Pular para o conteúdo principal

AS DEPRESSÕES DO SÉCULO E O ANÚNCIO DO FINAL DO MUNDO¹

 


Por Dora Incontri

Todos os dias, ouço pessoas dizerem que estão cansadas, exaustas, sentindo tristeza, deprimidas (com diagnóstico ou não de depressão). Além do trabalho extenuante a que estamos submetidos, para sobreviver, neste modo desumano do capital, ainda muitos se esforçam para fazer algo para mudar o mundo; para garantirem um espaço-tempo de convivência com seus afetos; para usufruir, de vez em quando, alguma produção artística que traga algum prazer para o corpo e para a alma. Todo esse esforço é muitas vezes malsucedido, ou pelo menos com resultados escassos, fragmentados, porque os boletos aumentam, os afetos se diluem na descartabilidade das relações líquidas (como disse Bauman), o tempo não dá para nada e o dinheiro menos ainda… e o cansaço profundo aumenta.

E o pior… no meio de todo esse massacre cotidiano, a que poucos privilegiados escapam, ainda somos bombardeados a cada minuto com péssimas notícias e piores prognósticos. É um genocídio desfilando aos nossos olhos em cenas reais, ao vivo e a cores; são catástrofes climáticas gerando miséria e destruição; são os abusadores das redes, semeando fake news; são as ameaças constantes (e muitas já concretizadas) de privatização de escolas, água, luz e até praias… Corre um meme por aí que diz: no dia em que tudo for privatizado, seremos privados de tudo!

Enquanto isso, a extrema direita avança no mundo, quem sabe planejando um governo mundial nazifascista!

Como viver ou sobreviver com um mínimo de saúde psíquica no meio de tudo isso? Como educadora, como psicanalista, como jornalista, como escritora, fico procurando palavras, estratégias, sentimentos, com que possa levantar o ânimo das pessoas (e o meu próprio), porque não está nada fácil. E ao cair na depressão ou na ansiedade ou ainda na  síndrome de pânico, com diagnóstico fechado e assinado por um psiquiatra, mergulha-se então no universo dos remédios de tarja preta, que apagam ainda mais o brilho dos olhos e, de acréscimo, alimentam o lucro (já imoral) da indústria farmacêutica. Não digo que não haja casos em que essa medida seja necessária, mas deveríamos arrancar as raízes do mal e não combater apenas os sintomas.

Não há receitas, porém. E as coisas vão piorar sim. A crise climática e os avanços dos fundamentalismos são dados objetivos que nos assombram.

Mas… não podemos entregar os pontos. É preciso buscar forças no fundo do fundo e nos unirmos de mãos dadas (porque o amor é ainda a maior cura). Lembrei-me de uma das óperas que adoro La Traviata (está certo, bem romântica, mas está valendo qualquer recurso que nos alivie de maneira saudável): “A quell’amor ch’è palpito Dell’universo intero” (Ah, aquele amor, que é o pulsar do universo inteiro).

Estar com pessoas amadas, usufruir, ou ainda melhor, produzir arte, conectar-se com a espiritualidade, são caminhos que acalmam, que integram nosso psiquismo e nos abastecem para a luta diária.

Muita gente desiste de se informar, de saber o que está acontecendo, para não sentir o reflexo de tantas dores humanas que nos chegam a cada minuto. É saudável fazemos desintoxicações periódicas, para ganhamos forças, mas a alienação permanente é contraproducente, porque em algum momento a realidade nos atinge em cheio e não estaremos preparados para enfrentá-la de peito aberto e com força de resistência.

E acima de tudo, é preciso que permaneçamos no palco da luta, que não abandonemos o projeto coletivo, unidos com aqueles que assim também pensam e agem, de transformar esse mundo, de acabar com esse sistema predatório, de salvar a natureza, de distribuir pão e fraternidade entre os povos. Ativismo sim, seja através da semeadura de ideias que movem, de ações militantes que mudam realidades, mantendo sempre a esperança de dias melhores, que virão sim.

Os fundamentalismos também costumam oferecer panaceias perigosas nessas horas: anúncios apocalípticos, com redenções mágicas; perseguições a bodes expiatórios; recrudescimento de explicações estapafúrdias dos fatos que nos angustiam. Como aquela lourinha aguada falando que o motivo da destruição do Rio Grande do Sul pelas enchentes foi o grande número de terreiros de Candomblé naquele estado!

Procuremos nos ancorar na ciência, na racionalidade, na fé equilibrada que dialoga com outras formas de fé e que jamais abandona a ciência.

É o que é possível agora. Persistamos, que logo à frente, pode haver alguma luz no final do túnel. A resistência, o trabalho devotado de milhões de pessoas no mundo que fazem o que todos devemos fazer para mudar a exploração de trabalho, a nossa atuação junto à mãe natureza e as relações entre os povos – tudo isso é um alento. O povo está se levantando no planeta todo contra o genocídio em Gaza. O povo terá que se levantar cada vez mais. Porque esse mundo é nosso e não vamos entregá-lo de mão beijada para meia dúzia de bilionários narcisistas e fascistas!

 

 

¹ publicado originalmente no Jornal GGN, em 05.06.2024

 

Comentários

  1. Leonardo Ferreira Pinto6 de junho de 2024 às 20:29

    Brilhante texto. Caiu em mim como uma luva. Me vi nele e dele recebi ânimo

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

DIA DE FINADOS À LUZ DO ESPIRITISMO

  Por Doris Gandres Em português, de acordo com a definição em dicionário, finados significa que findou, acabou, faleceu. Entretanto, nós espíritas temos um outro entendimento a respeito dessa situação, cultuada há tanto tempo por diversos segmentos sociais e religiosos. Na Revista Espírita de dezembro de 1868 (1) , sob o título Sessão Anual Comemorativa dos Mortos, na Sociedade Espírita de Paris fundada por Kardec, o mestre espírita nos fala que “estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para dar aos nossos irmãos que deixaram a terra, um testemunho particular de simpatia; para continuar as relações de afeição e fraternidade que existiam entre eles e nós em vida, e para chamar sobre eles as bondades do Todo Poderoso.”

O MEDO SOB A ÓTICA ESPÍRITA

  Imagens da internet Por Marcelo Henrique Por que o Espiritismo destrói o medo em nós? Quem de nós já não sentiu ou sente medo (ou medos)? Medo do escuro; dos mortos; de aranhas ou cobras; de lugares fechados… De perder; de lutar; de chorar; de perder quem se ama… De empobrecer; de não ser amado… De dentista; de sentir dor… Da violência; de ser vítima de crimes… Do vestibular; das provas escolares; de novas oportunidades de trabalho ou emprego…

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

ANÁLISE DA FIGUEIRA ESTÉRIL E O ESTUDO DA RELIGIÃO

                 Por Jorge Luiz            O Estudo da Religião e a Contribuição de Rudolf Otto O interesse pela história das religiões   remonta a um passado muito distante e a ciência das religiões, como disciplina autônoma, só teve início no século XIX. Dentre os trabalhos mais robustos sobre a temática, notabiliza-se o de Émile Durkheim, As Formas Elementares da Via Religiosa.             Outro trabalhos que causou repercussão mundial foi o de Rudolf Otto, eminente teólogo luterano alemão, filósofo e erudito em religiões comparadas. Otto optou por ser original e abdicou de estudar as ideias sobre Deus e religião e aplicou suas análises das modalidades da experiência religiosa. Ao fazer isso, Otto conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência e negligenciou o lado racional e especulativo da religião, sempre...

O DISFARCE NO SAGRADO: QUANDO A PRUDÊNCIA VIRA CONTRADIÇÃO ESPIRITUAL

    Por Wilson Garcia O ser humano passa boa parte da vida ocultando partes de si, retraindo suas crenças, controlando gestos e palavras para garantir certa harmonia nos ambientes em que transita. É um disfarce silencioso, muitas vezes inconsciente, movido pela necessidade de aceitação e pertencimento. Desde cedo, aprende-se que mostrar o que se pensa pode gerar conflito, e que a conveniência protege. Assim, as convicções se tornam subterrâneas — não desaparecem, mas se acomodam em zonas de sombra.   A psicologia existencial reconhece nesse movimento um traço universal da condição humana. Jean-Paul Sartre chamou de má-fé essa tentativa de viver sem confrontar a própria verdade, de representar papéis sociais para evitar o desconforto da liberdade (SARTRE, 2007). O indivíduo sabe que mente para si mesmo, mas finge não saber; e, nessa duplicidade, constrói uma persona funcional, embora distante da autenticidade. Carl Gustav Jung, por outro lado, observou que essa “másc...