Por André Trigueiro (*)

Após sucessivos abalos sísmicos na Cúria
causados pelo rigor sem precedentes no julgamento dos padres pedófilos, à
faxina no Banco do Vaticano, ao gesto de acolhimento dirigido aos homossexuais,
entre outras situações que desagradaram alguns representantes da ala mais
conservadora da Igreja, o Papa que veio "do fim do mundo" - como
disse o Cardeal Bergoglio em seu primeiro pronunciamento como Sumo Pontífice -
lançou uma encíclica que já entra para a História como um dos mais importantes
manifestos em favor da vida em todas as suas formas e resoluções.
"Laudato si ("Louvado Sejas"
em italiano, expressão que abre o "Cântico das Criaturas" que
Francisco de Assis escreveu 8 séculos atrás) sobre o cuidado com a nossa casa
comum" resume em 192 páginas os mais importantes desafios da Humanidade
num mundo onde a espécie-líder, topo da cadeia evolutiva, "feita à imagem
e semelhança de Deus", vem a ser a principal responsável pela avassaladora
onda de destruição dos recursos que sustentam a vida, e a própria Humanidade.
O Papa explicita "a relação íntima entre
os pobres e a fragilidade do planeta ", num mundo onde o modelo de
desenvolvimento concentra renda, polui o ar e as águas, agrava o efeito estufa
e reduz a qualidade de vida das atuais gerações e, principalmente, das gerações
futuras. Em resumo: o modelo vigente castiga o planeta e agrava a exclusão.
"É preciso sentir novamente que
precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e
o mundo, que vale a pena ser bons e honestos", diz Francisco. Ele declara
"o clima como um bem comum", defende a substituição dos combustíveis
fósseis por fontes limpas e renováveis de energia, e denuncia como consequência
do agravamento do efeito estufa as migrações em massa dos chamados refugiados
ambientais. Essa parte da Encíclica ("Poluição e Mudanças
Climáticas") abre o primeiro capítulo do documento e exorta os países que
participarão da COP 21 em dezembro, em Paris, a buscarem um acordo climático
com determinação e comprometimento. É nutriente moral na veia dos diplomatas.
No capítulo da água, o Papa lembra que a
poluição, o desperdício, a má gestão dos recursos hídricos e a apropriação da
água por grupos privados ameaçam a Humanidade e expõem os países a conflitos
ainda neste século se os cenários de escassez - com impactos diretos sobre os
custos dos alimentos - não forem enfrentados com seriedade. Para quem vive no
Brasil, especialmente nas regiões Nordeste e Sudeste, a mensagem faz todo o
sentido. “Volume morto” é um dos resultados práticos de uma situação que não
deveria ser atribuída apenas a circunstâncias climáticas.
O Papa compartilha dados preocupantes sobre a
maior onda de destruição da biodiversidade já registrada. Denuncia o
desaparecimento de pássaros e insetos pelo uso intensivo de agrotóxicos, sem
que os agricultores se deem conta de que esses pássaros e insetos são úteis às
lavouras. Menciona explicitamente a Amazônia como uma das áreas que precisam
ser protegidas, e critica as propostas de internacionalização do maior bioma
brasileiro, "que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais".
Vale lembrar que o Congresso Nacional - o
mesmo que aprovou um polêmico e desastrado Código Florestal - quer retirar do
governo a prerrogativa de definir quais áreas verdes ou reservas indígenas
merecem ser protegidas. Há muitos motivos para acreditar que a maior floresta
tropical úmida do mundo poderá ficar ainda mais exposta à devastação do que se
verifica hoje em dia se essa medida for aprovada. Valei-nos Francisco!
A Encíclica também aborda a situação
deplorável do berço da vida. "Quem transformou o maravilhoso mundo marinho
em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?", pergunta
Francisco, defendendo mais investimentos em pesquisas e responsabilidades
compartilhadas entre os países na proteção dos oceanos, que abrigam a maior
parte dos seres vivos.
E o meio ambiente nas cidades? A urbanização
acelerada e caótica que obriga a maior parte das pessoas a viver "cada vez
mais submersas de cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contato físico
com a natureza" preocupa o Papa. A cultura consumista é atacada duramente
na Encíclica por agravar os danos ambientais e aumentar o desperdício.
Francisco menciona a "dívida ecológica" entre o Norte e o Sul, por
conta da acelerada degradação socioambiental dos países periféricos que sustentam
de forma degradante o estilo de vida e os padrões de consumo dos mais ricos.
Sobrou também para os políticos.
"Preocupa a fraqueza da reação política internacional", reclama
Francisco, que abre generoso espaço para denunciar os riscos do desenvolvimento
tecnológico sem ética ou bom senso, sofisticando os instrumentos de dominação e
manipulação. Ao defender uma "corajosa revolução cultural", o chefe
da Igreja convida a todos – católicos e não católicos – ao exercício da visão
sistêmica, que nos revela um mundo interligado e interdependente, onde a
fragmentação do saber e do conhecimento nos afastam da verdade das coisas.
No capítulo "Ecologia Integral", o
texto assinado por Francisco busca a grande síntese, os caminhos para
alcançarmos o bem comum, onde a ética, a justiça e a paz se sobreponham a
desigualdade, ao preconceito e à intolerância. "Que tipo de mundo queremos
deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer?” pergunta.
Abre-se espaço para questões filosóficas essenciais cujas respostas poderiam
conter o movimento de manada que hoje atormenta parcela significativa da
Humanidade." Com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a
esta vida? Para que trabalhamos e lutamos?".
Reforçando a fama de metódico (que costuma perseguir
os jesuítas), o Papa aponta na Encíclica "algumas linhas de orientação e
ação". Indica com precisão cirúrgica a distância que ainda separa o
discurso da prática, relembra promessas não cumpridas, os interesses mesquinhos
dos países mais ricos em vários encontros internacionais organizados para
resolver problemas ambientais, as armadilhas embutidas em certas "soluções
diplomáticas", o fardo imposto pela visão de curto prazo onde prevalecem
os interesses imediatistas e etc. Apesar dos problemas, Francisco reconhece
avanços importantes sacramentados em vários acordos e tratados. Percebe-se que
o mundo avança. Mas tão lentamente que as poucas conquistas não são suficientes
para anular os riscos de um colapso global.
Dentre todas as ordens religiosas, a dos
jesuítas é conhecida pela afinidade com as tarefas associadas ao
desenvolvimento intelectual e à gestão de instituições de ensino. Talvez por
isso, o Papa encerre sua Encíclica - a primeira totalmente sob sua
responsabilidade, e a primeira da Igreja com esse viés ecológico - com o
capítulo que versa sobre "educação e espiritualidade ecológicas".
Cita a Carta da Terra, fala de educação
ambiental, cidadania ecológica, e exorta os cristãos a uma "conversão
ecológica". Diz Francisco: "Viver a vocação de guardiões da obra de
Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas
parte essencial de uma existência virtuosa".
Os mais próximos do Papa afirmam que foi ele
próprio o redator da Encíclica, embora tenha contado com a preciosa ajuda de
muitos auxiliares do meio acadêmico e científico. Nesta despretensiosa resenha
de um documento de 192 páginas, não poderia omitir a sensação clara que tive,
enquanto leitor, de que a Encíclica resume uma saudável angústia. Francisco não
se omitiu. Fez o que estava ao seu alcance. É definitivamente um homem à altura
do seu tempo, do seu cargo, e do discurso que vocaliza em favor de um mundo
melhor e mais justo.
Ao honrar os princípios do Franciscanismo,
promove no século XXI o mesmo convite à ruptura do modelo vigente que o poverello de Assis realizou no século
XIII. O novo Cântico das Criaturas é tão inspirador quanto o original. Sejamos,
portanto, aliados da "mãe Terra", nos integrando à maravilhosa
comunidade dos seres viventes. É o convite que nos faz a Encíclica.
fonte:http://g1.globo.com/natureza/blog/mundo-sustentavel/post/uma-enciclica-para-mudar-o-mundo.html
(*)
jornalista da TV Globo e comentarista da CBN. Escritor e expositor espírita,
autor da obra Ecologia e Espiritismo, e colaborador deste espaço.
Não há como negar a importância do documento do Papa em defesa do planeta. Necessário que o discurso saia do papel e permita que uma das maiores latifundiárias do planete, a igreja católica, deixe-o de ser e as suas riquezas sejam disponibilizadas a favor das necessidades do mundo sem ficar retidas em investimento mascarados do capitalismo selvagem...essa talvez a mais espinhosa tarefa do condutor dos católicos, ao lado, é claro, do controle dos desvarios sexuais dos muitos dos seus prelados. Roberto Caldas.
ResponderExcluirCaro amigo Roberto!
ResponderExcluir"Vá, venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois, venha e siga-me." A exemplo do que esperou do jovem rico, Jesus também espera da Igreja
Gostei dos dois comentários e gosto também desse Francisco que escreveu essa Encíclica!
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