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CRÔNICAS DO COTIDIANO: "A ESCRAVA E O PROFESSOR"

Madalena Gordiano
Madalena Giordano: Antes e depois

 

         A transformação a que foi submetida Madalena Giordano, de 46 anos, (fotos acima) que por 38 anos, vivia submetida à situação análoga à escravidão, por um professor universitário,(saiba mais) não só nos causa perplexidade, mas é um convite a profundas reflexões na condição em que se afirma o Ser Humano.

Eduardo Giannetti, economista, professor, autor e palestrante brasileiro, em artigo recente no Estadão, afirmou que o Brasil vive o Antigo Regime, aquele mundo pré-revolução francesa, em que uma classe de pessoas ricas achava que podia transgredir as normas e as leis que regiam a vida em sociedade. Hoje têm-se que admitir e ir além. É uma percepção de mundo.

            O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, fato que ocorreu em 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea. Na realidade, não houve abolição da escravidão na prática. A escravidão é estrutural no Brasil e no mundo. Ela se mimetiza, como o camaleão, por ter a capacidade de imitar o ambiente, para se confundir com ele.O camaleão faz isso trocando de cor, porque consegue controlar a concentração de pigmento nas células de sua pele.

Em pleno século XXI, no entanto, o trabalho escravo na condição acima, mimetizada, campeia as relações do capital e do trabalho. O capitalismo, a exemplo do camaleão, assumiu o escravagismo com um discurso pressupondo o trabalhador livre e, embora despojado dos meios de produção, é capaz de atingir o sucesso, na visão materialista, é a tal da meritocracia.

Assim, o trabalho escravo sobreviveu ao século XX e amanheceu vigoroso no terceiro milênio, revigorado que está pela crescente desregulamentação das relações entre capital e trabalho, promovida pelo neoliberalismo. Vê-se como exemplo a “uberização” do trabalho que se consolidou com a informalidade do trabalho, onde o trabalhador não goza de nenhum amparo social e trabalhista.

A questão primordial nesse processo, para não se estender, é que as leis são brandas e o Estado e o Congresso protegem o trabalho escravo.

Eric Williams, em sua obra Capitalismo e Escravidão, cita o seguinte exemplo:

 

“A Rainha Vitória mandou uma mensagem famosa para dois chefes africanos. ‘A Inglaterra se tornou grande e feliz pelo conhecimento do verdadeiro Deus e de Jesus Cristo’. Para o capitalista de Manchester, ‘Jesus Cristo’ era o Livre-Câmbio e o Livre Câmbio era Jesus Cristo.”

 

            William tem razão. Esse é o pensamento do sistema de mercados que impera no mundo e cooptou todos os sistemas de governanças, com poucas e raras exceções e as sociedades pagam um preço altíssimo pelo enfrentamento ou não.

Nos primórdios do Espiritismo no Brasil, na década de 1880, encontramos muitos intelectuais espíritas envolvidos na discussão da abolição da escravidão, destaques para Antônio da Silva Neto, Adolfo Bezerra de Menezes e Francisco Leite Bittencourt Sampaio

            No capítulo X-II, do Livro Terceiro em O Livro dos Espíritos, os Reveladores Celestes não deixam dúvida tão quão é condenável a escravidão. A desigualdade natural das aptidões não coloca ninguém acima de ninguém, que autorize  tanta subjugação. Quando ocorrer a desigualdade de aptidões, é para elevar e não embrutecer.

            A escravidão macera o corpo e a alma. Embrutece o ser. Os semblantes de Madalena Giordano, antes e depois da liberdade, é a expressão do Espírito.

            O trabalho escravo contemporâneo é uma grave violação dos Direitos Humanos e reflete o processo excludente brasileiro pós-emancipação em 1888, que deixou contingentes negros e pobres à margem da sociedade, sem acesso à terra e ao trabalho.

Atualmente, ela está presente em todo o território nacional e, nos últimos 15 anos, 45.028 trabalhadores foram resgatados das condições de trabalho escravo em todo o país. A população afetada é, em geral, composta por homens, jovens, solteiros, mestiços, com baixa escolaridade, atuando em setores da agricultura, construção civil, pecuária e indústria da moda, seja no campo ou nas grandes cidades.

Os impactos na saúde dos trabalhadores alcançam repercussões significativas que atingem também os seus arranjos familiares.

Chamam a atenção os estudos clássicos sobre a constituição da escravidão, que demonstram como a quebra dos vínculos familiares era largamente utilizada segundo estratégia de submissão e escravização de trabalhadores.

Fica claro nos discursos o quanto as condições da escravidão contemporânea são degradantes. Os trabalhadores são expostos à restrição da liberdade de ir e vir e experienciam aprisionamento por dívida, más condições de nutrição, alojamento e execução de atividades, quase sempre em jornadas exaustivas.

Enquanto vigente o neoliberalismo, o homem não conseguirá vencer a escravidão, em  seus amplos espectros.

As repercussões do trabalho escravo, conquanto, não se circunscrevem somente neste plano. O Espírito André Luiz relata o caso de uma senhorinha idosa que, ao ser acolhida no plano espiritual, reclamava em altos brados de uma situação ultrajante que fora submetida por muito tempo após a sua desencarnação. Após ser acolhida e indagada sobre os motivos de tal sofrimento, na sua compreensão, estivera no inferno sob o jugo de seres diabólicos que a mantiveram encarcerada por muito tempo. Afinal, ela dizia: “Fui, na Terra, uma mulher de bons costumes; fiz muita caridade, rezei incessantemente como sincera devota; uma boa religiosa”.

Na continuidade do seu enredo, a “generosa” mulher detalhou a forma que ela aplicava a disciplina nos seus escravos. Os feitores eram excessivamente escrupulosos. Não raro, no entanto, algumas vezes morria um no tronco para correção geral; outras vezes era obrigada a vender as mães cativas, separando-as dos filhos, por questões de harmonia doméstica. Às vezes, doía a consciência, mas fazia questão de realizar a confissão todos os meses para o padre Amâncio, que a visitava na fazenda, e depois da comunhão pensava estar livre dessas venais. Esclarecida pelos orientadores espirituais de que somos todos irmãos, demonstrando-a que servos e senhores são todos iguais perante o Pai, ela redarguiu e desfilou as suas impressões e as do padre Amâncio sobre os escravos.

            Kardec, no comentário da questão nº 829, de O Livro dos Espíritos, é claro ao afirmar que a escravidão é contra a lei da natureza, pois assemelha o homem ao bruto e o degrada moral e fisicamente.

            Ouça-se, por fim, o grito de revolta de Elza Soares, em sua canção A Carne:

 

Que vai de graça pro presídio

E para debaixo do plástico

E vai de graça pro subemprego

E pros hospitais psiquíatricos

A carne mais barata do mercado é a carne negra

Dizem por aí

A carne mais barata do mercado é a carne negra

 

Referências:

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.

XAVIER, Francisco C. Nosso Lar. Brasília: FEB, 1992.

WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Rio de Janeiro: CEA, 1975.

 

SITE:

<https://scielosp.org/article/icse/2020.v24/e200004/>.

Comentários

  1. Precisamos falar mais desse assunto até entendermos que baixos salários, diminuição de direitos trabalhistas, pejotização e uberização são formas novas de exploração, uma escravização de outra maneira, mudando as coisas para continuarem as mesmas.

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