundamentos do Espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

"ANDA COM FÉ EU VOU..."

  “Andá com fé eu vou. Que a fé não costuma faiá” , diz o refrão da música do cantor Gilberto Gil. Narra a carta aos Hebreus que a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem. Cremos que fé é a certeza da aquisição daquilo que se tem como finalidade.

“TUDO O QUE ACONTECER À TERRA, ACONTECERÁ AOS FILHOS DA TERRA.”

    Por Doris Gandres Esta afirmação faz parte da carta que o chefe índio Seattle enviou ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1854! Se não soubéssemos de quem e de quando é essa declaração poder-se-ia dizer que foi escrita hoje, por alguém com bastante lucidez para perceber a interdependência entre tudo e todos. O modo como vimos agindo na nossa relação com a Natureza em geral há muitos séculos, não apenas usando seus recursos, mas abusando, depredando, destruindo mananciais diversos, tem gerado consequências danosas e desastrosas cada vez mais evidentes. Por exemplo, atualmente sabemos que 10 milhões de toneladas de plásticos diversos são jogadas nos oceanos todo ano! E isso sem considerar todas as outras tantas coisas, como redes de pescadores, latas, sapatos etc. e até móveis! Contudo, parece que uma boa parte de nós, sobretudo aqueles que priorizam seus interesses pessoais, não está se dando conta da gravidade do que está acontecendo...

NÃO SÃO IGUAIS

  Por Orson P. Carrara Esse é um detalhe imprescindível da Ciência Espírita. Como acentuou Kardec no item VI da Introdução de O Livro dos Espíritos: “Vamos resumir, em poucas palavras, os pontos principais da doutrina que nos transmitiram”, sendo esse destacado no título um deles. Sim, porque esse detalhe influi diretamente na compreensão exata da imortalidade e comunicabilidade dos Espíritos. Aliás, vale dizer ainda que é no início do referido item que o Codificador também destaca: “(...) os próprios seres que se comunicam se designam a si mesmos pelo nome de Espíritos (...)”.

FUNDAMENTALISMO AFETA FESTAS JUNINAS

  Por Ana Cláudia Laurindo   O fundamentalismo religioso tenta reconfigurar no Brasil, um país elaborado a partir de projetos de intolerância que grassam em pequenos blocos, mas de maneira contínua, em cada situação cotidiana, e por isso mesmo, tais ações passam despercebidas. Eles estão multiplicando, por isso precisamos conhecer a maneira com estas interferências culturais estão atuando sobre as novas gerações.

TEMOS FORÇA POLÍTICA ENQUANTO MULHERES ESPÍRITAS?

  Anália Franco - 1853-1919 Por Ana Cláudia Laurindo Quando Beauvoir lançou a célebre frase sobre não nascer mulher, mas tornar-se mulher, obviamente não se referia ao fato biológico, pois o nascimento corpóreo da mulher é na verdade, o primeiro passo para a modelagem comportamental que a sociedade machista/patriarcal elaborou. Deste modo, o sentido de se tornar mulher não é uma negação biológica, mas uma reafirmação do poder social que se constituiu dominante sobre este corpo, arrastando a uma determinação representativa dos vários papéis atribuídos ao gênero, de acordo com as convenções patriarcais, que sempre lucraram sobre este domínio.

JESUS TEM LADO... ONDE ESTOU?

   Por Jorge Luiz  A Ilusão do Apolitismo e a Inerência da Política Há certo pedantismo de indivíduos que se autodenominam apolíticos como se isso fosse possível. Melhor autoafirmarem-se apartidários, considerando a impossibilidade de se ser apolítico. A questão que leva a esse mal entendido é que parte das pessoas discordam da forma de se fazer política, principalmente pelo fato instrumentalizado da corrupção, que nada tem do abrangente significado de política. A política partidária é considerada quando o indivíduo é filiado a alguma agremiação religiosa, ou a ela se vincula ideologicamente. Quanto ao ser apolítico, pensa-se ser aquele indiferente ou alheio à política, esquecendo-se de que a própria negação da política faz o indivíduo ser político.