sábado, 26 de julho de 2014

DESENCARNAÇÃO E DESPRENDIMENTO



Por Sérgio Aleixo (*)



Morte é para o corpo; desencarnação, para o espírito. Essas palavras, contudo, equivalem-se. Por isso se diz que fulano desencarnou, em vez de se dizer que morreu. Espíritas, somos cientes de que a separação entre alma e corpo raramente é instantânea, donde passarmos, às vezes, dessa equivalência a uma diferença artificial e, pior, nada técnica entre morte e desencarnação, quando existe, na verdade, entre desencarnação e desprendimento. Kardec utilizou o substantivo désincarnation apenas duas vezes, por mais que os tradutores o tenham feito aparecer, e a formas do verbo désincarner, onde nunca estiveram. Em O Livro dos Espíritos, por exemplo, nenhuma ocorrência há do substantivo desencarnação, do verbo desencarnar, em qualquer de suas formas, nem mesmo do particípio ou adjetivo desencarnado (désincarné). Kardec se refere, ali, ao encarnado (incarné), reencarnado (reincarné) e não encarnado ou errante (non incarné ou errant), i. é, liberto, desprendido ou desembaraçado do corpo (dégagé du corps). Os tradutores febianos é que sempre ousam mais. E até essas ousadias indicam equivalência e não diferença entre morte e desencarnação.[1] Kardec chegou a usar, sim, o particípio ou adjetivo desencarnado, o substantivo désincarnation, mas nunca o verbo desencarnar e suas formas, o que coube, antes, aos espíritos Viennois (désincarnent), Lamennais (désincarne) e Clélie Duplantier (désincarnant).[2] Eis os dois únicos empregos substantivos do mestre, na obra O Céu e o Inferno e na Revista Espírita:

“Cada globo tem, de alguma sorte, sua população própria de espíritos encarnados e desencarnados, alimentada em sua maioria pela encarnação e desencarnação dos mesmos [espíritos]. Esta população é mais estável nos mundos inferiores, pelo apego deles à matéria, e mais flutuante nos superiores”.[3]

“Tal é a alma durante a vida e depois da morte. Para ela há, portanto, dois estados: o de encarnação ou de constrangimento, e o de desencarnação ou de liberdade; em outras palavras: o da vida corporal e o da vida espiritual”.[4]


No primeiro contexto, desencarnação opõe-se a encarnação, justamente como morte a nascimento; no segundo, é o estado de liberdade, de vida espiritual. Ora, désincarnation surgiu primeiramente numa correspondência publicada na Revista Espírita de setembro de 1863. No texto do missivista, lê-se: “désincarnation ou mort corporelle”, sinonímia que não mereceu de Kardec nenhum reparo.[5] As duas ocorrências substantivas restantes pertencem aos espíritos Demeure e Clélie Duplantier; em ambas, permanece o paralelismo com a palavra morte.

“[...] quanto mais cedo se der a sua desencarnação, mais cedo poderá se dar também a reencarnação que lhe permitirá acabar a sua obra [...].”[6]

“Em geral, sendo a população mauriciana inferior, do ponto de vista moral, a desencarnação não pode fazer do espaço senão um viveiro de espíritos muito pouco desmaterializados, ainda marcados por todos os seus hábitos terrenos, e que continuam, não obstante espíritos, a viver como se fossem homens.”[7]

Quando, por outra, os espíritos e Kardec trataram da intimidade do processo quase sempre gradual da separação entre alma e corpo, ou seja, no suceder mesmo da morte e do pós-morte, não o fizeram sob os signos da palavra désincarnation, e sim do vocábulo dégagement: desprendimento.[8] E não sem motivos. O princípio espírita é que “a vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas a alma não pode habitar um corpo sem vida orgânica”.[9] Ora, após a morte, por mais demorado que o seja, o desprendimento “não implica”, segundo o mestre, “a existência no corpo de nenhuma vitalidade, nem a possibilidade de retorno à vida, mas a simples persistência de uma afinidade entre o corpo e o espírito, afinidade que está sempre na razão da preponderância que, durante a vida, o espírito deu à matéria.”[10] O estado de encarnação, assim, pressupõe vitalidade corporal; a ausência desta caracteriza, por sua vez, o de desencarnação. O cadáver não pode estar mais ou menos morto; na mesma proporção, a alma não estará mais ou menos desencarnada (désincarné), e sim mais ou menos livre, desprendida, desembaraçada (dégagé), conceito bem distinto.
Ao ocorrer a cessação da atividade do princípio vital, o corpo não mais retém a alma, embora esta, não raro, é que insista em identificar-se à matéria inerte. Com a morte, não há mais, no corpo, nenhuma vitalidade, todavia pode existir, entre alma e corpo, alguma ou muita afinidade, o que gera pontos de contato entre o cadáver e o perispírito. Entretidas que eram essas ligações fluídicas apenas pela atividade do princípio vital, passam a ser mantidas por uma força de aderência que, agora só devida ao espírito, o retém identificado ao corpo, e não mais encarnado nele.[11] Esses laços fluídicos podem gerar uma espécie de repercussão moral que transmite ao espírito a sensação do que se passa no corpo, muito embora, incontinenti, Kardec esclareça que repercussão não é o melhor termo, por dar a ideia de um efeito muito material àquilo que, antes, está mais para uma ilusão que o espírito toma como realidade. Ora, neste, as sensações não dependem mais de órgãos sensitivos; são gerais e não mais se devem a agentes exteriores.[12]

Portanto, a desencarnação só se opera com a morte; o desprendimento, já durante a vida. A primeira depende da morte do corpo; o segundo, da elevação da alma. Durante a encarnação, é a vitalidade do corpo que prende a alma; depois da morte, é a afinidade da alma com a matéria que a identifica com o cadáver. Desse modo, morte equivale, sim, a desencarnação e antes difere, mais propriamente, de desprendimento. Morto o corpo, o espírito está desencarnado, sem estar, porém, necessariamente desprendido.

[1] Vejam-se estes oito exemplos: O Livro dos Espíritos, (1) nota ao n. 188: “Une personne décédée”; i. é: “Uma pessoa falecida”. Guillon Ribeiro: “um espírito que desencarnara”; Evandro Noleto Bezerra: “um espírito que havia desencarnado”. Herculano Pires: “Uma pessoa falecida”. (2) n. 257: “pendant les premiers instants, l'Esprit”; i. é: “durante os primeiros instantes, o espírito”. G. R.: “durante os primeiros minutos depois da desencarnação, o espírito”. E. N. B.: “Durante os primeiros instantes, o espírito”. H. P.: “Nos primeiros instantes, o espírito”. (3) n. 339: “sortie du corps”; i. é: “saída do corpo”. G. R. e E. N. B.: “ao desencarnar”; H. P.: “desencarnação”. (4) n. 399: “l'état d'Esprit” e “l'état d'incarnation”; i. é: “o estado de espírito” e “o estado de encarnação”. G. R. e E. N. B.: “quando desencarnado” e “quando encarnado”. H. P.: “no estado de espírito” e “no estado de encarnado”. (5) n. 402: “à leur mort”; i. é: “na sua morte”. G. R.: “desencarnando”; E. N. B.: “ao desencarnarem”. H. P.: “ao morrerem”. (6) n. 1014-a: “Esprits errants, ou nouvellement dégagés”; i. é: “espíritos errantes, ou recentemente libertos”. G. R. e E. N. B.: “recém-desencarnados”; H. P.: “recentemente libertados”. (7) O Céu e o Inferno, parte II, cap. II: Sr. Sanson, numa nota Kardec escreve: “mais en raison de la mort récente de M. Sanson”, i. é: “mas em razão da morte recente do Sr. Sanson”. Manuel J. Quintão: “visto que o Sr. Sanson desencarnara recentemente”; H. P.: “mas em virtude da morte recente do Sr. Sanson”. (8) O Céu e o Inferno, parte II, cap. II: O Doutor Demeure, a certa altura escreve Kardec: “lendemain de sa mort”; i. é: “no dia seguinte ao de sua morte”. M. J. Q.: “da sua desencarnação”; H. P.: “da sua morte”, etc., etc.
[2] F.E.B., mai/1863, p. 222; out/1863, p. 429; abr/1869, p. 121.
[3] O Céu e o Inferno. Parte I, cap. III, n. 17. F.E.B., 2003, 51.ª ed., p. 37. Meu, o acréscimo da palavra “espíritos” entre colchetes. No original francês: “mêmes Esprits”.
[4] Revista Espírita. Jan/1866. A Jovem Cataléptica da Suábia. Estudo Psicológico. F.E.B., 2007, 2.ª ed., p. 41.
[5] Questões e Problemas. Sobre a expiação e a prova. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 366.
[6] O Céu e o Inferno. Parte II, cap. II. O Doutor Demeure. Trad.: J. Herculano Pires.
[7] Revista Espírita. Mar/1869. As árvores mal-assombradas da Ilha Maurício. F.E.B., 2007, 2.ª ed., p. 122.
[8] O Livro dos Espíritos, 154 a 162. O Céu e o Inferno, Parte II, cap. I: Le Passage.
[9] O Livro dos Espíritos. 136-a. Trad.: J. Herculano Pires.
[10] O Livro dos Espíritos. 155-a. Trad. J. Herculano Pires.
[11] O Céu e o Inferno. Parte I, cap. I, ns. 4, 5, 10 e 11. No francês: “points de contact”; “force d'adhérence”; “liens fluidiques”.
[12] O Livro dos Espíritos, 257. No original: “[...] Dans le corps, ces sensations sont localisées par les organes qui leur servent de canaux. Le corps détruit, les sensations sont générales. […] la douleur n'est pas localisée et qu'elle n'est pas produite par les agents extérieurs: c'est plutôt un souvenir qu'une réalité […] il en résultait une sorte de répercussion morale qui lui transmettait la sensation de ce qui se passait dans le corps. Répercussion n'est peut-être pas le mot, il pourrait faire croire à un effet trop matériel […] Le périsprit, dégagé du corps, éprouve la sensation; mais comme elle ne lui arrive plus par un canal limité, elle est générale. […] savons qu'il y a perception, sensation, audition, vision; que ces facultés sont des attributs de tout l'être, et non, comme chez l'homme, d'une partie de l'être […] Il n'en est pas de même de ceux dont le périsprit est plus dense; ceux-là perçoivent nos sons et nos odeurs, mais non pas par une partie limitée de leur individu, comme de leur vivant [...] inférieurs comme supérieurs, n'entendent et ne sentent que ce qu'ils veulent entendre ou sentir. Sans avoir des organes sensitifs, ils peuvent rendre à volonté leurs perceptions actives ou nulles [...]”.


(*) palestrante e escritor espírita.

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