quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

MEDICINA, NEUROCIÊNCIAS, PEDAGOGIA: ENCONTROS E DESENCONTROS ¹






Não é de hoje que as áreas de Saúde e Educação procuram alianças e debatem entre si. Já Santo Agostinho, em torno do ano 300, lembrando Platão (300 A.C.) refletia que “a ciência que cuida do corpo é chamada medicina. A que cuida da alma, educação. Dado que o cuidado do corpo está intimamente ligado ao da alma, a medicina é um aspecto da educação. Dado, por outro lado, que o cuidado da alma exige certa perícia médica, à educação se chama, com razão, medicina da alma”. Observe-se que o link usado por Agostinho entre as duas, era o conceito de alma, que na tradição ocidental (desde Sócrates e Platão), foi concebida como a sede da identidade humana.


Não por acaso, no diálogo proposto nesse congresso e a proposição que observamos em vários espaços acadêmicos de uma Neuroeducação, as Neurociências aparecem como o link entre as áreas e a concepção corrente é de que a identidade humana é o cérebro, que apresenta seus determinismos genéticos e sua estrutura neural plástica em constante interação com o meio. Quando falo em identidade, falo de singularidade, de individualidade, de uma consciência que é capaz de pensar sobre si mesma.

Contrapondo uma ideia à outra, estamos diante de dois paradigmas, duas abordagens diferentes – uma dualista (que considera o ser humano composto de corpo e alma) e a outra monista materialista (que considera o ser humano apenas um processo bioquímico e a mente um subproduto do cérebro). Pode-se chamar também essa concepção de organicista.

O primeiro problema se dá quando se considera esse segundo modelo como resultante de uma “ciência baseada em evidências” e o primeiro, como mera especulação filosófica, metafísica, e portanto, ultrapassada.

O discurso sólido, brilhante, lógico, apresentado por todos os médicos (psiquiatras) no evento em foco, se agiganta pela demonstração de evidências observadas no estudo do cérebro, inclusive com o uso de neuroimagens, o que nos coloca muito mais próximos de compreender como funcionam os processos cognitivos, emocionais… os desenvolvimentos, as mutações, as disfunções dessa fantástica rede neural.

Tudo muito bonito e com grande dose de objetividade e verdade. Conhecemos melhor como se dá a aprendizagem? Sim. Sabemos mais sobre o processo de interação genética-meio ambiente? Sim. Podemos montar estratégias de intervenções pedagógicas, sociais, familiares que atendam melhor ao desenvolvimento saudável e eficaz do indivíduo? Sim. Isso tudo pode e deve causar um impacto transformador na escola? Sem dúvida alguma.

Entretanto, Educação não se reduz a isso. Educação envolve questões éticas, estéticas, humanas que não se deixam apalpar por evidências científicas, estatísticas, materiais. Mas só podemos argumentar que a Educação não é só um debruçar-se sobre o cérebro da criança e um saber como moldá-lo, a partir de um outro paradigma de conhecimento e ação. Um paradigma que pelo menos não considere o conhecimento como algo apenas baseado em evidências, sem nenhuma articulação filosófica, ou ainda, que sabe que a ciência não é neutra, nem desinteressada, nem absoluta, mas também sujeita à crítica. Crítica não apenas feita por outros cientistas, mas também por pensadores (cientistas ou não) que questionam os métodos, os pressupostos, os caminhos de se fazer ciência.

Para explicar melhor o que estou dizendo, quero pontuar algumas questões totalmente esquecidas (ou ignoradas) pelos brilhantes médicos e entusiastas neurocientistas, mas infelizmente também esquecidas (ou ignoradas) pelos educadores perplexos e seduzidos pelo discurso cientificista. Esses educadores em geral não têm nenhum treinamento em ciência baseada em evidência (coisa que não é quase nunca praticada nas áreas de humanas – o que considero um problema), mas também não têm repertório filosófico e cultural para fazer uma leitura crítica ao modelo proposto, pois as faculdades de pedagogia e as especializações em psicopedagogia não oferecem esses recursos. Os médicos, por sua vez, não conhecem filosofia, não recebem formação em humanidades. Assim, não há um diálogo entre as áreas, mas uma superposição da área de saúde sobre a área da educação. E qualquer crítica vinda do lado da área de humanas é desqualificada pelos médicos como “ideológica”. E é verdade que muitas críticas, feitas sem argumentações lógicas e sem conhecimento de causa, são mesmo ideológicas. Mas isso não quer dizer que a simples “tomada” da Educação pela Neurociências não apresente riscos e não esteja sujeita a críticas.

Não é de hoje que a medicina avança na área da educação, trazendo grandes contribuições, mas provocando igualmente alguns riscos. No início do século XX, tivemos inúmeros médicos-educadores atuando, pesquisando e propondo ações. Citemos Decroly, Claparède, Montessori, Korzcak, Vygotski e o próprio Piaget, que não era médico, mas como biólogo, tinha uma visão organicista semelhante à que as Neurociências propõem.

Mas o que se viu nas primeiras décadas do século passado é o uso de critérios de quantificação de inteligência, de testes, de medições cranianas… para classificações discriminatórias e até práticas eugênicas, que não tiveram lugar apenas na Alemanha nazista, mas foram exercitadas em países como o Brasil e os Estados Unidos.

Não que esses médicos-educadores acima citados tivessem responsabilidade nisso – tendo aliás cada um deles, diferentes perspectivas pedagógicas. Mas o entusiasmo organicista, o pressuposto de que podemos modelar, prever, manejar de maneira “científica” a aprendizagem e a formação das mentes humanas (à moda de Skinner) sempre podem provocar uma diminuição da liberdade, da autonomia do sujeito e do que essa autonomia representa de inventividade, imprevisibilidade e espontaneidade.

Então, é preciso que essa articulação entre Neurociências e Educação seja muito bem amparada pela Ética, balizada por reflexões críticas e uma Filosofia da Ciência, alerta para os riscos da empreitada.

As Neurociências e os clássicos da Educação

O que pouca gente sabe, pelo menos no Brasil, é que esses educadores citados acima – todos eles – tiveram influência dos grandes clássicos da Educação, como Comenius, Rousseau e Pestalozzi – totalmente ignorados entre nós. Piaget, por exemplo, comenta numa introdução a uma obra de Comenius, editada pela Unesco, que o educador checo teria sido um precursor de sua Psicologia genética.

Esses autores antigos não só intuíram, anunciaram e abriram caminho para seus herdeiros dos séculos XIX e XX, como também previram as descobertas atuais das Neurociências. Talvez possamos traçar o seguinte roteiro histórico: os clássicos intuíram, os médicos-educadores, os psicólogos do desenvolvimento infantil, os militantes da escola-nova observaram e as Neurociências fornecem evidências… Prometo fazer um trabalho aprofundado sobre isso, mas lá vão algumas amostras dessas intuições-observações-evidências:

• A aprendizagem se dá pela interação com o meio e os sentidos exercem um papel fundamental, portanto a Educação tem que ser sensorialmente estimulante;

• As emoções e a afetividade estão conectadas à aprendizagem;

• Há estruturas inatas que permitem o desenvolvimento cognitivo do ser humano  e essas estruturas se referem, entre outras, à aquisição da linguagem e à possibilidade de cálculos (Pestalozzi dizia isso!);

• O indivíduo aprende por motivação (lembro do conceito de “interesse” de Dewey);

•  A aprendizagem se dá na ação e é autônoma. (Educação ativa já era proposta por Comenius no século XVII e por Rousseau no século XVIII.)

E, no entanto… eis a grande tristeza! Vieram os clássicos da Educação, vieram os psicólogos do desenvolvimento, estão aí as Neurociências…  e a escola continua a mesma: sem ação, sem autonomia, sem afetividade, sem emoção, sem motivação! A escola da lousa, do professor falando, do aluno sentado e entediado, da classe enfileirada e dos muros cinzentos! A educação bancária, como dizia Paulo Freire – as cabeças dos alunos como depósitos. Uma escola em que nem a alma, nem o cérebro se desenvolvem. Parece que há sempre abismos entre as belas teorias e as paupérrimas práticas.

Em busca do ser integral

Bem – dirão – se os clássicos intuíram, outros observaram e as Neurociências dão evidências, podemos muito bem só ficar com essas últimas. As intuições passam a verdades reconhecidas e não precisamos mais desses pioneiros geniais!

Aí é que os distintos estão muitíssimo enganados (lembrando uma canção de Vinicius de Morais)! É que nesse processo histórico, houve uma perda no decorrer dos tempos. Alguns conseguiram reter algo a mais dos precursores, como é o caso de Maria Montessori (provavelmente por ser mulher e há um componente mais sensível no conhecimento produzido por mulheres – lembro que a Tanatologia e os Cuidados Paliativos nasceram na Medicina, graças a duas mulheres, Elisabeth Kübler-Ross e Cicely Saunders). Mas a maioria afunilou os conceitos, dentro do paradigma reducionista da ciência materialista, herdeira do positivismo.

O que havia de essencial nos clássicos é que eles mantinham uma visão integral do ser humano: não perdiam de vista, o biológico (na medida dos conhecimentos da época, claro) o político, o social, o afetivo, o cognitivo e… o espiritual!

O que os ilustres e brilhantes palestrantes médicos do congresso em pauta parecem desprezar é que a ciência dos últimos dois séculos representa um paradigma possível, mas não único de fazer ciência, baseada em evidências. Não se pode ignorar a intensa crítica a que esta ciência foi submetida na segunda metade do século XX, por autores como Kuhn, Lakatos e, mais ainda, Foucault e Feyerabend. Estou longe de defender um relativismo epistemológico que considera todo conhecimento humano como mero discurso. Em minha tese de doutorado, fiz dura crítica ao pensamento anticientífico do pós-modernismo.

Mas não se pode ignorar que a ciência sim, participa de interesses, está submetida a determinados pressupostos iniciais, escolhe alguns fenômenos, em vez de outros, para serem estudados, e fecha os olhos quando se lhe apresentam fatos ou evidências que possam contrariar o paradigma vigente.

Pois, muito bem… se há evidências que vêm corroborar as intuições dos clássicos em relação aos processos da cognição e do desenvolvimento infantil, há outras que vêm dar solidez à visão que eles propunham de que o ser humano tem uma dimensão espiritual. Em relação ao nosso conceito de criança (que não é apenas um cérebro em desenvolvimento), temos, por exemplo, as exaustivas pesquisas de mais de 40 anos de Ian Stevenson, Erlendur Haraldson, Jim Tucker e outros, sobre memórias espontâneas de vidas passadas, incluindo uma fartíssima coleta e análise de dados, feitas por Stevenson, em relação a marcas de nascença, conectadas com memórias de outras vidas (isso está publicado no livro Reincarnation and Biology). Essas evidências não anulam em nada aquelas das Neurociências, mas acrescentam, além do cérebro, uma alma que tem identidade, que já viveu antes em outro corpo, e traz lembranças dessa vida – lembranças que podem ser demonstradas pela pesquisa “baseada em evidências”, com todos os cuidados metodológicos. Aliás, diga-se de passagem, Stevenson, como seus colegas acima, também era médico psiquiatra. Por que ele via fenômenos, que outros não querem sequer tomar em consideração? Porque os cientistas agem, levados por pressupostos filosóficos, por influências culturais do seu meio, por inclinações subjetivas também… e não apenas pela Ciência pura, como bem demonstrou Thomas Kuhn.

No dia em que tivermos todas essas evidências, de todos os lados, articuladas por uma reflexão filosófica e por uma elevada concepção ética, estaremos mais próximos de compreender o ser humano e, portanto, a criança, de maneira mais integral.

¹ reflexões depois de um Congresso.


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