Renomado teólogo pergunta: — O que é
alteridade? — Ao que responde: — É ser capaz de apreender o outro na plenitude
da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença.[i] — Essa ética
filosofal quer estabelecer uma relação de entendimento entre os que considera
essencialmente diferentes, mas para um dos seus maiores teóricos: “O
absolutamente outro é outrem; não faz número comigo”.[ii] Bem;
contornemos essa tão funda singularidade antes que trague toda nossa luz. O
fato é que se impôs o clamor por um espiritismo em que Kardec não seja
senão mais uma corrente em tantas, o que, por sinal, sem qualquer novidade,
remete não à rota criteriosa da doctrine spirite pelo mestre
sonhada, sim ao new spiritualism ou spiritism
anglo-americano, mais difuso.[iii]
O instrumento usado para tanto há sido a ética da alteridade; mas o que se
almeja, desse modo, é progredir sem óbices entre kardecistas, fazendo os
adeptos deste modal espírita, por natureza mais exigente, acreditarem não ser
boa conduta opor lúcida resistência a certas heterodoxias um tanto excêntricas
por vezes.
Essa filosofal ética alteritária, todavia, não
afronta em nada o spiritisme. Ninguém respeitou mais as diferenças e
apreendeu, nelas, o outro, do que o professor H.-L.-D. Rivail. O controle por
ele feito do ensino geral dos espíritos o obrigava a ter em conta mesmo o que
seres de pouca elevação tinham a dizer. Para esse gênio da observação, os
espíritos foram, do menor ao maior, meios de se informar, não reveladores
predestinados.[iv] Aos
detratores, respondia que a doutrina preconiza a liberdade de consciência como
direito natural de seus adeptos e de todo mundo; respeita convicções sinceras e
exige a reciprocidade.[v] Que saberiam,
porém, da filosofal ética da alteridade os que, desde a morte do mestre,
asseveram, em falso, que estaria de todo ultrapassado e oferecem, como solução,
as obras que eles adotam de outrem, escrevem por si ou recebem de espíritos sem
nenhum confronto de aferição? Não há ética alteritária nisso, salvo se a
reciprocidade lhe seja de somenos. O espiritismo stricto sensu, a
doctrine spirite — sim, o kardecismo —, não seria um
absolutamente outro que é outrem e, afinal, diverso, merecendo seu direito de
existir tal qual é? Como podem os paladinos desse pluralismo dito “filosófico”
se proclamar kardecistas em flagrantes contraditas a Kardec? 1) reencarnação é
castigo a espíritos falidos noutra linha de evolução [Roustaing]; 2) incensos e
defumadores são detonadores de miasmas astralinos [Ramatis/Armond]; 3)
a atual filosofia espírita é limitada por não nos esclarecer as primeiras
origens do universo e o plano geral da criação, faltando-lhe visão completa do
todo [Ubaldi]; 4) o espiritismo é uma doutrina laica, neutra quanto ao
pensamento religioso, não pode ser cristão [CEPA/NEFCA]; 5) espiritismo é toda
interpretação que possibilite espiritualização e, por isso, deve imperar o
regime do mais livre pluralismo de concepções sobre os postulados da doutrina
[movimento Atitude de Amor]; dentre outros subsistemas.
Certos campeões da ética alteritária defendem
respeito às diferenças, mas, para o caso particular da diferença que
caracteriza o spiritisme francês, trabalham por diluí-la, isto é, a
identidade kardeciana do espiritismo. A pretexto de atualizá-la, de combate às
ações doutrinantes que a engessariam, não deixam de reproduzi-las a seu próprio
modo. Onde, pois, a ética alteritária? Querem-na, é verdade; por obrigação
alheia, contudo. Ora; não obstante o zelo da composição doutrinária de Kardec,
ela registra esse espiritismo lato sensu, de alcance vário, por
assim dizer. Ideias e fatos antigos mencionados pelo mestre como espiritismo:
entre os druidas, na bíblia, etc.;[vi] o que ocorria,
outrossim, na literatura estadunidense: ancient spiritism, present
spiritism: espiritismo antigo, espiritismo atual.[vii]
Por conseguinte, lato sensu, mas só por esse motivo admissível in
totum, espíritas já o são todos os que pura e simplesmente se filiem a
estudos e práticas que impliquem a crença na ação dos espíritos. Isso mais
remete ao spiritism, ao new spiritualism anglo-americano,
anterior ao Livro dos Espíritos; contudo não lhe é, a este último,
alheia essa pluralidade mais difusa. Na introdução dessa sua magna obra, Kardec
escreve que a doctrine spirite[viii]
tem por princípio as relações do mundo material com os espíritos e que o adepto
do espiritismo (celui qui croit aux manifestations des esprits: aquele
que crê nas manifestações dos espíritos)[ix] será o
espírita ou espiritista, vocábulo, aliás, também do inglês: spiritist,
idioma em que a palavra central da “ciência” e da doutrina já fora tomada ao
latim: medium.[x] Na conclusão
da mesma obra fundamental, postula Kardec algo inédito, três graus entre os
adeptos: os que se limitam à ciência experimental; os que admitem a moral que
dela decorre, e os que praticam ou se esforçam por praticar a moral do spiritisme
philosophique.[xi]
Portanto, o spiritisme, a doctrine
spirite, corresponde, sim, ao produto singular da lógica estreme do
método de composição kardeciano; todavia nem por isso deixou ao desabrigo do
qualificativo spirites ou spiritistes os que não chegam a
progredir nos três graus da doutrina ou que não a acolhem toda, os que se
conservam na fase empírica e, como vimos, por extensão retroativa, até
mitológica, oracular, profética; donde haver, sim, lato sensu,
espiritismo na umbanda, no candomblé, por exemplo, como havia na bíblia, entre
os druidas e por toda antiguidade. Tanto assim é que Kardec fez publicar sem
reparos em sua Revista, já em 1868: “Por não ser espírita completo, não se é
menos espírita, o que faz por vezes que se o seja sem saber, algumas vezes sem
o querer confessar e que, entre os sectários de diferentes religiões, muitos
são espíritas de fato, quando não de nome”.[xii]
A dicotomia espiritualismo/espiritismo que se quer impor no Brasil, no sentido:
não kardecista/kardecista, está eivada de uma deletéria pretensão hegemônica e,
nalguns casos, de um criminoso preconceito contra as religiões
afro-brasileiras; além de falsear a história do espiritismo. Não havia distinção
entre espíritas e espiritualistas entendidos como adeptos e não adeptos de
Kardec, sim entre os espiritualistas que criam nas manifestações dos espíritos
e os que nelas nem sempre criam. Kardec percebeu esta confusa sinonímia
estadunidense: spiritualists or spiritists, espiritualistas ou
espiritistas.[xiii]
A primeira, tradicional, ligada ao spiritualism; a segunda, neologismo,
ao spiritism. Didata, Rivail logo preferiu spiritism e spiritist,
para o que diz respeito aos espíritos e suas manifestações, a spiritualism
e spiritualist, ainda que adjetivados, estes, por modern e new.
Com isso, Kardec evitou qualquer dúvida quanto ao fato de a intervenção dos
espíritos ser o traço distintivo do spiritism e a crença central dos spiritists,
no que nem sempre eram acompanhados pelos spiritualists.[xiv]
Estabelecera-se, assim, o grande divisor de águas; não entre os adeptos e os
não adeptos de Kardec, mas entre os crentes e os descrentes na intervenção dos
espíritos no mundo natural.
[i] Frei Betto. Alteridade. In: Agencia Latinoamericana
de Información. http://alainet.org/active/3710〈=es.
[iii] Fonte
primeira do espiritismo moderno; 1837 (fenômenos entre os Shakers), 1848 (entre
os Fox), 1854 (publica-se a palavra spiritism). Kardec se refere “a um
dos mais fervorosos adeptos da doutrina e que, havia muitos anos, desde 1849,
se ocupava com a evocação dos espíritos. (Cf. O Livro dos Espíritos.
Introdução: IV.)
[vii] GOODRICH, Chauncey. The
Apocatastasis; Or Progress Backwards. Cap. VI, p. 64.
Burlington, 1854.
[viii] Salvo
melhor juízo, locução kardeciana que, ali, tornou-se sinônima da palavra de
língua inglesa adaptada ao francês: spiritisme (de spiritism). —
“Si donc j'ai adopté les mots spirite, spiritisme, c'est parce
qu'ils expriment sans équivoque les idées relatives aux esprits. Tout spirite
est nécessairement spiritualiste, mais il s'en faut que tous les spiritualistes
soient spirites.” — Se assim eu adotei os termos espírita, espiritismo,
é porque eles exprimem, sem equívoco, as ideias relativas aos espíritos. Todo espírita
é necessariamente espiritualista, mas nem todos os espiritualistas são
espíritas. (O Que É o Espiritismo. Cap. I. Espiritismo e
espiritualismo.)
[ix] Le
Livre des Mediums. Nouvelle edition
conforme a la onzieme edition de 1869. Union Spirite Française et Francophone.
Chapitre XXXII. Vocabulaire spirite.
[xii] Emile
Barrault, engenheiro. In: Revista Espírita. Jun/1868. Nota bibliográfica. Por
Allan Kardec.
fonte: http://sergioaleixo.blogspot.com.br/2017/03/3-etica-e-alteridade_27.html
Para mim esse texto de Sérgio Aleixo é de muita clareza sobre a questão posta por ele. Da minha parte me sinto inclinado a concordar in totum com o as ideias postas nesse texto.
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