quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

OS ESPÍRITAS E AS EMOÇÕES: O EU MESMO E O EU ESPÍRITA

 


Há uma doença que infesta todas as manifestações religiosas e tradições espirituais do planeta: o farisaísmo. Até Jesus se indignou com isso. As pessoas aderem a uma proposta espiritual e aspiram rapidamente à santidade. E se apresentam como tal.

Entre espíritas, acontece o mesmo. Muitos falando de voz mansa, com olhos virados, sorriso ensaiado… pregando a tal reforma íntima (termo que aliás não me agrada), mas no fundo, permanecem os mesmos sentimentos escuros e primitivos intocados: inveja, ciúme, desejo de poder, sensualidade

O fantástico grupo de humor espírita, Amigos da Luz, fez um episódio (vídeo) sobre isso, que acho dos melhores. Eu, eu mesma e eu Espírita.

Nele aparece claramente essa adesão superficial aos princípios espíritas e o quanto isso pode ser irritante para pessoas mais autênticas.

Há alguns com essa tendência, que poderíamos chamar de herdeiros dos fariseus do tempo de Jesus, a quem o Mestre qualificava de “cegos condutores de cegos” – indivíduos que assumem cargos institucionais ou lideram movimentos religiosos e que são sequiosos de poder. Personalidades narcísicas que querem aplauso e adoração a qualquer preço. Temos dessas figuras em nosso movimento. Então, pode até haver uma intencionalidade de assumir essa máscara, para melhor dominar os incautos.

Mas, em muitos, não há intencionalidade, nem consciência do que estão fazendo: simplesmente sofrem do que poderíamos qualificar de “ilusão de bondade”- esse é o exemplo ilustrado pela Renata do vídeo dos Amigos da Luz.

Pessoas que acham que por adotarem o espiritismo como filosofia de vida, já resolveram todos os problemas internos, já não são mais humanas, demasiadamente humanas.

Pensam que espírita não sente raiva, não se magoa, não faz luto, não pode se posicionar com ênfase e energia. Tem sempre que se apresentar blasé, sorriso forçado, cara de paisagem!

O que se dá é um processo de repressão (psicaliticamente chamaríamos de recalque) das emoções, dos desejos, das questões não resolvidas. E isso, em algum momento, estoura, vem à tona, em forma de doença, depressão, surto, ou o que for. Não é que as pessoas não-religiosas ou não-espíritas não façam esse tipo de coisa, de empurrar os problemas para debaixo do tapete. Todo mundo faz. Mas como o discurso racional que o espiritismo oferece é muito bom, os espíritas acabam por se esconder atrás dele.

A visão espírita da morte, por exemplo, obviamente nos conforta, nos consola, pode evitar o desespero e o suicídio ou um luto mais complicado. Mas espírita tem luto como qualquer ser humano, quando um ente querido morre. A gente sofre, sente saudades, tem dificuldade de aceitar num primeiro momento. Tudo isso faz parte. Aqueles que acham que, porque são espíritas, vão ficar impassíveis diante da morte de um filho ou de um cônjuge, ou de um pai ou de uma mãe, estão num processo de negação, de escapismo. Quem ama sofre com a perda, sim. O Espiritismo nos dá a convicção da imortalidade e isso é bastante confortador. Mas não nos priva do sofrimento. E mesmo um espírita pode ter um luto complicado, porque o que vai determinar também como enfrentamos uma perda não são as convicções racionais, mas o psiquismo do indivíduo, como ele lida com perdas e frustrações, como ele se constituiu nessa vida, desde a infância. A convicção pode influir, mas não determina tudo.

Outro exemplo: os princípios espíritas, revivendo o cristianismo, nos recomendam a não-violência, o perdão, a paciência, etc. Mas num primeiro momento, diante de uma ingratidão, de um gesto agressivo, de um prejuízo causado por alguém, de um abandono, é normal que sintamos raiva, mágoa, tristeza, inconformação. É preciso primeiro aceitar que sentimos isso, para depois trabalhar com os sentimentos negativos, de forma autêntica e sincera. Como? Tentando nos colocar no lugar do outro, entendendo as motivações e limitações alheias, com a mesma paciência com que temos de olhar as nossas. Ou seja, é um trabalho, um esforço, um processo, uma maturação, e em alguns casos requer-se mesmo uma terapia…

Outro exemplo: temos que aprender a observar com cuidado as próprias motivações por trás de nossas ações – principalmente as que consideramos “boas”. Como pano de fundo de supostas bondades, podem haver interesses, projeções, exibicionismo, desejos de recompensa e reconhecimento… então, é preciso ser honesto consigo próprio, procurar um despojamento sincero, para poder se enxergar com transparência.

Lembro-me de uma espírita que conheci há muitos anos, na minha primeira juventude. Nem sei se ainda está neste plano. Mas fazia um trabalho na favela, que logo de cara me chocou: se as crianças não fossem comportadas, eram ameaçadas de não ganhar o pão com manteiga que estava sendo distribuído! Mas o pior de tudo: essa mesma pessoa, que tinha essa voz mansa e suave, que fazia um trabalho “caritativo”, tinha uma empregada em casa (negra) que era uma verdadeira escrava, sem direito a vida pessoal, direitos trabalhistas, nada. Então, essa suposta caridade que ela praticava na favela era uma medida paliativa para sua consciência. Não era legítimo amor ao próximo.

Eis porque é preciso reconhecer que o Espiritismo (como qualquer outro caminho espiritual) não nos faz santos de imediato. Não precisamos fingir e nem mentir a nós mesmos. Temos o compromisso de sermos honestos, homens e mulheres de bem, empenhados em sermos melhorares e ponto. Que também não adotemos o discurso do comodismo: se somos ainda imperfeitos, então tudo nos seja desculpado. Não. Temos compromisso com o bem, com o progresso. Mas somos humanos. Eis tudo. Aceitemos nossa humanidade enquanto tal. E enquanto seres humanos normais, não adotemos uma voz excessivamente adocicada, nem tenhamos uma postura moralista e nem um discurso demasiado agradável para todo mundo. Saibamos nos posicionar quando preciso, saibamos ser gente como a gente, falando normalmente e fazendo o melhor, sem nenhuma pretensão.

Simples assim!

 

Um comentário:

  1. Dora e sua lucidez cortante chama-nos a atenção para as máscaras que usamos dependendo das circunstâncias, tornando-nos médicos e monstros ao mesmo tempo.

    Não é à toa que ela traz o termo autoeducação como o verdadeiro objetivo da doutrina espírita.

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