Pular para o conteúdo principal

A BANALIZAÇÃO DA CARIDADE

 

 

“O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.” (Simone de Beauvoir)

 


O orador espírita baiano Divaldo Franco comumente relata que em viagem a uma cidade para palestra visitou, a convite da casa espírita anfitriã, família que o grupo espírita já prestava assistência há três gerações. Divaldo interpelou-os como teria sido possível que em três gerações as ações ensejadas não foram capazes de tirá-los do estado de miséria.

Essa assistência social modelou a caridade no movimento espírita brasileiro.  Ouvi recentemente de um espírita: “eu sou capitalista, mas sou a favor da assistência social”. Esse é o drama dos espíritas, a não compreensão da doutrina e, naturalmente, do mundo; isso tem institucionalizado a caridade em um processo permanente de assistente e assistido.

Allan Kardec, no cap. XV:8-9, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, ao cunhar e desenvolver a máxima Fora da Caridade não há Salvação, dá para se perceber o modelo da sua didática – observação e ensino –, e a dialética espírita. Quanto à primeira, diz o professor e filósofo José Herculano Pires:

 

“Uma vez observados os fatos de maneira rigorosa e submetidos à comprovação das experiências, esses fatos passavam do conhecido (realidade palpável e verificável) para o campo do desconhecido (a explicação do mistério), com a revelação de suas leis e sua natureza, passando a constituir elementos de uma filosofia “desprovida de espírito de sistema”.

 

            ­­­Com o propósito de ser o futuro das religiões, na poética de Léon Denis, Allan Kardec recorre ao princípio universal do amor, arguindo a fraternidade e a igualdade – como cumprimento à Lei de Deus – estabelece a caridade como paradigma maior da salvação, em detrimento da igreja e da verdade.

            Fica evidente nessas conclusões de Kardec a utilização do processo dialético do Espiritismo, visto em todo o diálogo em O Livro dos Espíritos, os opostos, na fusão das contradições à busca de uma nova criação.

            No item 10, do mesmo capítulo, se desenvolve o pensamento do Espírito Paulo, o apóstolo, acerca da amplitude do significado da virtude caridade, colocando seu exercício como reflexo do mais puro Cristianismo, quando ele afirma: “Submetei todas as vossas ações ao governo da caridade e a consciência vos responderá.” Aqui se resume a educação segundo Allan Kardec, delineada nos comentários à questão nº 685-a de O Livro dos Espíritos: “a educação que consiste na arte de formar caracteres, aquela que cria os hábitos, porque educação é conjunto de hábitos adquiridos.”

         Amit Goswami, Ph.D em Física Quântica, referência mundial em estudos que buscam conciliar ciência e espiritualidade, fortalece o pensamento de Kardec, ao estudar as variações do carma nas reencarnações, associando a ciência quântica e as filosofias orientais, quando considera a caridade como doações aos pobres ou coisa parecida, não acumulam, necessariamente, carma positivo. Para isso, ele considera a memória dispositiva (altera conduta), quando permite descobrir e expressar criativamente o seu propósito, vivendo os contextos dos quais a consciência se conhece (autoconhecimento).

Portanto, as iniciativas caritativas pontuais, principalmente em momentos festivos, como o Natal, e outras demandadas por atividades filantrópicas, não deixam de ser importantes, entretanto, necessariamente, não têm registro significativo na Lei de Causa e Efeito. A caridade não é apenas um evento isolado, mas efetivamente um modo; um hábito de vida: “Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas,” questão nº 886, de “O Livro dos Espíritos.” Kardec, nos comentários desta questão, arremata: “A caridade, segundo Jesus, não se restringe à esmola, mas abrange todas as relações com o os nossos semelhantes (...).”

            Ademais, a caridade realizada dentro das posições de desigualdades do mundo capitalista, não observadas algumas considerações, a exemplo do fato comentado por Divaldo Franco, não raro, engessa indivíduos e minorias em posições subalternas. Isso guarda relação com o conceito de dádiva de Marcel Mauss (1872-1950), sociólogo e antropólogo francês, que considerou que a dádiva pressupõe três obrigações: dar, receber e restituir. Maurice Godelier, antropólogo francês, em sua obra O Enigma do Dom, afirma que Mauss, na tentativa de decifrar o enigma da dádiva, formula duas questões:

a)    Qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente restituído?

b)    Que força há na coisa que se dá que faz com que o donatário a restitua?

O curioso na teoria de Mauss, que ao ressaltar a obrigação de restituir, onde ele invocava a existência de um espírito na coisa que leva aquele que recebe a retribuir, algo como se de regra de direito e de interesse fosse aos seus olhos insuficiente e se tornasse necessário acrescentar uma dimensão “religiosa”. Godelier vai encontrar em Levi-Strauss (1908-2009), antropólogo e filósofo francês, nascido na Bélgica, a razão para romper seu receio de que Mauss teria se deixado mistificar por uma teoria indígena, esquecendo o espírito científico. E a conclusão de Strauss interessa aos espíritas. Strauss propõe que:

 

“uma explicação do conjunto dos fatos sociais que fazia do social uma combinação de formas de troca, cuja origem profunda deveria ser buscada nas estruturas inconscientes do espírito, em sua capacidade de simbolizar.”

 

Portanto, aí estão as perspectivas visionárias sobre a dádiva (caridade), as trocas, o inconsciente e a origem da sociedade, diz Godelier. É fundamental entender o aspecto político da dádiva, já que o dom confere e distribui poderes no sistema de partilha, em não se considerando isso, é uma violência simbólica.

            Esse é o ponto de contato da caridade com a cidadania, e dos espíritas com o ativismo político. Aqui se faz necessário destacar três aspectos importantes, que devem se relacionar com o caso citado por Divaldo:

 

a)      ações empreendidas junto às famílias não promoveram nenhuma mobilidade social, cristalizando os outros em uma oposição a quem tem a oferecer;

b)      dentro de uma economia da dádiva (dar, receber e retribuir), sua ação não equivale a uma reciprocidade em impactos econômicos, sociais e culturais que seu modelo de consumo usualmente sustenta;

c)      em todas as narrativas que envolvem ações caritativas, o quesito cidadania é levantado, muito embora a simples posse de bens e serviços não consolide transformar os excluídos em protagonistas sociais.

 

O Brasil é o nono país mais desigual do mundo, segundo o IBGE. Antes da pandemia o Brasil tinha 51,7 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza. Essa população é considerada invisível. Ora, atender essa população sazonalmente, e mesmo que fosse continuadamente, das suas necessidades básicas, não reveste a situação econômico-simbólica desigual e ancestralmente humilhante a que ela vem sendo submetida pelo arranjo capitalista. É preciso que esses indivíduos tomem e anunciem iniciativas por meio de voz e palavras, presentes os dispositivos constitucionais.

É fundamental que os espíritas comecem a discutir um novo modelo de assistência social espírita que vá além da doação material, mas que busque uma interação do saber-poder que os indivíduos tenham vozes, ao invés de ficarem engessados em condições de humilhação, invisibilidade e silêncio.

 

Referências:

GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.

_____________ O evangelho segundo o espiritismo. São Paulo. EME. 1996.

PIRES, Herculano J. Pedagogia espírita.  Minas Gerais: Herculano Pires, 1994.

Site:

<https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/5298>.

Comentários

  1. Boas provocações este artigo nos traz. Entender a caridade numa relação direta com a moral (benevolência, indulgência e perdão) e tendo em vista que a moral se realiza na conduta, na prática, ou seja, em nossas atitudes, é importante para pensar a caridade numa associação direta com a justiça, e mais especificamente, com a justiça social. O sistema capitalista que organiza, de maneira hegemônica, a vida em sociedade, é uma usina a produzir estímulos para que nosso egoísmo e nosso orgulho sejam alimentados. Uma grande prova para todos nós! Resta saber quem está disposto a resistir a esse canto da sereia do capitalismo e assumir de vez sua luta contra esses vícios. Uma luta que é dialeticamente individual e coletiva, porque se dá no íntimo da alma e no campo das relações. Pensemos!

    ResponderExcluir
  2. Valeu amigo Joge. Ao final de tudo vale questionar se a "caridade" que se pratica é filha genuína da piedade que humilha o receptor ou provém de uma atitude pensada de apoio à tomada da dignidade daqueles que são esfolados pela desigualdade. A primeira opção é uma excelente varrida de lixo para baixo do tapete, o que parece ser a maioria dos projetos tradicionais mantidos pelos centros espíritas. Roberto Caldas

    ResponderExcluir
  3. Aqui vale colocar dois pontos:
    1) a confusão que existe entre caridade e assistência social, sendo este último apenas um dos aspectos da caridade;
    2) exatamente por conta dessa confusão, muitos espíritas defendem com unhas e dentes o capitalismo por achar que basta a assistência social - inclusive, o grande orador, levando em conta seus posicionamentos políticos nos últimos tempos.

    Jamais devemos deixar de lado que a assistência social é importante, ainda mais em tempos de pandemia acompanhada de fome e desemprego pandêmicos; por outro lado, pouco adianta acreditar que o mundo mudará por si só. De que forma podemos, além da assistência social, estimular a emancipação social?

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DIA DA ESPOSA DO PASTOR: PAUTA PARASITA GANHA FORÇA NO BRASIL

     Imagens da internet Por Ana Cláudia Laurindo O Dia da Esposa do Pastor tem como data própria o primeiro domingo de março. No contexto global se justifica como resultado do que chamam Igreja Perseguida, uma alusão aos missionários evangélicos que encontram resistência em países que já possuem suas tradições de fé, mas em nome da expansão evangélico/cristã estas igrejas insistem em se firmar.  No Brasil, a situação é bem distinta. Por aqui, o que fazia parte de uma narrativa e ação das próprias igrejas vai ocupando lugares em casas legislativas e ganhando sanções dentro do poder executivo, como o que aconteceu recentemente no estado do Pará. Um deputado do partido Republicanos e representante da bancada evangélica (algo que jamais deveria ser nominado com naturalidade, sendo o Brasil um país laico (ainda) propôs um projeto de lei que foi aprovado na Assembleia Legislativa e quando sancionado pelo governador Helder Barbalho, no início deste mês, se tornou a lei...

CONFLITOS E PROGRESSO

    Por Marcelo Henrique Os conflitos estão sediados em dois quadrantes da marcha progressiva (moral e intelectual), pois há seres que se destacam intelectualmente, tornando-se líderes de sociedades, mas não as conduzem com a elevação dos sentimentos. Então quando dados grupos são vencedores em dadas disputas, seu objetivo é o da aniquilação (física ou pela restrição de liberdades ou a expressão de pensamento) dos que se lhes opõem.

OS ESPÍRITAS E O CENSO DE 2022

  Por Jorge Luiz   O Desafio da Queda de Números e a Reticência Institucional do Espiritismo no Brasil Alguns espíritas têm ponderado sobre o encolhimento do número de declarados espíritas no Brasil, conforme o Censo de 2022, com abordagens diversas – desde análises francas até tentativas de minimizar o problema. O fato é que, até o momento, as federativas estaduais e a Federação Espírita Brasileira (FEB) não se manifestaram com o propósito de promover um amplo debate sobre o tema em conjunto com as casas espíritas. Essa ausência das federativas no debate não chega a ser surpreendente e é uma clara demonstração da dinâmica do movimento espírita brasileiro (MEB). As federativas, na realidade, tornaram-se instituições de relacionamento público-social do movimento espírita.

JUSTIÇA COM CHEIRO DE VINGANÇA

  Por Roberto Caldas Há contrastes tão aberrantes no comportamento humano e nas práticas aceitas pela sociedade, e se não aceitas pelo menos suportadas, que permitem se cogite o grau de lucidez com que se orquestram o avanço da inteligência e as pautas éticas e morais que movem as leis norteadoras da convivência social.  

O CERNE DA QUESTÃO DOS SOFRIMENTOS FUTUROS

      Por Wilson Garcia Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina. ***   Inicialmente. O pior das discussões sobre os fundamentos do Espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia: