Pular para o conteúdo principal

ESPIRITISMO: HERESIA?



“E, indo, pregai, dizendo: o reino dos céus está próximo.
                        Curai os enfermos, limpai os leprosos, ressuscitai os mortos, expulsai os demônios. 
De graça recebestes, de graça dai.” 
(Jesus, Mt: 10:5-15)



Por Jorge Luiz (*)


"Porás no cabeçalho do livro o ramo de parreira que te desenhamos porque é ele o emblema do trabalho do Criador" (Prolegômenos, "O Livro dos Espíritos")
          Por volta do século II, multiplicavam-se as seitas no seio do Cristianismo Primitivo, nas regiões da Ásia e da Frígia (moderna Turquia), principalmente pela ausência de bispos suficientes para coordenar essas regiões.
            Ireneu, ou Irineu de Lyon (130-202), bispo grego, teólogo e escritor cristão, numa tentativa de proteger os cristãos, escreve a obra Sobre a Detecção e Refutação da Chamada Gnosis, em cinco volumes, também conhecida como Contra Heresia (Adversus Haeresis), obra da coleção Patrística.  
            Observe-se como ele definiu bem as práticas dos primeiros cristãos, segundo citação de Elaine Pagels, professora de religião na Universidade de Princeton, USA, em sua obra Além de Toda Crença:

Os que são verdadeiramente seus discípulos expulsam demônios de fato. (...) Outros preveem coisas que acontecerão; têm visões e dizem profecias (...) outros, ainda,  curam os doentes impondo as mãos sobre eles, que ficam em completa saúde.
(...) Não é possível dizer quantos dons a igreja no mundo todo recebeu em nome de Jesus Cristo e usa todos os dias em benefício das nações, sem enganar ninguém nem aceitar dinheiro nenhum. (grifos meus).


            A obra frisa que o maior problema que Irineu enfrentava era um grande número de práticas cismáticas e fraudulentas. O que ela buscava era “como fazer a diferença entre a palavra de Deus e as meras palavras humanas.”
            O Cristianismo não se apresentou como uma doutrina ou teologia, mas surge no mundo essencialmente como uma pregação. Observa-se que ela vai tomando corpo de doutrina diante das necessidades de se refletir sobre o seu conteúdo e ordenamento interno de sua mensagem.
            De origem grega – hairesis – significa “opção”, “escolha”. Já no latim – haeresis significa “opinião”, “sistema”, “doutrina”.
            No sentido figurado exprime popularmente “contrassenso”, “absurdo”, “disparate”.
            No sentido teológico, a palavra passou a ser utilizada para definir os sistemas de crenças contrárias aos dogmas da Igreja Católica, deflagrando as várias instituições dedicadas à supressão das heresias, conhecidas como Inquisição. A Inquisição predominou na Idade Média, quando o herético era responsabilizado por crime de fé, sendo submetido a penas que variavam desde o confisco de bens, a perda da liberdade e até a pena de morte, muitas vezes na fogueira.
            O resquício da Inquisição na Espanha alcançou o Espiritismo, que marcou a sua marcha como o Auto-de-Fé de Barcelona, que culminou com a queima de trezentas obras espíritas por considerá-las heréticas.
            A inquisição passou, mas os seus trejeitos continuam no quesito da intolerância religiosa, basta olhar para o cenário religioso do mundo inteiro. É fácil de concluir que o significado de heresia foi mudando no decorrer do tempo, ao sabor das autoridades eclesiásticas. A heresia, no entanto, no sentido lato sensu, refere-se ao pensar contrário de outro. Discordar. Emitir opinião. As suas formas-raízes ajudam a entender.
            Quando se analisa os postulados de Irineu, não restam dúvidas de que as práticas dos cristãos primitivos eram idênticas às práticas adotadas pelos espíritas. Portanto, consideradas heréticas pelo Catolicismo e Protestantismo, essas práticas, na realidade, eram comuns nas comunidades cristãs primitivas. Leia-se o que dizem a esse respeito os historiadores das religiões Marcel Simon e André Benoit, na obra Judaísmo e Cristianismo Antigo: de Antíoco Epifânio a Constantino:

Na verdade, os nazarenos – lembremo-nos de que esse termo fora a princípio, sinônimo de cristãos, o primeiro, com certeza, usado para designá-los – viram-se pouco a pouco relegados à categoria de seita. E isso porque, tanto no plano da observância quanto no da doutrina, se apegavam a posições ultrapassadas pela evolução da grande Igreja, cujos membros provinham principalmente dos meios pagãos, e pela progressiva elaboração do que viria a tornar-se ortodoxia¹. (grifos meus).

            Fica óbvio, portanto, que o considerado por Irineu como heresia, ao longo do tempo se tornou ortodoxia. A ortodoxia dos dias atuais foi heresia no quadrante do Cristianismo Primitivo.      A este respeito, leia-se o que afirma o eminente pastor protestante islandês Haraldur Nielsen, em sua obra O Espiritismo e a Igreja:

Paulo e os cristãos primitivos acreditavam em uma incessante comunicação com um mundo invisível, mais evoluído do que o nosso. É essa comunicação que os espíritas reataram.

            Ao comparar os estudos de Simon & Benoit e de Nielsen, às determinações de Irineu, ficam claros os motivos do envio do Espiritismo, na condição de “O Consolador Prometido” por Jesus, vindo ao mundo para corrigir esses erros que se enraizaram na Boa Nova. Além disso, os seus ensinamentos tornam a mensagem cristã mais compreensível e não vêm para concorrer com as religiões, em posição sectária, mas tornam os ensinamentos do Cristo mais compreensíveis, e naturalmente possibilitarão a renovação dos fundamentos das religiões.
           
          O Espiritismo favorece aos seus adeptos a superação dessa fé cega, que tem alimentado o fanatismo e a intolerância religiosa, por uma fé raciocinada, calcada na lógica e na razão, libertando as consciências do julgo clerical. Esclarece que os Espíritos estão na condição de imortais, viajores através da esteira do tempo, pelas vidas sucessivas, irmãos de jornada, não mais submetidos ao rótulo que separam heréticos e cristãos.
            O Espiritismo não é ortodoxia e nem heresia.
            Ortodoxia e heresia são decorrentes do fanatismo dos mecanismos doutrinários, e se pertencem fundamentalmente, afirmou Michel Foucault (1926-1984), filósofo, filólogo, teólogo social e crítico social francês.
            A Doutrina Espírita, lastreada pelas leis naturais, em suas dimensões científica, filosófica e moral, paira acima dessas restrições teológicas limitantes. Sendo a doutrina do aperfeiçoamento moral em todos os mundos, como assevera o Espírito Emmanuel, o Espiritismo inaugura na Terra a sociologia cósmica, capacitando o homem, através das vivências sucessivas e pela solidariedade entre os mundos, a ser cidadão da Humanidade Real.
           
(*) blogueiro e expositor espírita.            


¹ A ortodoxia é a corrente doutrinal que declara que representa a visão correta, fundada em princípios sistemáticos (metafísicos) e científicos.


Referências

BENOIT, André; SIMON, Marcel. Judaísmo e cristianismo antigo: de Antíoco Epifânio a Constantino. São Paulo: Pioneira: Editora da Universidade de São
Paulo, 1987.

NIELSSON, Haraldur. O Espiritismo e a igreja. São Paulo. Correio Fraterno.1983.
PAGELS, Elaine. Além de toda crença. Editora Objetiva, 2004, 248 p.

St. IRENAEUS, na edição de 1913 da Catholic Encyclopedia (em inglês), uma publicação agora em domínio público.

XAVIER, F. Cândido. Religião dos espíritos. Rio de Janeiro. FEB. 1960.

Comentários

  1. Sou embrião no espiritismo, mas o que li acima, me faz estreitar os laços ainda mais.

    ResponderExcluir
  2. MEU AMIGO.
    PROSSEGUE ENSINANDO E NOS LEVANDO A REFLEXÃO.
    OBRIGADA E PERMANECE EM DEUS. (Luíza de Marilac)

    ResponderExcluir
  3. Veemente e bem fundamentada exposição!
    Everaldo Mapurunga

    ResponderExcluir
  4. Concordo Everaldo! Precisamos agora saber a entidade que o ajudou! rsrsrsrsrsr...abraço frateno em todos.

    Fernando Bezerra

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

PROGRESSO - LEI FATAL DO UNIVERSO

    Por Doris Gandres Atualmente, caminhamos todos como que receosos, vacilantes, temendo que o próximo passo nos precipite, como indivíduos e como nação, num precipício escuro e profundo, de onde teremos imensa dificuldade de sair, como tantas vezes já aconteceu no decorrer da história da humanidade... A cada conversação, ou se percebe o medo ou a revolta. E ambos são fortes condutores à rebeldia, a reações impulsivas e intempestivas, em muitas ocasiões e em muitos aspectos, em geral, desastrosas...

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

OS FANATISMOS QUE NOS RODEIAM E NOS PERSEGUEM E COMO RESISTIR A ELES: FANATISMO, LINGUAGEM E IMAGINAÇÃO.

  Por Marcelo Henrique Uma mensagem importante para os dias atuais, em que se busca impor uma/algumas ideia(s), filosofia(s) ou crença(s), como se todos devessem entender a realidade e o mundo de uma única maneira. O fanatismo. Inclusive é ainda mais perigoso e com efeitos devastadores quando a imposição de crenças alcança os cenários social e político. Corre-se sérios riscos. De ditaduras: religiosas, políticas, conviviais-sociais. *** Foge no tempo e na memória a primeira vez que ouvi a expressão “todos aprendemos uns com os outros”. Pode ter sido em alguma conversa familiar, naquelas lições que mães ou pais nos legam em conversas “descompromissadas”, entre garfadas ou ações corriqueiras no lar. Ou, então, entre algumas aulas enfadonhas, com a “decoreba” de fórmulas ou conceitos, em que um Mestre se destacava como ouro em meio a bijuterias.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

REENCARNAÇÃO E O MUNDO DE REGENERAÇÃO

“Não te maravilhes de eu te dizer: É-vos necessário nascer de novo.” (Jesus, Jo:3:7) Por Jorge Luiz (*)             As evidências científicas alcançadas nas últimas décadas, no que diz respeito à reencarnação, já são suficientes para atestá-la como lei natural. O dogmatismo de cientistas materialistas vem sendo o grande óbice para a validação desse paradigma.             Indubitavelmente, o mundo de regeneração, como didaticamente classificou Allan Kardec o estágio para as transformações esperadas na Terra, exigirá novas crenças e valores para a Humanidade, radicalmente diferenciada das existentes e que somente a reencarnação poderá ofertar, em face da explosiva diversidade e complexidade da sociedade do mundo inteiro.             O professor, filósofo, jornalista, escritor espírita, J. Herc...

A PROPÓSITO DO PERISPÍRITO

1. A alma só tem um corpo, e sem órgãos Há, no corpo físico, diversas formas de compactação da matéria: líquida, gasosa, gelatinosa, sólida. Mas disso se conclui que haja corpo ósseo, corpo sanguíneo? Existem partes de um todo; este, sim, o corpo. Por idêntica razão, Kardec se reportou tão só ao “perispírito, substância semimaterial que serve de primeiro envoltório ao espírito”, [1] o qual, porque “possui certas propriedades da matéria, se une molécula por molécula com o corpo”, [2] a ponto de ser o próprio espírito, no curso de sua evolução, que “modela”, “aperfeiçoa”, “desenvolve”, “completa” e “talha” o corpo humano.[3] O conceito kardeciano da semimaterialidade traz em si, pois, o vislumbre da coexistência de formas distintas de compactação fluídica no corpo espiritual. A porção mais densa do perispírito viabiliza sua união intramolecular com a matéria e sofre mais de perto a compressão imposta pela carne. A porção menos grosseira conserva mais flexibilidade e, d...