Pular para o conteúdo principal

A TRANSFORMAÇÃO DE NOSSOS TEMPOS

 

                                              



            O mundo moderno é aparentemente um mundo bem estruturado. Há cristãos confortavelmente instalados nas muralhas do capitalismo, sem vergonha do lucro – isto já está racionalizado há tempos – e sem remorso porque ganharam seu capital com o suor dos seus rostos. Há o que fazem do cristianismo profissão de fé no trabalho, na capacidade individual, há os que se julgam empresários cristão, empresas éticas etc. Indivíduos que se reputam justos sempre os houve em toda a história. Mas a verdade de um homem não é o que ele pensa de si mesmo.

            O exercício da cristandade, neste mundo moderno e capitalista, é bastante peculiar. Já não cabe mais, a não ser por ignorância ou por reacionarismo abjeto, acreditar no Juízo Final e em outros irracionalismos. O espírito moderno não tem medo do raio e nem do trovão, a não ser pessoas supersticiosas e mal-esclarecidas pela ciência. Mas o mundo moderno, num certo sentido, quando quer ser cristão, moralista, persegue os mesmos vícios dos medievais, porque os dois, aliás, são faces de uma mesma moeda.

            O medieval – que fez o mundo girar em torno de si e de sua fé, que fez de Deus um barganhador de suas promessas – quando se lembrava do amor cristão o fazia de maneira individualista. A esmola e a caridade nada são do que a expressão deste sentimento individualista. A bondade, o sentimento, a compaixão, elas fazem com que cada qual dê sua esmola àquele que sofre.

            O moderno, individualista também ao seu modo, quando quiser ser cristão será somente um individualista sentimentalista. A caridade moderna, aliás, é a típica falsidade travestida de cristandade: o homem rico abre o portão de sua casa e oferece um pedaço de pão ao pobre, o empresário dá uma cesta básica ao seu funcionário. Os grandes homens dão algumas horas de sua vida para construírem obras de caridades, os pequenos auxiliam como pedreiros. Todo este mundo de caridades estranhas nunca foi tão falso, tão abjeto, tão parcamente cristão. Se um medieval tinha a desculpa da impossibilidade da vida terrena, se tinha a desculpa da ignorância, o moderno não tem nenhuma dessas desculpas.

            O mundo moderno é o modelo mais acabado do falso cristianismo, o modelo mais acabado da hipocrisia, da perversão cristã, da fraqueza do homem, da miséria humana. Não por acaso, nunca houve tantos cristãos tão pretensamente confortavelmente instalados como neste nosso mundo moderno.

            O mundo moderno e contemporâneo, capitalista, é estruturalmente um mundo não cristão. Isto não quer dizer que o medieval também não o fosse, o é também. Acontece que nosso tempo não é nada melhor. O capitalismo é estruturalmente anticristão não porque tenha inscrito em sues escudos alguma frase lapidar de ódio ao Cristo. O capitalismo não mandou reescrever a Bíblia, no máximo mandou traduzi-la do latim para as línguas locais. Ninguém viu o grande burguês moderno queimando cruz em praça pública – o burguês moderno sempre suportará a imagem do Cristo ao seu lado porque jamais se enxerga em contraposição a ele. O capitalismo é um anticristo não nos seus símbolos ou na consciência de seus burgueses, mas é um anticristo nas suas estruturas.

            Se a bem-aventurança do Cristo é a do homem simples, justo, humilde, brando, pacífico, a estrutura de nosso mundo capitalista é construída pelo arrojo, pela ambição, pela empresa lucrativa. Se a bem-aventurança do Cristo é a do homem que sofre, a estrutura do mundo moderno não sabe enxergar a derrota. O derrotado está fora do sistema. Se Jesus é do derrotado, parece que a estrutura deste mundo moderno, de Cristo, só tem o nome.

            O Cristo verdadeiro é o Cristo dos despossuídos. Talvez Nietzsche com razão tenha dito que Cristo é dos fracos, Cristo é dos perdedores. É sim, é dos injustiçados, e não dos injustiçadores. Mas não para somente na defesa dos desvalidos do cristianismo. Se até aqui parasse, seria uma depuração melhorada da mesma caridade simplória que imbuiu o medieval e o moderno. Há um grande aspecto propositivo, transformador e não só reparador de injustiças, que os cristãos e anticristãos até agora teimam em não ver.

            O Cristo transformador não é o que luta pelo desvalido. A luta contra a injustiça é também cristã, mas a construção de um mundo justo é mais cristã ainda. Reparar a fome é ato cristão, mas distribuir a plantação e a colheita a todos é mais cristão ainda. O Cristo transformador altera radicalmente as estruturas de nosso mundo, de tal modo que ninguém precise de esmola, ninguém necessite de caridade, ninguém seja devedor ou credor de sopa e pão de boa intenção alheia. O sistema capitalista será sempre o sistema do cristianismo de esmola. Este cristianismo da esmola é o falso cristianismo, é o cristianismo dos homens fracos, e Nietzsche apontou isto bem. Mas o único verdadeiro cristianismo, este sim é o cristianismo dos fortes, da luta, da batalha, da transformação, da construção de um mundo justo e não só da reparação das feridas deste.

            Ninguém dirá que não é de grande cristandade a Cruz Vermelha socorrer feridos de guerra. Mas cristão mesmo é o mundo onde não haja mais a guerra por mercados, por domínios de terra, por exploração, por violência. Cristão é o mundo onde a Cruz Vermelha se torne anacrônica, onde não haja mais portão do homem a ser aberto para que se dê esmola para quem a pede porque não haverá mais distinção entre o que se tem para si e os outros não têm. Ser fácil cristão é dar a esmola; muito mais cristão é lutar e construir um mundo onde não haja esmolados.

            O ditado que diz que não se deve dar o peixe mas ensinar a pescar é altamente hipócrita e capitalista, falso cristão. Dar o peixe é um cristianismo esmolado, ensinar a pescar é convidar o esmolado para integrar o clube privado dos donos do peixe e do rio em que se pesca, deixando o resto para trás. Este ensinar a pescar é só um paliativo individualista um pouco mais capitalista que dar o peixe, porque não exige que se dê sempre e se faz com que outros se arrebanhem ao sistema do trabalho capitalista. Tirar as cercas do rio e ensinar a todos a pescarem, deixando de fato o rio à disposição de todos, é muito mais complexo que isso, e só isso é verdadeiramente cristão, mas isto os cristãos não querem ouvir.

            Por isso os ditados e as opções e as batalhas dos cristãos, mesmo quando querem ser inovadores, são pobres, alienados, falsos e hipócritas, como toda a estrutura do mundo em que vivemos. Não há cristianismo pleno num sistema capitalista. Se o amor ao próximo é a única lei do cristão, o capitalismo, que é o poder de si e não para todos, é o princípio da exclusão, do egoísmo, da vaidade, da soberba, da falta de fraternidade.

            Não haverá cristianismo verdadeiro, neste mundo que abandonou a fé medieval e ficou com o mercado. Não haverá cristianismo, tampouco, nos messiânicos que apregoam aos quatro cantos o fim do mundo ou a volta ao tempo em que os homens temiam a Deus e acreditavam que o mundo foi feito em seis dias e o pai descansou no sétimo. Não são estas as opções viáveis a um cristão.

            Não há como abandonar a razão, tendo em vista que ela, melhor do que o irracional, pode se aproximar de uma compreensão ajustada do cristianismo. Mas tampouco basta este racionalismo irrisório e tecnicista, mercadológico e hipócrita de nosso mundo moderno. É preciso ir mais além. Se já não cabe mais a fé de Agostinho, não lastime por isso. A fé de Agostinho serviu para legitimar uma Igreja incrustada no ouro para aparentemente louvar a Jesus. Se não há homens como Agostinho nos dias de hoje, é porque o mundo de hoje só enxerga empresário, no máximo “empresários cristãos”. E estes há aos montes por aí.

            Difícil sim é, com esta carga de razão que os séculos já nos deram, entender o quanto é complexo, mas o quanto é necessário, sermos cristãos radicais e transformadores, que não se bastam com a aparência de cristão ou com a esmola de cristãos, mas sim buscam aplicar total e radicalmente o dito de Agostinho, tão radicalmente que nem o próprio Agostinho pudesse prever a amplitude de suas palavras: “só amo a ti, só teu quero ser”. Este é um mundo novo, nem medieval nem capitalista, um mundo onde a fraternidade não seja reparação da injustiça, mas seja o próprio sistema da justiça.

 

Fonte: Cristianismo Libertador, Alysson Mascaro. Editora Comenius.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

A CULPA É DA JUVENTUDE?

    Por Ana Cláudia Laurindo Para os jovens deste tempo as expectativas de sucesso individual são consideradas remotas, mas não são para todos os jovens. A camada privilegiada segue assessorada por benefícios familiares, de nome, de casta, de herança política mantenedora de antigos ricos e geradora de novos ricos, no Brasil.

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

O MOVIMENTO ESPÍRITA MUNDIAL É HOJE MAIS AMPLO E COMPLEXO, MAS NÃO É UM MUNDO CAÓTICO DE UMA DOUTRINA DESPEDAÇADA*

    Por Wilson Garcia Vivemos, sem dúvida, a fase do aperfeiçoamento do Espiritismo. Após sua aurora no século XIX e do esforço de sistematização realizado por Allan Kardec, coube às gerações seguintes não apenas preservar a herança recebida, mas também ampliá-la, revendo equívocos e incorporando novos horizontes de reflexão. Nosso tempo é marcado pela aceleração do conhecimento humano e pela expansão dos meios de comunicação. Nesse cenário, o Espiritismo encontra uma dupla tarefa: de um lado, retornar às fontes genuínas do pensamento kardequiano, revendo interpretações imprecisas e sedimentações religiosas que se afastaram de seu caráter filosófico-científico; de outro, abrir-se à interlocução com as descobertas contemporâneas da ciência e com os debates atuais da filosofia e da espiritualidade, como o fez com as fontes que geraram as obras clássicas do espiritismo, no pós-Kardec.

PRÓXIMOS E DISTANTES

  Por Marcelo Henrique     Pense no trabalho que você realiza na Instituição Espírita com a qual mantém laços de afinidade. Recorde todos aqueles momentos em que, desinteressadamente, você deixou seus afazeres particulares, para realizar algo em prol dos outros – e, consequentemente, para si mesmo. Compute todas aquelas horas que você privou seus familiares e amigos mais diletos da convivência com você, por causa desta ou daquela atividade no Centro. Ainda assim, rememore quantas vezes você deixou seu bairro, sua cidade, e até seu estado ou país, para realizar alguma atividade espírita, a bem do ideal que abraçaste... Pois bem, foram vários os momentos de serviço, na messe do Senhor, não é mesmo? Quanta alegria experimentada, quanta gente nova que você conheceu, quantos “amigos” você cativou, não é assim?

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

DEMOCRACIA SEM ORIENTAÇÃO CRISTÃ?

  Por Orson P. Carrara Afirma o nobre Emmanuel em seu livro Sentinelas da luz (psicografia de Chico Xavier e edição conjunta CEU/ FEB), no capítulo 8 – Nas convulsões do século XX, que democracia sem orientação cristã não pode conduzir-nos à concórdia desejada. Grifos são meus, face à atualidade da afirmação. Há que se ressaltar que o livro tem Prefácio de 1990, poucas décadas após a Segunda Guerra e, como pode identificar o leitor, refere-se ao século passado, mas a atualidade do texto impressiona, face a uma realidade que se repete. O livro reúne uma seleção de mensagens, a maioria de Emmanuel.

ALLAN KARDEC E A DOUTRINA ESPÍRITA

  Por Doris Gandres Deolindo Amorim, ilustre espírita, profundo estudioso e divulgador da Codificação Espírita, fundador do Instituto de Cultura Espírita do Brasil, em dado momento, em seu livro Allan Kardec (1), pergunta qual o objetivo do estudo de uma biografia do codificador, ao que responde: “Naturalmente um objetivo didático: tirar a lição de que necessitamos aprender com ele, através de sua vida e de sua obra, aplicando essa lição às diversas circunstâncias da vida”.

A FÉ NÃO EXCLUI A DÚVIDA

  Por Jerri Almeida A fé não exclui a dúvida! No espiritismo, a dúvida dialoga filosoficamente com a fé. O argumento da “verdade absoluta”, em qualquer área do conhecimento, é um “erro absoluto”. No exercício intelectual, na busca do conhecimento e da construção da fé, não se deve desconsiderar os limites naturais de cada um, e a possibilidade de autoengano. Certezas e dúvidas fazem parte desse percurso!