O
jornalista ambiental André Trigueiro relaciona ecologia e espiritismo e, na
condição de espírita kardecista, considera que uma vida é muito pouco para
termos a ciência de toda a complexidade que envolve as nossas decisões
“Do ponto de vista espírita, somos
aprendizes. O planeta no movimento espírita é muito comparado a uma escola onde
estamos aprendendo a viver, o que é a vida, de onde viemos e para onde vamos.
Estamos sendo instigados a nos conhecer. Temos o que fazer aqui, não viemos a
passeio, temos um trabalho a realizar, todos nós, sem exceção. E certamente um
desses trabalhos é cuidar bem da nossa casa planetária, porque ela reclama
ajuda”. A reflexão é do jornalista André Trigueiro que, por e-mail, concedeu a
entrevista que segue à IHU On-Line (Revista do Instituto Humanitas Unisinos)(veja mais).
Na sua visão, o excesso é imoral, principalmente onde há escassez. “Se vivemos
num mundo onde há tantas pessoas privadas do necessário, acumular a ponto de
gerar desperdício ou excesso é algo complicado do ponto de vista espiritual”.
Confira
a entrevista.
IHU
On-Line - Que relação podemos estabelecer entre espiritismo e
ecologia?
André
Trigueiro – Basicamente são duas ferramentas de percepção da
realidade que têm muita semelhança na forma como descrevem o universo
sistêmico, que poderia ser descrito como o conjunto de fenômenos interligados,
interdependentes, que interagem o tempo todo. Existem certos textos que se
encontram nas obras básicas do espiritismo, por exemplo, no livro A Gênese, de
Allan Kardec, em que encontramos formas de explicar a realidade que nos cerca,
e que tem muita identificação com as ciências ecológicas. Cito aqui um trecho:
“Assim, tudo no universo se liga, tudo se encadeia, tudo se acha submetido à
grande e harmoniosa lei de unidade”. Ou outro trecho: “De sorte que as
nebulosas reagem sobre os nebulosos, os sistemas reagem sobre os sistemas, como
os planetas reagem sobre os planetas, como os elementos de cada planeta reagem
uns sobre os outros e assim sucessivamente até o átomo”. São explicações que
aparecem no livro que é considerado uma das obras básicas do espiritismo, A
Gênese, e que também são plenos de significado para ecologistas. Além disso,
vamos perceber que ecologistas e espíritas têm uma preocupação em relação à
poluição. Os ecologistas denunciam a poluição visível, material, das águas, do
solo, da terra, do ar, o lixo espacial, no campo micro ou macroscópico.
Identifica-se, cataloga e eventualmente se alerta para o risco de certos
poluentes que são lançados na natureza e como isso ameaça nossa saúde, nossa
qualidade de vida, nossa resiliência . Os espíritas, por sua vez, atentos ao
que ocorre numa outra dimensão, chamada plano astral ou campo sutil, entendem
que o pensamento é energia que se projeta com direção, tem forma, tem textura,
cor e interfere no que chamam de psicoesfera. É um campo eletromagnético que
nos cerca e que guarda informações importantes sobre nosso estado psíquico,
emocional, bem como a soma das experiências que nós já realizamos e o estado
fisiológico do momento. Do ponto de vista espírita, pensar e sentir determinam
a qualidade da psicoesfera. Sentimentos e pensamentos negativos tornam a
psicoesfera desagradável e não raro mesmo quem não seja espírita e quem não se
entenda como médium, percebe no ambiente doméstico, de trabalho, a irradiação
de certas pessoas mais ou menos aprazíveis, interessantes. É algo difícil de
explicar, mas fácil de sentir. E isso guarda uma relação de diagnóstico da
saúde do ambiente em que estamos inseridos. O ecologista está prestando atenção
nos poluentes mensuráveis do plano material. Os espíritas estão atentos ao que
se passa no campo sutil, que poderia ser chamado de uma outra dimensão, que
interage com a nossa e cuja qualidade dessa psicoesfera determina também a
qualidade de vida da gente.
O
consumismo
Existem outros aspectos de espíritas e
ecologistas que denunciam com muita propriedade os riscos do consumismo. Os
ecologistas entendem que no planeta, que é um só, onde os recursos são finitos,
o modelo de desenvolvimento que exaure, devasta, destrói esses recursos, não
favorece a vida. E os espíritas, por sua vez, denunciam o apego à matéria. Como
qualquer outra tradição espiritualista ou religiosa, os espíritas também
procuram advertir para os riscos de nos identificarmos tanto com a matéria a
ponto de desperdiçarmos uma existência confundindo o que deveria ser entendido
como prioridade, que é aquilo que não é perecível, que não é descartável, mas o
que é perene, é imortal, com algo que é muito caro à sociedade de consumo, que
é a coleção de objetos, de materiais, que na verdade, quando falamos de
consumismo estamos aludindo a desperdício e ao excesso. O desperdício é imoral.
Não é preciso falar de espiritismo nem de religião para considerar qualquer
gênero de desperdício imoral. É o mau uso dos recursos. E o excesso também é
imoral onde há escassez. Se vivemos num mundo onde há tantas pessoas privadas
do necessário, acumular a ponto de gerar desperdício ou excesso é algo
complicado do ponto de vista espiritual. Inclusive há uma mensagem que aparece
na resposta à pergunta 705 do Livro dos Espíritos, que é outra obra referencial
na doutrina, em que a mensagem publicada dá conta de que a terra ofereceria ao
homem sempre o necessário, se com o necessário soubesse o homem se contentar.
Isso guarda muitas semelhanças também com o pensamento do Mahatma Gandhi, que
disse que a terra possui o suficiente para satisfazer a necessidade de todos os
homens, mas não a ganância de todos eles. Em linhas gerais, essas são as
questões que me chamam mais a atenção.
IHU
On-Line - Como entender, a partir da doutrina espírita, que o
ser humano nunca se contenta com os recursos que a natureza pode lhe oferecer?
André
Trigueiro – Na verdade é um aprendizado, não podemos nos sentir
culpados por isso. Existem algumas teses antropológicas que dão conta de que,
em boa parte da nossa jornada existencial no planeta, desde o advento do homo
sapiens, há aproximadamente 500 mil anos, tivemos momentos de muitas
dificuldades em relação a predadores, a um mundo hostil, pouco tempo de vida em
função de condições tecnológicas e científicas muito rudimentares. Éramos muito
vulneráveis às intempéries da natureza e isso nos marcou profundamente. Nós
mais vivemos momentos na terra privados do necessário do que se beneficiando,
como agora, nos últimos 200 anos, das benesses de um mundo onde temos
penicilina, antibiótico, redução da fome. Nossos ancestrais padeceram muito. De
alguma forma eles transmitiram para nós uma tese, o sentimento inato de que
precisamos ter mais do que o necessário porque o dia de amanhã ninguém sabe.
Isso é muito forte na espécie humana. Só que no século XXI estamos sendo
chacoalhados por outros valores, que são os valores da sustentabilidade. Não
adianta ter como princípio a acumulação, porque isso está determinando o risco
de um colapso planetário. Poucos têm muito e a maioria não tem o necessário.
Precisamos entender como deve ser um novo projeto de civilização, onde o
consumismo não teria lugar. Do ponto de vista espírita, somos aprendizes. O
planeta no movimento espírita é muito comparado a uma escola onde estamos
aprendendo a viver, o que é a vida, de onde viemos e para onde vamos. Estamos
sendo instigados a nos conhecer. Temos o que fazer aqui, não viemos a passeio,
temos um trabalho a realizar, todos nós, sem exceção. E certamente um desses
trabalhos é cuidar bem da nossa casa planetária, porque ela reclama ajuda.
IHU
On-Line - Em que sentido o consumismo e o materialismo se tornam
obstáculos ao projeto evolutivo dos espíritos?
André
Trigueiro – Para os espíritas, existem diferentes mundos
habitados. Quando Jesus disse “no reino de meu Pai há muitas moradas”, o entendimento
que o espírita faz desta passagem do Evangelho é que existe um número sem fim
de mundos habitados em diferentes níveis evolutivos. Também de acordo com a
doutrina espírita, a terra seria denominada um mundo de provas e expiações.
Estamos numa situação que ainda carece de muitos cuidados e atenções. Há um
mundo ainda mais primitivo, mais atrasado que o de provas e expiações, que é um
mundo onde a característica primordial de seus habitantes é o apego à matéria.
Em certa medida, do ponto de vista evolutivo, nós já atravessamos o momento em
que o apego à matéria era absoluto. Ser consumista ou ter um estilo de vida
consumista, em certa medida, talvez signifiquem uma dificuldade de avançarmos
na jornada revalidando a matéria. Não é que ela não seja importante. Ela não
pode ser tão importante quanto nós costumamos valorar. Ela tem uma importância
relativa, mas não é o que acontece na sociedade de consumo, onde os bens
materiais são a própria razão de ser da vida. Escolhemos a profissão em função
do salário, e precisamos ter um bom salário para possuir tudo o que imaginamos
ser necessário para nos afirmarmos como pessoa bem sucedida, feliz e realizada.
E essa é uma armadilha existencial, porque se consome muito tempo e energia com
esses brinquedinhos. Eles são perecíveis, não fazem diferença dentro daquilo
que deveríamos de fato estar acumulando, que é conhecimento, sabedoria,
aprimoramento das nossas virtudes, aquilo que nos faz sentir mais leves,
felizes, com a consciência tranquila. Então, quando falamos de espiritualidade
no sentido mais pleno, o materialismo ou o desejo de colecionar objetos
representa um risco, na medida em que nos distrai, nos dispersa, desvia nossa
atenção e requer um alto consumo de tempo e energia para a realização de sonhos
de consumo, que são bolhas de sabão.
IHU
On-Line - Como você responde à crítica de que a teoria da
reencarnação seria determinista, no sentido de que nascemos já com uma alma com
características prontas?
André
Trigueiro – A reencarnação não é exclusividade da doutrina
espírita. Os budistas, por exemplo, são reencarnacionistas e há outras
correntes místicas, religiosas e espirituais que preconizam a reencarnação. Do
ponto de vista espírita, essa crítica que você menciona na pergunta não é
cabível, porque existe aí um mix de possibilidades em cada existência. Existe,
sim, determinismo em certo sentido. Do ponto de vista da doutrina espírita, a
pessoa não é filha do seu pai e da sua mãe por acaso. Da mesma forma, os laços
consanguíneos da sua família não seriam estabelecidos por sorte ou azar, ou,
como diria Albert Einstein , “Deus não joga dados”. Há fatores determinados. Há
maior propensão à saúde ou à doença, à maior facilidade de acesso a escolas
boas, saúde boa, comida e casa boa, formação educacional. Existem elementos que
já aparecem configurados no ato do seu nascimento. Entretanto, na doutrina
espírita, falamos muito de livre arbítrio. Dentro do palco da vida, onde o
determinismo estabeleceu uma moldura, uma linha imaginária, que determina “aqui
você faz o que quiser, mas aqui, nesse espaço-tempo”, o livre arbítrio é
soberano. O que você determina é algo que faz parte da aventura existencial.
Temos direito de escolha, podemos dizer sim ou não, seguir em frente ou
estacionar e isso é algo muito caro à doutrina espírita. Evolução é mérito, não
acontece por decurso de prazo, sem esforço, sem trabalho. Evolução é algo
pessoal e intransferível. Não se pode evoluir por ninguém. Isso é o livre
arbítrio que conduz a pessoa: o que quer ser quando crescer, o que quer comer,
para onde quer viajar, com quem quer se casar, quantos filhos deseja ter, são
escolhas soberanas de cada um.
IHU
On-Line - Como a doutrina espírita trabalha com a questão do
suicídio?
André
Trigueiro – Todas as grandes religiões do ocidente e do oriente
preconizam que o suicídio é um equívoco por ir contra as leis de Deus ou de uma
força cósmica superior. Portanto, dentro da doutrina espírita, há uma
infinidade de dados, detalhes, relatos, de quem fez a passagem, de quem se
encontra hoje no mundo espiritual vivo, afirmando que o suicídio não interrompe
a vida, apenas a existência corporal. E há uma frustração, um arrependimento,
uma tristeza enorme, porque vida é prova escolhida. Vivemos o que precisamos
viver para cumprir mais uma jornada evolutiva, em um passo que se dá na direção
de um projeto. Para os espíritas, cada encarnação é precedida de um
planejamento, em que muitas pessoas participam ativamente. É quase um projeto
coletivo. A Igreja Católica fala em anjo da guarda e no movimento espírita
falamos de guias e mentores. São pessoas que guardam laços de amizade ou de
parentesco. Há uma vinculação muito grande com pessoas que nos protegem do
outro lado da existência e que ficam também muito frustradas com essa decisão
que o livre arbítrio, por ser soberano, avaliza. Ou seja, se o livre arbítrio é
soberano, mesmo o suicídio, que vai contra o que se convencionou chamar de leis
de Deus, é possível de ser feito. O espírita não acredita em penas eternas. O
suicídio é um erro, um equívoco, pois aborta um planejamento, sobrevém o
arrependimento, e esse sofrimento se potencializa por razões físicas, porque
somos dotados de um fluido vital, como se fosse nossa bateria, que nos municia
de energia vinculando a alma ao corpo. Quando o corpo subitamente tem a vida
interrompida, o estoque de fluido vital que deveria animar esse corpo durante
mais algum tempo determina que a alma tenha as sensações do corpo se
decompondo. Temos um problema aí. Não é que Deus castiga. O suicida, quando
determina o autoextermínio, a autodestruição, padece os efeitos de uma situação
criada a partir da impossibilidade de se livrar do corpo tão facilmente quando
ele imaginava. Ele terá a oportunidade de se restabelecer e, pela crença dos
espíritas, retornar para vivenciar mais uma existência. Provavelmente
vivenciará uma situação de estresse, de pressão ou de desalento em que ele se
depare novamente com uma situação aflitiva em que terá a oportunidade novamente
de escolher entre seguir em frente ou não. Portanto, as oportunidades se
renovam e nos parece que Deus não seria justo se condenasse qualquer um de nós
a uma pena eterna. Uma vida é muito pouco para termos a ciência de toda a
complexidade que envolve as nossas decisões. Uma vida passa rápido, a gente não
consegue aprender todos os idiomas, não consegue ler todos os livros, ver todos
os filmes, conhecer todos os lugares, aprender todos os instrumentos musicais e
fazer tudo o que desejamos. Portanto, nos parece muito interessante a
perspectiva da reencarnação também permitindo que eventuais erros cometidos
possam ser lá na frente reparados.
André Trigueiro é jornalista, pós-graduado em
Gestão Ambiental pela COOPE/UFRJ e professor do curso de Jornalismo Ambiental
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Na Globo News,
apresenta o programa “Cidades e soluções”, tratando da questão do meio
ambiente. É autor de Mundo sustentável (São Paulo: Globo, 2005) e Espiritismo e
Ecologia (2ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2010), entre outros.
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