Pular para o conteúdo principal

CONVOCAÇÃO AOS ESPÍRITAS PELO DIÁLOGO!

 


Um dos propósitos que norteiam a Associação Brasileira de Pedagogia Espírita é o diálogo inter-religioso, o diálogo com outras filosofias, sejam espiritualistas ou materialistas, sem perda da identidade de um espiritismo kardecista livre – conforme já expusemos num manifesto publicado aqui em fevereiro de 2019.

Esse diálogo requer uma arte de empatia, respeito e reconhecimento de valor no outro e ao mesmo tempo, a preservação de um espírito crítico (não demolidor) em relação a qualquer corrente de pensamento, incluindo a nossa. Perder a mão nesse caminho é algo muito fácil, quando nos afastamos da fraternidade e nos deixamos incendiar por paixões avassaladoras.

Mas tenho observado que o mais difícil é manter o diálogo entre nós mesmos – entre aqueles mesmos que se dizem espíritas kardecistas. E quero tecer algumas reflexões em torno desse delicado tema.

Desde o manifesto de 2019, entre os próprios que assinaram aquele manifesto, já houve brigas, cancelamentos, mágoas, raivas e toda espécie de negação de diálogo construtivo. Um dia desses, entrevistando o querido frade franciscano Volney Berkenbrock, em nosso programa Semeando Espiritualidades: Diálogo e Crítica, ele nos apresentava uma ideia interessante: é mais fácil dialogar com o outro mais distante, mais diferente de nós, do que com o que é nosso, está próximo, faz adesão à mesma corrente e pensa diferente. Dizia ele isso para explicar por que católicos progressistas, por exemplo, dialogam com tanta empatia com adeptos das religiões afro-brasileiras ou com budistas e taoístas, mas se esquivam de um encontro com espíritas kardecistas. Para o Frei, e concordei com ele, sendo o espiritismo uma releitura do cristianismo, ele é visto muito mais como uma heresia, do que como outra tradição, que deve ser respeitada.

Para mim, há outros fatores também, que não cabem aqui. Mas sim, na medida em que Kardec destrona Lúcifer, torna os diabos simples seres humanos desencarnados e em estado de sofrimento e endurecimento, considera Jesus não o próprio Deus encarnado, mas um Espírito que nos serve de modelo e guia, que confronta a eternidade das penas e propõe a reencarnação, ele está re-explicando o cristianismo, confrontando dogmas fundamentais, dentro da própria tradição greco-judaico-cristã – porque o espiritismo, sim, está dentro dessa tradição histórica. Compreende-se então o que falou o frei.

Em nosso caso, dos espíritas kardecistas, teríamos que rever posições intolerantes e extremadas, para mantermos um mínimo de fraternidade, colaboração e respeito à diversidade. Senão, tanto criticamos o movimento espírita institucional hegemônico, leia-se FEB e afins – com quem também, na medida do possível, devemos tentar um diálogo (não submisso e acrítico, mas humanamente amistoso), e acabamos por agir como os mais autoritários, impedindo a livre manifestação do pensamento de cada um.

Entendamos que sempre haverá diferenças entre os que mais pensam igual – e ótimo que assim seja, isso é enriquecedor e fecundo e jamais poderemos fugir de nossa subjetividade.

Quero citar aqui algumas diferenças aceitáveis e o que realmente não podemos aceitar como espíritas – seja de que tendência que nos consideremos.

 

  •  Se há espíritas roustainguistas e kardecistas, podemos discutir à vontade as teses de Roustaing e criticá-las (se assim quisermos e acharmos importante, eu particularmente acho relevante, porque o roustainguismo teve um papel histórico importante no sincretismo do espiritismo com o catolicismo no Brasil). Mas nem por isso, não há coisas fundamentais que nos unam, como a reencarnação, a mediunidade e, sobretudo a Ética da fraternidade universal. Por isso, posso discutir até a morte o roustainguismo, mas quem aceita Roustaing não é meu adversário…
  • Há quem aceite que o espiritismo seja uma revisão, uma releitura, uma reafirmação do cristianismo e outros que falam de um espiritismo laico. Estou entre aqueles que afirmam o espiritismo como um resgate de um cristianismo que foi reprimido historicamente. Kardec bateu insistentemente na tecla de que o espiritismo não é religião, mas escreveu O Evangelho segundo o Espiritismo e usa o termo espírita-cristão. Ao mesmo tempo, no próprio Evangelho, anuncia que o espírita poderia pertencer a qualquer culto que quisesse. Então, há espaço para diferentes interpretações do próprio Kardec. Por que nos combatermos mutuamente, ao invés de debatermos civilizadamente? Recentemente, numa live com Jon Aizpurua, um queridíssimo amigo e liderança internacional do espiritismo laico (termo que nunca me convenceu), chegamos a um conceito que nos agradou mutuamente: de que o espiritismo é uma forma de espiritualidade livre. Como se vê, o diálogo encontra pontes. Dentro desse âmbito, quem quiser comemorar Natal e Páscoa ressignificando-os espiritamente, que comemore, quem não quiser, não comemore. Quem quiser orar a Maria (como podemos orar a qualquer Espírito elevado) que ore, quem não quiser nem orar, não ore! E que ninguém se incomode com essas questões de foro íntimo de cada um
  • Nesses últimos anos, a maior ruptura que tivemos no movimento espírita, como de resto em toda a sociedade brasileira, é em relação aos bolsonaristas espíritas. Veja-se que aí não é mais uma questão doutrinária, de detalhes, de briga por palavras ou conceitos. Mas o bolsonarismo fere os princípios éticos básicos do espiritismo. E não só do espiritismo, mas do cristianismo, do budismo, das religiões afro… de uma ética laica, da própria civilização. É simplesmente a barbárie! E estamos testemunhando aonde nos levou essa barbárie: mais de 300 mil mortos por Covid-19 no Brasil. Na medida em que seu líder defende tortura, morte, anulamento do adversário, misoginia, negacionismo científico, homofobia, racismo, armamento da população, ele está completamente fora da moralidade básica de qualquer pessoa racional, saudável psiquicamente, seja espírita ou não. Compreende-se assim que devamos repudiar, criticar, lamentar espíritas que se alinham ao bolsonarismo – e infelizmente foram muitos. Mas não odiá-los, porque não vamos nos igualar a eles em nenhum discurso de ódio.
  • Por conta justamente desse retrocesso experimentado no Brasil, desde o golpe de 2016, e a decepção de muitos espíritas com dirigentes e médiuns bolsonaristas, surgiram inúmeros coletivos, lideranças novas, grupos, que vieram fazer coro a uma visão que a ABPE já cultivava desde o seu início em 2004 – aliás, já antes com a Editora Comenius: uma visão progressista, social e à esquerda do espiritismo, como, pensamos, ele realmente é. Só para lembrar, o último Congresso Brasileiro de Pedagogia Espírita e Internacional de Educação e Espiritualidade, tivemos o tema: Educação, Espiritualidade e Transformação Social. Mas… assim como as esquerdas brigam, se fendem, se combatem, também essa atitude de intolerância e cancelamento já atingiu as fileiras dos espíritas progressistas. Muitos acham que para ser progressista e de esquerda, devemos seguir as cartilhas que cada grupo ou indivíduo seguem. Primeiramente, esses movimentos não poderiam nunca se partidarizar, porque quando discutimos política e sociedade no movimento espírita, devem ser debates teóricos, ações práticas de atuação social, mas jamais a propaganda de um partido ou de uma liderança, embora individualmente, cada qual tenha o direito de ter suas preferências. Dentro de um diálogo da esquerda espírita, cabem sociais-democratas, socialistas, marxistas, anarquistas, partidários da cultura da paz, partidários de pautas identitárias e aqueles que não consideram essas pautas prioritárias no momento… enfim, há espaço para todos, todas e todes (como querem alguns – para mim, me dói ferir a língua, embora é claro, repudio muito mais ferir os corpos). Tudo isso seria possível, se houvesse menos paixão, menos arrebatamento e menos desejo de sermos sempre os únicos donos da verdade.

O desafio, portanto – e isso se estenderia a vários outros temas, como Chico Xavier, Emmanuel, Pietro Ubaldi e ao próprio Kardec, nossa grande referência – é manter o espírito crítico, atualizado, mas equilibrado, preciso, sóbrio, sem arrebatamentos destruidores, sem cancelar quem pensa diferente e colhendo o que é bom no meio de equívocos. Assim agia Kardec, que nunca perdia a classe, tinha um fino espírito de ironia crítica, mas jamais usou as armas do ódio e da destruição do outro. Fraternidade, empatia, diálogo construtivo, argumentativo – essas devem ser as posturas de um espírita.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

JESUS E A IDEOLOGIA SOCIOECONÔMICA DA PARTILHA

  Por Jorge Luiz               Subjetivação e Submissão: A Antítese Neoliberal e a Ideologia da Partilha             O sociólogo Karl Mannheim foi um dos primeiros a teorizar sobre a subjetividade como um fator determinante, e muitas vezes subestimado, na caracterização de uma geração, isso, separando a mera “posição geracional” (nascer na mesma época) da “unidade de geração” (a experiência formativa e a consciência compartilhada). “Unidade de geração” é o que interessa para a presente resenha, e é aqui que a subjetividade se torna determinante. A “unidade de geração” é formada por aqueles indivíduos dentro da mesma “conexão geracional” que processam ou reagem ao seu tempo histórico de uma forma homogênea e distintiva. Essa reação comum é que cria o “ethos” ou a subjetividade coletiva da geração, geração essa formada por sujeitos.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

O NATAL DE CADA UM

  Imagens da internet Sabemos todos que “natal” significa “nascimento”, o que nos proporciona ocasião para inúmeras reflexões... Usualmente, ao falarmos de natal, o primeiro pensamento que nos ocorre é o da festa natalina, a data de comemoração do nascimento de Jesus... Entretanto, tantas são as coisas que nos envolvem, decoração, luzes, presentes, ceia, almoço, roupa nova, aparatos, rituais, cerimônias etc., que a azáfama e o corre-corre dos últimos dias fazem-nos perder o sentido real dessa data, desse momento; fazem com a gente muitas vezes se perca até de nós mesmos, do essencial em nós... Se pararmos um pouquinho para pensar, refletir sobre o tema, talvez consigamos compreender um pouco melhor o significando do nascimento daquele Espírito de tão alto nível naquele momento conturbado aqui na Terra, numa família aparentemente comum, envergando a personalidade de Jesus, filho de Maria e José. Talvez consigamos perceber o elevado significado do sacrifício daqueles missionári...

A ESTUPIDEZ DA INTELIGÊNCIA: COMO O CAPITALISMO E A IDIOSSUBJETIVAÇÃO SEQUESTRAM A ESSÊNCIA HUMANA

      Por Jorge Luiz                  A Criança e a Objetividade                Um vídeo que me chegou retrata o diálogo de um pai com uma criança de, acredito, no máximo 3 anos de idade. Ele lhe oferece um passeio em um carro moderno e em um modelo antigo, daqueles que marcaram época – tudo indica que é carro de colecionador. O pai, de maneira pedagógica, retrata-os simbolicamente como o amor (o antigo) e o luxo (o novo). A criança, sem titubear, escolhe o antigo – acredita-se que já é de uso da família – enquanto recusa entrar no veículo novo, o que lhe é atendido. Esse processo didático é rico em miríades que contemplam o processo de subjetivação dos sujeitos em uma sociedade marcada pela reprodução da forma da mercadoria.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

EU POSSO SER MANIPULADO. E VOCÊ, TAMBÉM PODE?

  Por Maurício Zanolini A jornalista investigativa Carole Cadwalladr voltou à sua cidade natal depois do referendo que decidiu pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia (Brexit). Ela queria entender o que havia levado a maior parte da população da pequena cidade de Ebbw Vale a optar pela saída do bloco econômico. Afinal muito do desenvolvimento urbanístico e cultural da cidade era resultado de ações da União Europeia. A resposta estava no Facebook e no pânico causado pela publicidade (postagens pagas) que apareciam quando as pessoas rolavam suas telas – memes, anúncios da campanha pró-Brexit e notícias falsas com bordões simplistas, xenofobia e discurso de ódio.

A DOR DO FEMINICÍDIO NÃO COMOVE A TODOS. O QUE EXPLICA?

    Por Ana Cláudia Laurindo A vida das mulheres foi tratada como propriedade do homem desde os primevos tempos, formadores da base social patriarcal, sob o alvará das religiões e as justificativas de posses materiais em suas amarras reprodutivas. A negação dos direitos civis era apenas um dos aspectos da opressão que domesticava o feminino para servir ao homem e à família. A coroação da rainha do lar fez parte da encenação formal que aprisionou a mulher de “vergonha” no papel de matriz e destituiu a mulher de “uso” de qualquer condição de dignidade social, fazendo de ambos os papéis algo extremamente útil aos interesses machistas.

DIVERSIDADE SEXUAL E ESPIRITISMO - O QUE KARDEC TEM A VER COM ISSO?

            O meio espírita, por conta do viés religioso predominante, acaba encontrando certa dificuldade na abordagem do assunto sexo. Existem algumas publicações que tentam colocar o assunto em pauta; contudo, percebe-se que muitos autores tentam, ainda que indiretamente, associar a diversidade sexual à promiscuidade, numa tentativa de sacralizar a heterocisnormatividade e marginalizar outras manifestações da sexualidade; outros, quando abrem uma exceção, ressaltam os perigos da pornografia e da promiscuidade, como se fossem características exclusivas de indivíduos LGBTQI+.