Do ponto de vista espírita, somos Espíritos livres, que em múltiplas vidas e experiências, estamos aprendendo a usar essa liberdade. O Supremo Autor da Vida nos lançou em projeto no universo, para irmos construindo nossa evolução, através de erros e acertos. Ele não interfere, a não ser para nos enviar convites, exemplos, estímulos amorosos, através de mestres – de outros Espíritos próximos ou distantes, que já estão mais maduros e desenvolvidos. Ele não nos pune – em que pese infelizmente a palavra “castigo” ainda estar presente nas obras de Kardec, como uma reminiscência do ranço católico e jurídico da época. Mas a ideia espírita em seu conjunto não é punitiva, e sim evolucionista e pedagógica.
Tenho mesmo observado numa visão terapêutica e reencarnacionista, que essa punição rígida da chamada lei de causa e efeito é uma autoimposição que nós mesmos nos fazemos, enquanto temos escassos recursos de autoperdão e de compreensão e que muito melhor é reparar, reconstruir, refazer do que ficar se autoflagelando em doenças terríveis, em tragédias violentas… Quando passamos a entender Deus como amor infinito, sabendo que a lei maior do universo é a lei do amor, que se manifesta em forma de compaixão e misericórdia, (já dizia Jesus que o amor cobre a multidão de pecados), então também temos esse entendimento para conosco e para com o próximo. Não mais julgamentos sombrios, condenações sumárias, punições dramáticas… escapamos dessa roda cármica de sofrimento, para entrarmos na trilha ascensional do refazimento, da construção. Ou seja, não mais aquela frase: temos a liberdade do plantio e depois a obrigatoriedade da colheita. Mas esta: temos a liberdade do plantio e a liberdade de novo e melhor plantio, arrancando as ervas daninhas que semeamos.
Mas, se a consciência ainda não despertou, ainda se compraz no sofrimento alheio, aí sim, a dor pode nos visitar como medida de despertamento, nunca de castigo.
Faço aqui todas essas reflexões porque estamos assistindo a um recrudescimento de ideias, atitudes e tendências autoritárias e repressivas, de uma sociedade que regride a passos largos para a ditadura, intolerância e cerceamento da liberdade.
Alguns evangélicos humilhando e exercendo violência contra pessoas do Candomblé e da Umbanda (muito em breve podemos ser nós os espíritas, os objetos de perseguição); exposições sendo canceladas, quadros sendo apreendidos (que supostamente estariam incentivando à pedofilia, mas na verdade estavam criticando essa calamidade muito comum), professores sendo demitidos por terem uma ideologia de esquerda, projetos de lei como a Escola sem Partido, que pretendem estabelecer a delação e a perseguição política como forma de relação entre aluno e professor… Tempos sombrios, de retrocesso.
Em primeiro lugar, temos que compreender que repressões à liberdade de expressão, cerceamento aos direitos individuais sempre partem de pessoas que não têm qualquer moral para se tornarem vigilantes da moral e da liberdade alheias. Veja-se, por exemplo, um certo deputado que participou de uma visita vigilante a um museu de Brasília, com o intuito de verificar se a exposição tinha de ser censurada (a situação toda já é absurda!): ele mesmo foi acusado recentemente de estupro e assédio sexual e depois o caso foi abafado. Vejam-se os católicos conservadores (não foram apenas católicos, mas os estou citando como exemplo) que se manifestaram à porta da tal exposição Queer no Rio Grande do Sul, porque segundo eles, a tal exposição seria um incitamento à pedofilia. Onde estavam esses católicos quando durante séculos e até o século XXI, uma imensa quantidade de padres não apenas incentivou, como praticou a pedofilia, deixando gerações inteiras marcadas por essa experiência traumática?
O moralismo excessivo, repressor, muitas vezes nasce de uma violenta atitude de reprimir desejos e tendências internas, que a pessoa não olha, não sabe lidar ou quer colocar para debaixo do tapete. Ou ainda, quer mostrar socialmente que condena algo, que faz escondido ou gostaria de fazer e não tem coragem.
Quem não fica de vigilante policialesco com as atitudes do próximo, quem não banca o inquisidor a toda hora, está bem consigo mesmo, agindo de acordo com sua consciência, sem necessidade de se colocar como parâmetro do gosto, do bem e do belo para o resto da sociedade.
Mas alguém pode perguntar: então vamos ficar calados diante do lixo, do mau gosto, da perversão, daquilo que corrompe a sociedade – seja o que for que consideremos que seja corruptor da sociedade? Não. Vamos criticar, vamos debater, vamos apontar – mas jamais reprimir, cercear, impedir que outros tenham opiniões diferentes das nossas. E, sobretudo, vamos seguir o conselho de Pestalozzi: não combater as trevas, mas acender uma luz.
Nossa atitude na sociedade tem que ser positiva, construtiva, apresentando alternativas, caminhos de beleza, elevação, dignidade… No campo da arte, apenas para mencionar o tema polêmico desses dias, e falando a espíritas: temos que produzir uma arte mais bela, mais elevada e mais consistente, se não gostamos dessa que está posta. Não se pense que vamos oferecer uma alternativa à desgastada e surrada arte contemporânea, com hinos espíritas, inócuos e melosos; com literatura barata de autoajuda, com uma maioria de médiuns de pintura mediúnica, que querem fazer crer que Renoir ou Monet tenham regredido a garranchos grosseiros – salvo duas ou três exceções, que de fato produzem obras consistentes, cujo nome não vou mencionar, para não criar mais polêmicas.
Compete-nos trabalhar para nos educarmos e educar, entendo que educação é sobretudo um processo de contágio, de exemplo, de estímulos positivos, de caminhos abertos para o alto…
Não nos compete como espíritas, fazer coro com atitudes medievais de repressão, censura e silenciamento do outro. A liberdade – com todos os seus descaminhos, embates, enganos e desvios, mas também com todas as possibilidades, abertura e respeito à consciência de cada um – é sempre a melhor solução, mesmo porque, segundo a visão de mundo espírita, a liberdade é uma lei divina.
Mas uma questão que se impõem é essa: o que fazermos em relação às crianças, quando vemos ou pensamos que há coisas que podem ser estímulos negativos para elas?
Aí vemos uma aberração ainda maior: pessoas se manifestando à porta de um museu, escassamente frequentado – como são todos os museus no Brasil – e não vimos até agora nenhuma manifestação coletiva contra a aberração do Big Brother, por exemplo, na Globo. Aliás, sei de crianças que assistem a esse lixo. A quem cabe escolher, selecionar e quando não for possível, ajudar a criticar e a discernir, o que entra pelos olhos, pelos ouvidos e pelas emoções de uma criança? A família, em primeiro lugar. Não achou bom, não achou edificante, não achou compatível com os valores cultivados em casa? Não leve à exposição, não ligue a televisão, não vá assistir a tal filme… Mas sim, há muita coisa na sociedade atual, que não podemos controlar e que vai chegar à criança. E não podemos também isolá-la socialmente, como querem fazer certos radicais. Então o que fazemos? Munimos as crianças de espírito crítico, assistimos junto com elas, conversamos, debatemos e, sobretudo, ofereçamos alternativas boas. Livros interessantes, exposições culturais estimulantes (sim, vai haver alguns nus, em exposições de qualquer museu do mundo – se você tem problemas com isso, volte à Idade Média ou vá fazer uma terapia), músicas dos grandes clássicos de todos os tempos e dos grandes compositores brasileiros: de Bach a Tom Jobim. Isso é o que se pode e se deve fazer pela educação dos filhos. Mais uma vez, ações positivas e afirmativas e não a tentativa de bloquear a liberdade de outro.
Essas são as atitudes que cabem aos espíritas.
Infelizmente, vejo o clima de intolerância ainda mais reacionário proveniente do meio espírita conservador, que é reforçado por essa visão bizarra do cristianismo, tornando a religião da fraternidade na mais intolerante de todas.
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