segunda-feira, 12 de julho de 2021

FÉ INABALÁVEL E RAZÃO - O SIGNIFICADO DE RELIGIÃO PARA ALLAN KARDEC - PARTE III


 

3 - A PERSPECTIVA SECULARIZADA DE KARDEC SOBRE A RELIGIÃO

O Iluminismo, segundo a ótica de seus defensores, foi um conjunto de eventos que instauraram a permissão à humanidade de pensar sobre Deus, sobre o universo e tudo ao seu redor. Para os iluministas, o ser humano não mais estaria submetido às estruturas sagradas das instituições religiosas, pois elas não poderiam mais se proclamar guardiãs das verdades do mundo. Pensadores dos mais diversos matizes surgiram, desvendando realidades no campo da ciência e da cultura:

 

“Em 1784 Kant publicou um pequeno panfleto intitulado O que é o Iluminismo? Trata-se de uma descrição do novo homem que ele julgava ver nascer. Livre da tutelagem de forças externas a ele mesmo, não mais submisso a qualquer poder heteronômico, este novo homem anuncia a sua bandeira: “Sapere aude! Ousa Saber. Tem coragem de usar sua razão”. Abre-se um mundo novo como permissão e convite. Nasce o homem livre e com coragem para conhecer e dominar tal mundo. Transformação fundamental. De santo a cientista. (ALVES, 1984, p. 67).”

 

Alguns pensadores à luz de uma perspectiva secular, como Hegel (1770-1831), Heinrich Heine (1797-1856) e Nietzsche (1844-1900) suscitaram a morte de Deus, num mundo onde haveria a prevalência tão somente da existência do ser humano e a realidade científica à sua volta. O mundo intelectual não mais escutaria aos argumentos teológicos da existência de Deus. Ao contrário do que se acreditou por um tempo, o pensamento secularizante não matou Deus, e sim deu a possibilidade de fazer as perguntas essenciais de forma diferente:

 

“Pode o cientista como cientista levantar a pergunta acerca de Deus? Não implicaria esta pergunta que ele já rompeu com a ortodoxia da ciência? A morte de Deus, assim, se apresenta como um silêncio túrgido de significações antropológicas e sociais. Vivemos em uma época que proibiu o mistério [...]. Porque o grande dogma do mundo que se chama científico é que a realidade é auto-explicativa e que a razão dispõe dos instrumentos para decifrar o enigma que lhe é proposto. Talvez que, ao invés de falar da morte de Deus, seria mais correto falar do “eclipse de Deus”, como Martin Buber sugere. (ALVES, 1984, p. 61).”

 

E é nessa linha de raciocínio que vamos encontrar Kardec questionando os princípios da vida, indagando de onde viemos e para onde vamos, como todos os pensadores de sua época:

 

“Compreendi, antes de tudo, a gravidade da exploração que ia empreender; percebi, naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade, a solução que eu procurara em toda a minha vida. Era, em suma, toda uma revolução nas ideias e nas crenças; fazia-se mister, portanto, andar com a maior circunspeção e não levianamente; ser positivista e não idealista, para não me deixar iludir. (KARDEC, 2016, p. 240, grifo nosso).”

 

Na citação acima, Kardec se refere aos seus estudos sobre o que chamou de fenômenos espíritas. Nessa passagem é possível perceber que o seu pensamento, se não era claramente científico, era com certeza filosófico, já que ele não estava em busca de uma explicação religiosa para as situações que ele vivenciara. Fica claro o pensamento secularizante no trecho grifado, pois o princípio que outrora tratava apenas da separação do Estado e da Igreja, agora atingia o indivíduo, que se permitia investigar aquilo que tinha sido tratado no passado por mistérios que pertenciam tão somente ao domínio da Igreja, e Kardec não estava sozinho nisso.

Contudo, ainda aqui a linha de separação entre o que é religioso e o que é filosófico é extremamente tênue. “Desde que a filosofia nasceu, a religião tornou-se um tema seu. Com efeito, a maior parte das questões a que os filósofos tentaram responder [...], foram antes temas de narrativas mitológicas, de celebrações culturais e sentenças da sabedoria religiosa.” (SCHAEFFLER, 1992, p. 13).

Augusto César Dias de Araujo, doutor em Ciência da Religião pela UFJF, defende que há no Espiritismo um caráter polissêmico, quando navega entre a Filosofia, a Ciência e a Religião. Em seu artigo datado de fevereiro de 2010, Araujo afirma que o Espiritismo tratar-se-ia de um híbrido. Em seus estudos, ele afirma que Kardec posiciona o Espiritismo numa posição de ponte entre a Filosofia, a Ciência e a Religião:

 

Como se viu, em suas relações com a ciência, a filosofia e a religião, o espiritismo se coloca como um entre-lugar – um espaço de encontro e reapropriação. A partir daí, forja uma identidade híbrida, marcada pelo signo da mediação. Ou seja, para Kardec, o espiritismo aponta para algo além, para o pós-ciência, pós-filosofia e pós-religião. [...] no espiritismo, [...] encontra-se um tipo bem-acabado de movimento religioso de fronteira, que tende a transitar entre representações ambíguas e cuja configuração híbrida indica uma dupla tendência. Por um lado, pode-se dizer que há um esforço de Kardec no sentido de secularizar a religião ao aproximá-la de conceitos como ciência e filosofia – esta última não mais compreendida como serva da teologia, mas, em certo sentido, como instrumento de validação racional da religião –, já que, aliada à noção de método experimental, a filosofia espírita pretende dar à religião – e religião cristã – a prova definitiva de seus postulados básicos. Por outro lado, Kardec parece querer propor que a ciência amplie seus horizontes e passe a considerar o antigo objeto da religião (Deus, alma e vida futura) como parte dos fenômenos naturais a serem investigados. (ARAUJO, 2010, p. 132).

 

No ano seguinte à publicação da obra basilar do Espiritismo, Kardec fundou, em 01 de janeiro de 1858, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que se tratava de uma associação civil dedicada ao estudo dos fenômenos espíritas, o que aponta para um movimento de desvinculação com as instituições tradicionais, já que não tinha nenhum vínculo nem com Estado, nem com a Igreja. A sociedade fundada por Kardec podia figurar-se como um dos exemplos do fenômeno da secularização, um dos diversos embriões da sociedade pós-cristã, que era novidade àquele tempo, mas que é comum na sociedade secular Europeia nos dias de hoje, possuindo as mesmas características que nos relata Jean Paul Willaime:

 

A passagem da religião por herança à religião por escolha significa, para o cristianismo na Europa, o fim da “cristianitude”, ou seja, o fim do cristianismo como cultura englobante da sociedade, mesmo sob forma secularizada, e a evolução na direção de um cristianismo como subcultura particular numa sociedade global. Não é, pois, apenas a separação do político e do religioso [...], é também a separação da cultura global e da religião. É neste sentido forte que se pode falar de sociedades pós-cristãs. Individualização, abandono institucional e atomização, de uma parte; buscas identitárias e afirmações comunitárias, de outra. A mundialização e a desterritorialização do religioso acarretam sua reconfiguração como subculturas e como comunidades-redes nas sociedades secularizadas e pluralistas. Doravante, as religiões constituem subculturas que oferecem um sentido a seus membros, permitindo a eles se orientarem numa sociedade pluralista, em grupos de referência, em recintos de convicção que os indivíduos escolhem individualmente. O religioso não é mais o dossel sagrado das sociedades, os guarda-chuvas sagrados de que Christian Smith fala ou, antes, o que poderíamos qualificar de “capiteis sagrados” ou “tendas sagradas”, para melhor assinalar a um só tempo o caráter comunitário e individual dessas subculturas religiosas nas sociedades pluralistas. (WILLAIME, 2007, p. 04).

 

Como diz Willaime, não há mais “uma cultura englobante” que determina a forma de pensar Deus; não havia uma forma única de pensar, e não existia para Kardec e seus adeptos uma atitude de radicalização de pensamento, como a ideia de Deus estar morto ou o pensamento de o indivíduo estar submetido à Igreja. Allan Kardec e seus colegas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas pensavam livremente e não se intitulavam ateus; ao contrário, entendiam que os estudos do Espiritismo fortaleceriam suas crenças individuais, pois não acreditavam, pelo menos naquele momento, que seu pensamento se caracterizava como religioso. O pensamento secularizado de Kardec fica mais fortemente estabelecido em suas palavras, quando diz que:

 

Visando a desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vai destruir a religião. Sabeis que é exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, a elas vão com recolhimento. Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o Espiritismo mais poderoso. Afirmá-lo seria falta de habilidade, porquanto seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro. O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em particular. Por isso não aconselha a ninguém que mude de religião. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela sua consciência [...] (KARDEC, [1862]/(2007b), p. 62-63, grifo nosso).

 

A citação acima traz diversas questões que julgamos relevantes e dentre elas destacamos as frases: “a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem” e “Deixa a cada um a liberdade de adorar a Deus à sua maneira”. Essas afirmações trazem embutidas em si pelo menos dois significados relevantes: no primeiro, Kardec aceita a existência de Deus e da alma, e acredita que cada indivíduo tem a liberdade de “orar” ou “cultuar” a divindade como queira. Também deixa claro que não é contra a religião e que acredita que o conhecimento do Espiritismo pode, na verdade, fortalecer a crença do indivíduo em sua crença particular. Para Kardec, isso se dá na medida em que o que estava oculto no passado vem à tona com o Espiritismo, pelos liames da razão.

Ao dizer que “não aconselha a ninguém que mude de religião” e que cada um pode “adorar a Deus à sua maneira”, percebemos ainda que Kardec alimentava em si a ideia de que não havia uma só religião e que cada um poderia escolher a sua. Além disso, acreditava que os fatos que ele pesquisava iriam trazer elementos palpáveis do mundo metafísico e que não seria papel do Espiritismo lidar com essa relação do ponto de vista teológico, já que a religião se ocupava de tal função. Apesar de dar crédito às religiões, Kardec tinha um conceito particular a respeito do Cristianismo, como já falamos. Outra questão, que é mais importante por sinal, é que ele põe a religião e o Espiritismo em “lugares” separados e não conflitantes, sendo, porém, complementares. Com essas afirmações, Kardec faz a compatibilização de algo que o antropólogo Clifford Geertz (1978) anos mais tarde diria não ser possível “A Perspectiva Religiosa” e a “Perspectiva Científica”.

Geertz define “perspectiva” “como um modo de ver, no sentido mais amplo de ‘ver’ como significado ‘discernir’, ‘aprender’, ‘compreender’, ‘entender’. É uma forma particular de olhar a vida, uma maneira particular de construir o mundo” (GEERTZ, 1978, p. 81). Kardec tinha sua própria perspectiva, a qual não era propriamente religiosa, podendo se dizer que era filosófica, mas que não descartava a “perspectiva religiosa”. Na perspectiva de Kardec, a autoridade do Espiritismo advém da lógica e da observação dos fatos pela razão, devendo a razão rejeitar tudo que esteja em “contradição manifesta com o bom-senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos que possuímos, por mais respeitável que seja o nome que a assine, devendo ser rejeitada.” (KARDEC, 2013, p. 17).

Como já deixamos claro anteriormente, não há critérios bem definidos e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião. Apesar disso, temos que partir de algum ponto e, por essa razão tomamos a definição antropológica de Geertz para compreender alguns pontos de vista de Kardec, sem com isso definitivamente esgotarmos o assunto:

 

[...] uma religião é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas. (GEERTZ, 1978, p. 67).

 

Tentando estabelecer um exercício de diálogo entre os pensamentos de Kardec e Geertz, destacaríamos dois pontos importantes: em primeiro lugar, Kardec concorda com a primeira e a segunda parte da afirmação antropológica de Geertz, a qual estabelece que os símbolos e rituais são a motivação central das religiões; que as mesmas não sobrevivem sem os seus símbolos e rituais (GEERTZ, 1978, p. 71-73), e inclusive, por isto, entende que o Espiritismo não é religião quando afirma que “não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote. ” (KARDEC, 2016, p. 232).

Por outro lado, Kardec não tem o mesmo entendimento de Geertz (1978, p. 80) quando este detalha a terceira e quarta parte de sua definição, afirmando que a crença religiosa não envolve uma indução baconiana da experiência cotidiana baseada numa autoridade estabelecida previamente. É exatamente nesse ponto que Kardec apresenta a possibilidade de uma “perspectiva científica10” na relação com o metafísico, apostando na existência da alma, baseada numa autoridade racional e empírica, e na observação de “provas positivas”, como discorre Mircea Eliade sobre o Espiritismo:

 

“Os fenômenos espiritistas11 são conhecidos desde os tempos antigos e têm sido diferentemente interpretados por várias culturas e religiões. Mas o elemento novo e importante no espiritismo moderno é a sua perspectiva materialista. Antes do mais, existem agora “provas positivas” da existência da alma, ou antes, da existência post-mortem de uma alma: pancadas, inclinações da mesa e, algum tempo depois, as chamadas materializações.” (ELIADE, 1989, p. 61, grifo nosso).”

 

A “perspectiva cientifica” proposta por Kardec, ao contrário do que Geertz (1978, p. 82) apregoa, afirma que o Espiritismo pode enfrentar os fatos seculares sem receios, sem que se torne violável pelas revelações discordantes ou sem “fatualidade” e, ao contrário, Kardec afirma ser plenamente falseável, chegando a afirmar que a fé tem que ser objeto da razão, dizendo que: “Fé inabalável é somente a que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade ” (KARDEC, 2016, p. 232). É por tal “perspectiva científica” que ele vai afirmar, como já dissemos acima, que o Espiritismo não é religião, pois declara formalmente que a mesma prescinde de toda forma ritual na sua prática.

Para a formulação de conceitos, ao contrário do que Geertz afirma no tópico 3 de sua definição, Kardec lançou mão do método de experimentação de Francis Bacon (1561-1626), o qual previa que a formação das leis deveria passar pelo crivo das situações empíricas propostas, numa lógica sequencial de formulação de hipóteses e validação da sua consistência. A isso, Bacon definiu como sendo experimentação. Essa forma de atuação ocupou um lugar privilegiado na proposição de uma metodologia científica, que se pautava pela racionalização de procedimentos e que foi caracterizada como a indução e a dedução.

O método da indução defendido por Bacon é o processo de formular enunciados a partir de observações e coleta de dados sobre o particular, contextualizado no experimento. Estabelecido um problema, o cientista executa experimentos que o levem observações cuidadosas, coleta de dados, registro e divulgação entre outros membros de sua comunidade, na tentativa de refinar as explicações para os fenômenos subjacentes ao problema em estudo (GIORDAN, 1999, p. 2). Esse método fundamenta a chamada ciência indutivista, que nas palavras de Bacon se resume a:

 

“Só há e só podem haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade. Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas mais gerais e, a seguir, a descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e de sua inamovível verdade. A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado. (BACON, 1988, p. 16).”

 

O método científico utilizado por Kardec, portanto, é claramente o “método da experimentação” legado por Francis Bacon, cuja utilização corrobora com “um sentimento profundamente criador, uma confiança absoluta na edificação e na renovação do mundo” (CASSIRER, 1966, p. 195) na Europa, nessa época. Extremamente presente, o evolucionismo herdou do século XVIII esse sentimento de renovação, trazendo em seu bojo o evolucionismo biológico de Darwin (1809-1882), o transformismo de Lamarck (1744-1829), as teorias sociais de Karl Marx (1818-1883) e a revolucionária forma de pensar de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que dentre outros foi colocada em prática por Pestalozzi, mestre de Rivail.

Ao utilizar-se desse método, Kardec tinha a intenção de fugir exatamente do que Geertz propunha como condição para os fenômenos metafísicos: uma “aura de fatualidade” como descreve no tópico quatro; ou seja, a crença no metafísico, ou no religioso, pode sim passar por uma indução baconiana contrariando Geertz.

 

 

Referências:

 

10 Para a formulação de conceitos, ao contrário do que Geertz afirma no terceiro tópico de sua definição, Kardec lançou mão do método de experimentação de Francis Bacon, como afirma Herculano Pires (1975, p. 18) o qual previa que a formação das leis deveria passar pelo crivo das situações empíricas propostas, numa lógica sequencial de formulação de hipóteses e validação da sua consistência. A isso Bacon definiu como sendo experimentação. Essa forma de atuação ocupou um lugar privilegiado na proposição de uma metodologia científica, que se pautava pela racionalização de procedimentos e que foi caracterizada como a indução e a dedução (BACON, 1988, p. 16).

11 Espiritista é sinônimo de Espírita.

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