Pular para o conteúdo principal

O PRECURSOR DE KARDEC NO CEARÁ






Segundo registram os anais da História do Espiritismo no Brasil, os primeiros livros sobre temática espiritista em nosso idioma, apareceram no Rio de Janeiro, nos idos de 1860, mercê do esforço do imigrante francês Casimir Lieutaud, autor da obra: “Os tempos são chegados” e “O Espiritismo na sua expressão mais simples”, tradução do professor Alexandre Canu, cujo nome só aparece na terceira edição, de 1862. Oficialmente, porém, o espiritismo na Pátria do Cruzeiro principiou, em 1865, graças ao labor heróico do jornalista Luís Olímpio Teles de Menezes que, na Bahia, organizou, nos moldes preconizados por Allan Kardec, o Grupo Espírita Familiar, a nossa primeira sociedade espírita.

Estudioso de história, há cinco anos direcionamos nossas pesquisas à recuperação da memória do espiritismo no Ceará. Nessas buscas, deparamo-nos com uma anotação do inolvidável Leopoldo Machado, constante do seu livro “A Caravana da Fraternidade”, em que ele faz menção a um registro de seu xará Leopoldo Cirne, ex-presidente da Federação Espírita Brasileira, no qual este afirma ser a terra de Bezerra de Menezes o local onde teria surgido a primeira organização espírita do Brasil. Confesso que achamos estranha tal informação, visto que, comprovadamente, o primeiro grupo espírita do nosso estado remonta à última década do século passado.
Mas, lembrando o velho ditado – onde há fumaça há fogo – questionamos a possibilidade de algum fato acontecido por estas plagas, em meados do século anterior, ter motivado a afirmação do venerando presidente da FEB. A conclusão a que chegamos foi a de que Leopoldo Cirne, referia-se, provavelmente, às experiências com mesas girantes ocorridas em Fortaleza, no ano de 1853, na residência do comerciante José Smith de Vasconcellos. Visto por este ângulo teria certa razão o velho Leopoldo, não obstante a inadequação da palavra espírita para designar esse tipo de reunião. Ademais, os mais antigos experimentadores da mediunidade no Brasil foram os homeopatas Bento Mure (francês) e João Vicente Martins (português), aqui chegados, em 1840, que aplicavam passes em seus pacientes e falavam em Deus, Cristo e Caridade, quando efetuavam suas curas. Também, anteriormente, tem-se notícias de que José Bonifácio, o patriarca da nossa independência política, fora cultor da homeopatia e empreendera algumas experiências psíquicas. E, ainda, em 1844, o Marquês de Maricá publicou um livro com os primeiros ensinamentos de fundo espírita em nosso país.
Nessa sequência de tempo, o grupo de estudos da fenomenologia espírita mais antigo que se tem notícia, foi liderado pelo historiador e homeopata Melo Morais, no Rio de Janeiro, em 1853, grupo este que teve entre outros integrantes o Marquês de Olinda e o Visconde de Uberaba.
Todavia, o jornal bissemanário de Fortaleza, “O Cearense”, fundado em 1846, trazia, por primeira vez, no seu número de 15 de julho de 1853, nota alusiva ao enômeno das mesas girantes em ocorrência na França. No seu número de 26 de julho, do mesmo ano, o jornal, sob o título “Mesas dançantes”, escrevia: “Não é só na Alemanha, França, Pernambuco, etc., que se fazem experiências elétrico-magnéticas das tais mesas dançantes. – O Sr. José Smith de Vasconcellos fez, no domingo, uma experiência em sua casa, na presença de muitas pessoas, com uma mesa redonda, que depois de alguns minutos rodou pelo meio da sala, até que os experimentadores romperam a cadeia!! Neste momento presenciamos árias experiências desta”.
Noticiando novamente o insólito fenômeno, “O Cearense” de 2 de agosto de 1853, descreve outras reuniões similares na residência de José Smith de Vasconcellos, na qual se fizeram presentes figuras conspícuas da sociedade alencariana, destacando-se, além da esposa de José Smith, os senhores Antônio Paes da Cunha Mamede (um dos primeiros homeopatas do Ceará), Antônio Eugênio da Fonseca, Antônio Joaquim Barros, Manoel Caetano Spínola (professor do Liceu do Ceará), o Vigário Alencar, o Dr. Castro e Silva , entre outros.
Durante algum tempo coletamos, com dificuldades, informações para a composição da biografia de José Smith de Vasconcellos. Os dados não eram substanciosos e faltava uma fotografia. Mas, há um mês encontramos, “acidentalmente”, na biblioteca do Colégio Militar de Fortaleza, pistas que nos permitiram chegar a uma fotografia dele e mais dados para a conclusão de sua biografia, divulgada agora, em primeira mão, através de “Gazeta Espírita”.
José Smith de Vasconcellos nasceu em Lisboa, Portugal, a 10 de dezembro de 1817, sendo seus pais o Conselheiro José Inácio Paes Pinto de Souza e Vasconcellos e Mary Martha Tustin Smith, natural de Worcester, Inglaterra.
Veio para Fortaleza, a 13 de novembro de 1831, para se dedicar à carreira comercial, provavelmente em consequência das convulsões políticas de Portugal, nas quais seus irmãos militaram. Com a alcunha de José Barateiro destacou-se no comércio local com uma grande casa “de luxo e distinção”, que se destinava, também, ao comércio direto com o exterior, principalmente para a Inglaterra, Hamburgo e Estados Unidos, onde tinha valiosas relações.
Em 15 de setembro de 1837, casou-se na Matriz de Nossa Senhora da Assunção e São José de Ribamar, em Fortaleza, com Francisca Carolina Mendes da Cruz
Guimarães, natural de Canindé, Ceará. Dessa união nasceram os filhos: Rodolpho, Leopoldo e Alfredo.
Homem de grande coração, foi um dos fundadores e provedor da nossa Santa Casa de Misericórdia. Abolicionista, propiciou a liberdade de muitos de seus escravos, 20 anos antes da promulgação da Lei Áurea, tendo, entretanto, a preocupação e sensibilidade para com os escravos alforriados, conforme podemos constatar em trecho de uma correspondência sua de Liverpool, datada de 22 de junho de 1868, endereçada ao Senador Tomás Pompeu , em Fortaleza: “(…) Tenho dado a liberdade a 3 escravos, e no vapor passado mandei libertar mais um; e não faço o mesmo com o resto, uns por serem velhos a quem a liberdade seria uma calamidade, e outros por demasiadamente moços – entretanto como não sou político, não só isto como o mais que fiz, nunca mereceu a menor atenção do Governo Imperial(…)”.
Exerceu, no Ceará, os cargos de vice-cônsul da Suécia e Noruega, da Cidade Livre de Hamburgo e o de Agente Consular da República dos Estados Unidos da América do Norte. Recebeu os títulos de Comendador da Imperial Ordem de Cristo de Portugal (1870), Fidalgo Cavaleiro da Casa Real Portuguesa (1874), Comendador da Imperial Ordem de Cristo do Brasil e da Imperial Ordem da Rosa do Brasil (1883). Em 1869, foi agraciado pelo rei Luiz I, de Portugal, com o título de1.º Barão de Vasconcellos.
Posteriormente transferiu-se para a Inglaterra, onde administrou uma casa de exportação em Liverpool, com sucursal em Fortaleza. Fracassando seu comércio, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde serviu em alguns bancos.
Apesar da vida abastada que levou, o precursor de Kardec no Ceará levou seus últimos dias empobrecido e doente sobre um leito. Desencarnou a 8 de outubro de 1903, no Rio de Janeiro, aos 85 anos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DEMOCRACIA SEM ORIENTAÇÃO CRISTÃ?

  Por Orson P. Carrara Afirma o nobre Emmanuel em seu livro Sentinelas da luz (psicografia de Chico Xavier e edição conjunta CEU/ FEB), no capítulo 8 – Nas convulsões do século XX, que democracia sem orientação cristã não pode conduzir-nos à concórdia desejada. Grifos são meus, face à atualidade da afirmação. Há que se ressaltar que o livro tem Prefácio de 1990, poucas décadas após a Segunda Guerra e, como pode identificar o leitor, refere-se ao século passado, mas a atualidade do texto impressiona, face a uma realidade que se repete. O livro reúne uma seleção de mensagens, a maioria de Emmanuel.

JESUS E A QUESTÃO SOCIAL

              Por Jorge Luiz                       A Pobreza como Questão Social Para Hanna Arendt, filósofa alemã, uma das mais influentes do século XXI, aquilo que se convencionou chamar no século XVII de questão social, é um eufemismo para aquilo que seria mais fácil e compreensível se denominar de pobreza. A pobreza, para ela, é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação (Arendt, 1963).              A pobreza é uma das principais contradições do capitalismo e tem a sua origem na exploração do trabalho e na acumulação do capital.

A FÉ NÃO EXCLUI A DÚVIDA

  Por Jerri Almeida A fé não exclui a dúvida! No espiritismo, a dúvida dialoga filosoficamente com a fé. O argumento da “verdade absoluta”, em qualquer área do conhecimento, é um “erro absoluto”. No exercício intelectual, na busca do conhecimento e da construção da fé, não se deve desconsiderar os limites naturais de cada um, e a possibilidade de autoengano. Certezas e dúvidas fazem parte desse percurso!

ESPIRITISMO NÃO É UM ATO DE FÉ

  Por Ana Cláudia Laurindo Amar o Espiritismo é desafiador como qualquer outro tipo de relação amorosa estabelecida sobre a gama de objetividades e subjetividades que nos mantém coesos e razoáveis, em uma manifestação corpórea que não traduz apenas matéria. Laica estou agora, em primeira pessoa afirmando viver a melhor hora dessa história contemporânea nos meandros do livre pensamento, sem mendigar qualquer validação, por não necessitar de fato dela.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

TRAPALHADAS "ESPÍRITAS" - ROLAM AS PEDRAS

  Por Marcelo Teixeira Pensei muito antes de escrever as linhas a seguir. Fiquei com receio de ser levado à conta de um arrogante fazendo troça da fé alheia. Minha intenção não é essa. Muito do que vou narrar neste e nos próximos episódios talvez soe engraçado. Meu objetivo, no entanto, é chamar atenção para a necessidade de estudarmos Kardec. Alguns locais e situações que citarei não se dizem espíritas, mas espiritualistas ou ecléticos. Por isso, é importante que eu diga que também não estou dizendo que eles estão errados e que o movimento espírita, do qual faço parte, é que está certo. Seria muita presunção de minha parte. Mesmo porque, pelo que me foi passado, todos primam pela boa intenção. E isso é o que vale.

ÉTICA E PODER

     Por Doris Gandres Do ponto de vista filosófico, ética e moral são conceitos diferentes, embora, preferivelmente, devessem caminhar juntos. A ética busca fundamentação teórica para encontrar o melhor modo de viver de acordo com o pensamento e o interesse humanos. Enquanto que a moral se fundamenta na obediência a normas, costumes ou mandamentos culturais, hierárquicos ou religiosos – e mais, se fundamenta em princípios de respeito a valores superiores de justiça, fraternidade e solidariedade, ou seja, nas próprias leis naturais, as leis divinas.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...