Pular para o conteúdo principal

OS ESPÍRITAS E AS EMOÇÕES: O EU MESMO E O EU ESPÍRITA

 


Há uma doença que infesta todas as manifestações religiosas e tradições espirituais do planeta: o farisaísmo. Até Jesus se indignou com isso. As pessoas aderem a uma proposta espiritual e aspiram rapidamente à santidade. E se apresentam como tal.

Entre espíritas, acontece o mesmo. Muitos falando de voz mansa, com olhos virados, sorriso ensaiado… pregando a tal reforma íntima (termo que aliás não me agrada), mas no fundo, permanecem os mesmos sentimentos escuros e primitivos intocados: inveja, ciúme, desejo de poder, sensualidade

O fantástico grupo de humor espírita, Amigos da Luz, fez um episódio (vídeo) sobre isso, que acho dos melhores. Eu, eu mesma e eu Espírita.

Nele aparece claramente essa adesão superficial aos princípios espíritas e o quanto isso pode ser irritante para pessoas mais autênticas.

Há alguns com essa tendência, que poderíamos chamar de herdeiros dos fariseus do tempo de Jesus, a quem o Mestre qualificava de “cegos condutores de cegos” – indivíduos que assumem cargos institucionais ou lideram movimentos religiosos e que são sequiosos de poder. Personalidades narcísicas que querem aplauso e adoração a qualquer preço. Temos dessas figuras em nosso movimento. Então, pode até haver uma intencionalidade de assumir essa máscara, para melhor dominar os incautos.

Mas, em muitos, não há intencionalidade, nem consciência do que estão fazendo: simplesmente sofrem do que poderíamos qualificar de “ilusão de bondade”- esse é o exemplo ilustrado pela Renata do vídeo dos Amigos da Luz.

Pessoas que acham que por adotarem o espiritismo como filosofia de vida, já resolveram todos os problemas internos, já não são mais humanas, demasiadamente humanas.

Pensam que espírita não sente raiva, não se magoa, não faz luto, não pode se posicionar com ênfase e energia. Tem sempre que se apresentar blasé, sorriso forçado, cara de paisagem!

O que se dá é um processo de repressão (psicaliticamente chamaríamos de recalque) das emoções, dos desejos, das questões não resolvidas. E isso, em algum momento, estoura, vem à tona, em forma de doença, depressão, surto, ou o que for. Não é que as pessoas não-religiosas ou não-espíritas não façam esse tipo de coisa, de empurrar os problemas para debaixo do tapete. Todo mundo faz. Mas como o discurso racional que o espiritismo oferece é muito bom, os espíritas acabam por se esconder atrás dele.

A visão espírita da morte, por exemplo, obviamente nos conforta, nos consola, pode evitar o desespero e o suicídio ou um luto mais complicado. Mas espírita tem luto como qualquer ser humano, quando um ente querido morre. A gente sofre, sente saudades, tem dificuldade de aceitar num primeiro momento. Tudo isso faz parte. Aqueles que acham que, porque são espíritas, vão ficar impassíveis diante da morte de um filho ou de um cônjuge, ou de um pai ou de uma mãe, estão num processo de negação, de escapismo. Quem ama sofre com a perda, sim. O Espiritismo nos dá a convicção da imortalidade e isso é bastante confortador. Mas não nos priva do sofrimento. E mesmo um espírita pode ter um luto complicado, porque o que vai determinar também como enfrentamos uma perda não são as convicções racionais, mas o psiquismo do indivíduo, como ele lida com perdas e frustrações, como ele se constituiu nessa vida, desde a infância. A convicção pode influir, mas não determina tudo.

Outro exemplo: os princípios espíritas, revivendo o cristianismo, nos recomendam a não-violência, o perdão, a paciência, etc. Mas num primeiro momento, diante de uma ingratidão, de um gesto agressivo, de um prejuízo causado por alguém, de um abandono, é normal que sintamos raiva, mágoa, tristeza, inconformação. É preciso primeiro aceitar que sentimos isso, para depois trabalhar com os sentimentos negativos, de forma autêntica e sincera. Como? Tentando nos colocar no lugar do outro, entendendo as motivações e limitações alheias, com a mesma paciência com que temos de olhar as nossas. Ou seja, é um trabalho, um esforço, um processo, uma maturação, e em alguns casos requer-se mesmo uma terapia…

Outro exemplo: temos que aprender a observar com cuidado as próprias motivações por trás de nossas ações – principalmente as que consideramos “boas”. Como pano de fundo de supostas bondades, podem haver interesses, projeções, exibicionismo, desejos de recompensa e reconhecimento… então, é preciso ser honesto consigo próprio, procurar um despojamento sincero, para poder se enxergar com transparência.

Lembro-me de uma espírita que conheci há muitos anos, na minha primeira juventude. Nem sei se ainda está neste plano. Mas fazia um trabalho na favela, que logo de cara me chocou: se as crianças não fossem comportadas, eram ameaçadas de não ganhar o pão com manteiga que estava sendo distribuído! Mas o pior de tudo: essa mesma pessoa, que tinha essa voz mansa e suave, que fazia um trabalho “caritativo”, tinha uma empregada em casa (negra) que era uma verdadeira escrava, sem direito a vida pessoal, direitos trabalhistas, nada. Então, essa suposta caridade que ela praticava na favela era uma medida paliativa para sua consciência. Não era legítimo amor ao próximo.

Eis porque é preciso reconhecer que o Espiritismo (como qualquer outro caminho espiritual) não nos faz santos de imediato. Não precisamos fingir e nem mentir a nós mesmos. Temos o compromisso de sermos honestos, homens e mulheres de bem, empenhados em sermos melhorares e ponto. Que também não adotemos o discurso do comodismo: se somos ainda imperfeitos, então tudo nos seja desculpado. Não. Temos compromisso com o bem, com o progresso. Mas somos humanos. Eis tudo. Aceitemos nossa humanidade enquanto tal. E enquanto seres humanos normais, não adotemos uma voz excessivamente adocicada, nem tenhamos uma postura moralista e nem um discurso demasiado agradável para todo mundo. Saibamos nos posicionar quando preciso, saibamos ser gente como a gente, falando normalmente e fazendo o melhor, sem nenhuma pretensão.

Simples assim!

 

Comentários

  1. Dora e sua lucidez cortante chama-nos a atenção para as máscaras que usamos dependendo das circunstâncias, tornando-nos médicos e monstros ao mesmo tempo.

    Não é à toa que ela traz o termo autoeducação como o verdadeiro objetivo da doutrina espírita.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

PUREZA ENGESSADA

  Por Marcelo Teixeira Era o ano de 2010, a Cia. de teatro da qual Luís Estêvão faz parte iria apresentar, na capital de seu Estado, uma peça teatral que estava sendo muito elogiada. Várias cidades de dois Estados já haviam assistido e aplaudido a comovente história de perdão e redenção à luz dos ensinamentos espíritas. A peça estreara dez anos antes. Desde então, teatros lotados. Gente espírita e não espírita aplaudindo e se emocionando. E com a aprovação de gente conhecida no movimento espírita! Pessoas com anos de estrada que, inclusive, deram depoimento elogiando o trabalho da Cia. teatral.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

SOBRE A INSISTÊNCIA EM QUERER CONTROLAR AS MULHERES

  Gravura da série O Conto da Aia, disponível na Netflix Por Maurício Zanolini Mulheres precisam se casar com homens intelectualmente e financeiramente superiores a elas ou o casamento não vai durar. Para o homem, a esposa substitui a mãe nos cuidados que ele precisa receber (e isso inclui cozinhar, lavar, passar e limpar a casa). Ao homem, cabe o papel de prover para que nada falte no lar. O marido é portanto a cabeça do casal, enquanto a mulher é o corpo. Como corpo, a mulher deve ser virtuosa e doce, bela e recatada, sem nunca ansiar por independência. E para que o lar tenha uma atmosfera agradável, é importante que a mulher sempre cuide de sua aparência e sorria.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

ALLAN KARDEC E A DOUTRINA ESPÍRITA

  Por Doris Gandres Deolindo Amorim, ilustre espírita, profundo estudioso e divulgador da Codificação Espírita, fundador do Instituto de Cultura Espírita do Brasil, em dado momento, em seu livro Allan Kardec (1), pergunta qual o objetivo do estudo de uma biografia do codificador, ao que responde: “Naturalmente um objetivo didático: tirar a lição de que necessitamos aprender com ele, através de sua vida e de sua obra, aplicando essa lição às diversas circunstâncias da vida”.

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

"O CIO DA TERRA" : PENSANDO O TRABALHO COMO EXPIAÇÃO

  Ceifeiros, de Pieter Bruegel (1565) Por Jorge Luiz                Do latim tripalium , surge a palavra trabalho formada da junção dos elementos tri, que significa “três”, e palum , que quer dizer “madeira”.   Conforme afirma o Dicionário Etimológico, Tripalium é o nome de um instrumento de tortura constituído de três estacas de madeira bastante afiadas e que era comum em tempos remotos na região europeia. Desse modo, originalmente, “trabalhar” significa “ser torturado”.