sábado, 21 de janeiro de 2017

NAS FRONTEIRAS DA PSICOTERAPIA¹









As raízes da psicologia remontam à Grécia Antiga, onde o filósofo Aristóteles (384-322a.C) escreveu o livro Acerca da alma, citado muitas vezes como o primeiro manual sobre o tema. A proposta original desta ciência era compreender o espírito – do latim spiritus, que significa sopro, respiração. A limitação dos métodos do passado favoreceu o distanciamento entre a psicologia em relação ao estudo do “não-palpável”, e a medicina, com seus métodos para investigação do corpo (do latim corpus: parte essencial).

Assim, a decisão de Freud de confinar suas investigações à arena mental ocorreu somente depois que ele desistiu de traduzir as observações clínicas dos processos mentais em termos neurológicos, convencido de que as ferramentas da época não permitiam tal realização.
As ideias sobre as relações recíprocas entre as funções e a anatomia do cérebro eram apenas hipóteses em meados do século XIX, mas começaram a se fortalecer com as pesquisas de Paul Broca (1824-1880), John Hughlings Jackson (1835-1911) e Wider Penfield (1891-1976), que realizaram trabalhos pioneiros sobre as funções cerebrais. Nessa época, a maioria das informações sobre o cérebro humano vinha da observação de indivíduos que apresentavam lesões ou patologias, com perda da função cerebral ou comportamentos afetados.
Essa linha histórica acabou fortalecendo a tendência de dividir os transtornos neurológicos, psiquiátricos ou psicológicos em “patologias cerebrais” em contraposição às “doenças mentais”, o que resultou em condutas terapêuticas dicotômicas e muitas vezes equivocadas. Se as doenças são “mentais”, deve-se tratar a mente com psicoterapia; se são “cerebrais”, é preciso usar terapias que modifiquem o cérebro fisicamente, como os medicamentos.
Somente no final anos 70 as neurociências surgiram com uma abordagem integrativa, refletindo a necessidade de convergir as contribuições de diversas áreas da pesquisa clínica e básica, anteriormente isoladas, para a compreensão
holística do funcionamento do sistema nervoso. A multidisciplinaridade é um fator intrínseco e fundamental desta nova disciplina, que reúne pesquisas que cobrem desde o espectro molecular até o cognitivo.  A confluência das diversas linhas de investigação promete a construção de um conhecimento mais assertivo que o do passado, quando preponderava a desarticulação entre resultados independentes. As tecnologias de neuroimageamento funcional, que talvez sejam o desenvolvimento recente mais importante das neurociências, pretendem corrigir, se não erradicar, as classificações estanques dos distúrbios neurológicos, psiquiátricos e psicológicos. Esta visão neurocientífica integradora já produziu evidências no campo da psicoterapia.
Os dados emergentes dos estudos neurocientíficos revelam que as funções Cognitivas, emocionais, perceptuais e comportamentais são mediadas por circuitos cerebrais, e que a não-integridade destes pode estar associada a alguns distúrbios mentais. A plasticidade cerebral, fenômeno diretamente ligado
Ao aprendizado e à memória, pode modificar, compensar e ajustar funções neurais fundamentais à capacidade adaptativa.  Estudos recentes revelam que a natureza subjetiva e a volição dos processos mentais, como pensamentos e crenças auto-orientadas, influenciam significativamente a plasticidade neural em vários níveis.
Pesquisas neurofuncionais em indivíduos saudáveis e em pacientes com algum transtorno demonstram, por exemplo, que a opinião e as expectativas podem modular a atividade neurofisiológica e neuroquímica nas regiões do cérebro associadas à percepção, à dor e a expressões emocionais.

PLACEBO E DOPAMINA

Alguns estudos com pacientes com doença de Parkinson, mostram que o efeito placebo, relacionado com a liberação do neurotransmissor dopamina, numa região cerebral conhecida como estriado, resultou em melhora dos sintomas. Em pessoas com depressão maior, o placebo produziu alterações metabólicas nas regiões corticais e paralímbicas do cérebro, efeito relativamente semelhante ao do antidepressivo fluoxetina (princípio ativo do Prozac), além de atenuar a atividade neural associada à dor em áreas como o cíngulo anterior e o tálamo.
Estudos mostram que a utilização consciente e voluntária da contextualização dos estímulos emocionais altera a forma como o cérebro processa as percepções.  A atividade da amígdala, associada ao processamento de imagens com significados negativos, modificou-se de acordo com o objetivo de contextualização proposto, fosse ela positiva, negativa ou neutra. Em outras palavras, a autorregulação emocional ativou diferentes circuitos neurais conforme a volição dos participantes.  Desejos, expectativas, crenças e aspirações são considerados fatores potenciais de superação que se refletem na atividade neural.
A psicoterapia, em suas diversas abordagens, se ocupa justamente da subjetividade – ou das representações internas – e articula percepções, memórias e sistemas de crenças dos indivíduos em processo terapêutico. Estudos neurofuncionais mostram que os processos psicológicos do aprendizado também podem ocasionar mudanças biológicas nos arranjos sinápticos e a organização neurofisiológica.  Algumas discussões sobre o tratamento eficaz do transtorno de ansiedade por meio da psicoterapia sugerem que novas percepções, e seus correspondentes traços de memória, formam-se de forma plástica, substituindo conexões anteriores responsáveis pelas reações de ansiedade.

LEMBRANÇAS INDESEJADAS

Pessoas que vivenciaram eventos dolorosos frequentemente reconstroem e recontextualizam o trauma durante a psicoterapia, reorganizam, lembranças, percepções e experiências, atribuindo novos significados a elas e que atenuado
assim o próprio sofrimento. O princípio subjacente aos mecanismos de percepção envolve a extração de correlações estatísticas do mundo para criação de modelos temporariamente úteis à interrelação adaptativa com o meio. Os bancos de memórias, constituídos por meio de experiências objetivas e subjetivas, são indispensáveis à capacidade humana de produzir crenças, predições de futuro e comportamentos respectivos.  As informações que geram memórias podem ser provenientes do meio externo, interno ou da evocação de lembranças preexistentes.  A maioria das lembranças obedece a processos associativos.
O medo adquirido em situações traumáticas está vinculado a vários transtornos, entre eles as fobias, a ansiedade generalizada, a depressão e o transtorno de stress pós-traumático (TEPT).  As psicoterapias destinadas a esses pacientes buscam dissecar e trabalhar as associações estabelecidas e os decorrentes sistemas de crenças.
A identificação de tais processos associativos na psicoterapia nem sempre é imediata, especialmente quando há memórias complexas que abrangem outras recordações e, portanto, outras redes associativas. Tais representações e diálogos internos “encobertos”, que afetam o relacionamento com os episódios dolorosos da vida, vêm sendo captadas por técnicas de neuroimageamento, utilizada por uma nova geração de psicólogos clínicos neurocientistas.
Na última década, o neuroimageamento tem estimulado pesquisas desafiadoras sobre sistemas neurais envolvidos em funções cognitivas complexas em geral. Flagrar os circuitos neurais mediadores de respostas positivas, indiferentes e negativas (respondedores e não-respondedores) aos processos terapêuticos plicados é um objetivo recorrente nos estudos recentes. Estas pesquisas, no entanto, exigem uma cuidadosa ponderação metodológica. O método utilizado, seu custo e disponibilidade, sua sensibilidade à detecção anatômica funcional (resolução espacial e temporal), além da possibilidade de controlar e reproduzir os ensaios são questões importantes nessa área de pesquisa. Técnicas como a tomografia por emissão de fóton único (SPECT), a tomografia por emissão de pósitrons (PET) e a ressonância magnética funcional (fMRI) têm sido utilizadas para avaliar as reciprocidades neurais envolvidas na psicoterapia de indivíduos com transtorno obsessivo-compulsivo, depressão maior, fobia social, fobia específica e TEPT.  Uma recente revisão, que será publicada  no International Journal of Psychology, revela que algumas abordagens psicoterápicas modificaram circuitos neurais disfuncionais associados aos transtornos estudados. A psicoterapia promoveu a normalização da função neurofisiológica, resultando no equilíbrio psicológico do paciente. De fato, os resultados dos estudos sobre psicoterapia por meio de neuroimagem funcional mostram que a recontextualização cognitiva pode alterar sensivelmente a maneira como o cérebro processa estímulos emocionais e reage a eles. Em outras palavras, as funções e os processos mentais mobilizados nas diversas formas de psicoterapia exerceram influência significativa na atividade do cérebro associada à atenuação dos sintomas.

REATIVANDO SINTOMAS

Os resultados são animadores, mas a localização de circuitos neurais terá grande valor somente quando houver dados pertinentes sobre a validação ou a construção de teorias sobre a função cognitiva estudada.  Só assim essas informações poderão gerar hipóteses que norteiem intervenções mais assertivas em relação ao tratamento dos vários transtornos. Entre os exemplos de boa interface entre neuroimagem funcional e psicoterapia destacam-se os estudos realizados com indivíduos traumatizados.
Componente central do TEPT, a memória traumática tem sido o principal alvo dos estudos neurofuncionais.
Os sintomas são induzidos, em caráter experimental, por roteiros dirigidos dos quais fazem parte imagens, sons, realidade virtual, paradigmas cognitivos de ativação ou drogas que aumentam a ansiedade. Os paradigmas de provocação de sintomas são usados para medir a atividade cerebral em função dos estados mentais manifestados com mais frequência em certas psicopatologias.
Dividem-se basicamente em três grupos, que utilizam a visão e a audição como canais sensoriais para a deflagração dos sintomas:  1) apresentação de figuras ou filmes, 2) uso de ruídos e sons e 3) utilização de roteiros gerais ou personalizados. A maioria desses estudos intercala estímulos traumáticos e neutros em sequências planejadas, porém aleatórias. Eu e minha equipe realizamos um estudo com SPECT para investigar os substratos neurais relacionados à evocação das memórias traumáticas de 16 indivíduos antes e depois da terapia por exposição e reestruturação cognitiva.
Utilizamos roteiros personalizados para evocação da memória traumática durante a realização de dois SPECTs cerebrais.
Observamos, após a psicoterapia, um aumento significativo da atividade no córtex pré-frontal esquerdo, hipocampo esquerdo e parietais, em comparação ao grupo-controle.
A melhora dos sintomas e da expressão narrativa da memória pós-psicoterapia se correlacionou significativamente com o acréscimo da atividade no córtex pré-frontal esquerdo e a atenuação da atividade da amígdala. As conectividades entre regiões pré-frontais e complexo límbico são sugestivas de seu papel mediador na integração de informações sensoriais da memória, assim como no processo de controle emocional. Considerando que as regiões superiores intermedeiam habilidades cognitivas de classificação e categorização das experiências, discutimos possíveis estratégias para ativação do pré-frontal ao longo da psicoterapia, tal como o resgate de memórias declarativas (dependentes do hipocampo e do córtex pré-frontal) de autoeficácia, anteriores ao trauma. Na era integradora em que vivemos, quanto maior o entendimento do significado dos resultados obtidos pelas neurociências, mais aproveitáveis serão essas contribuições para a psicoterapia.
Métodos multimodais, que integram a especificidade de marcadores da atividade neural em PET e SPECT, a definição anatômica da ressonância nuclear magnética e a resolução temporal da eletroencefalografia quantitativa (qEEG), começam a ser utilizados, mas seus custos ainda são inviáveis para a produção científica em larga escala.
Estudos futuros examinarão a especificidade dos substratos funcionais, estruturais, neuroquímicos e moleculares para o entendimento da fisiopatologia dos transtornos mentais.  Contudo, como a expressão neurofisiológica destes distúrbios pode não ser estática, as reciprocidades neurais podem se alterar com o tempo. É certo que os avanços tecnológicos trarão progressivamente a identificação mais precisa de circuitos neurais associados aos transtornos estudados. Os achados atuais e futuros devem considerar as implicações clínicas com a perspectiva de orientar as intervenções psicoterápicas para tornar mais saudáveis as atividades neurais desses pacientes. 





Um comentário:

  1. Muito bom. Que Deus permita o progresso desses métodos, tendo em vista o alívio de quem sofre o impactante peso de um trauma.

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