Pular para o conteúdo principal

TOLERÂNCIA RELIGIOSA TEM LIMITE?


"Não pronunciarás o nome do senhor, teu Deus, em vão"
(Exôdo, 20:7)
          



Em 1980, uma herança destinada aos Testemunhas de Jeová foi negada pela administração departamental do Governo Francês. O grupo recorre por duas vezes, mas não consegue êxito. A decisão foi fundamentada em razão dos fins ou natureza de certas entre elas, o caráter de uma association cultuelle (associação com fins religiosos). Observa-se uma decisão fundamentada em tolerância religiosa.
Em 1985, o Brasil assistiu uma cena de intolerância religiosa praticada por um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, quando no feriado dedicado a Nossa Senhora Aparecida – 12 de outubro. No ato, o religioso destilava críticas protestantes à “idolatria católica”, na medida que usava os pés e as mãos contra a imagem, cujo episódio ficou conhecido como o “chute da santa.” Tantos outros se sucedem, como até vídeos que “viralizaram” nas redes sociais onde “líderes religiosos” ensinam, até em tom de zombaria, como tirar dinheiro dos fiéis.

As questões que envolvem a liberdade religiosa, amparada pelo Artigo 5º, VI, da Constituição Federal Brasileira, oferece nuanças diversas principalmente pela relação modernidade e religião. Na atualidade, debates acerca da “liberdade religiosa” ocorrem até mesmo em países que pareciam ter pacificado o problema, como são os casos de Brasil e França.
Fatos dessa natureza são suficientes para levar muitos espíritas a agirem com excesso de zelo nas abordagens acerca dessa temática, quer seja fora ou dentro da casa espírita, o que é até certo ponto, perfeitamente compreensível.
Sobre o assunto, há um posicionamento solene da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas de Paris, inserto na Revista Espírita, março de 1863, presente uma mensagem do Espírito de Jesus, filho de Deus, evocado com propósitos únicos apresentando perguntas mais delicadas sobre os dogmas da Igreja Católica. A mensagem foi comunicada através de uma carta enviada ao Sr. Allan Kardec.
Na decisão está assentada a seguinte orientação:


“(...)o fim essencial do Espiritismo é a destruição das ideias materialistas e o melhoramento moral do homem; que ele não se ocupa, absolutamente, de discutir os dogmas particulares de cada culto, deixando sua apreciação à consciência de cada um; (...) O dever dos verdadeiros espíritas, dos que compreendem o fim providencial da doutrina, é, antes de tudo, dedicar-se a combater a incredulidade e o egoísmo, que são as verdadeiras chagas da Humanidade, e a fazer prevalecer, tanto pelo exemplo quanto pela teoria, o sentimento de caridade, que deve ser a base de toda a religião racional, e servir de guia das reformas sociais.”

Inquestionável a resposta da Sociedade à provocação recebida, o que serve para nortear a postura dos espíritas diante dos temas abordados.
Em O Livro dos Espíritos, questão nº 842, os Espíritos Reveladores respondem que a melhor doutrina é aquela que estimula a prática da lei de amor e caridade na sua maior pureza e aplicação mais ampla, para depois concluírem:

“(...) pois toda a doutrina que tiver por consequência semear a desunião e estabelecer divisões entre os filhos de Deus só pode ser falsa e perniciosa.”

A questão acima é por demais elucidativa, pois estabelece a diferença essencial entre religião e seita. É preciso que haja esse entendimento para que se possa interpretar melhor o status religioso no mundo.
Constatações, seguidas de reflexões fazem-se necessárias para esse entendimento:

·       Relatório do estudo anual (2015), realizado pela Pew Research Center, as restrições governamentais à religião aumentaram na maioria dos países;
·       Quando a restrição vem do estado (quando o governo restringe as atividades religiosas ou quando favorece uma ou mais religiões), o crescimento econômico é mais acelerado;
·       Estudo revela extinção das religiões na Europa, berço do Cristianismo;
·       Prolifera no mundo o espírito de seita;
·       Fanatismo religioso;
·       A Revista Forbes listou cinco pastores brasileiros dentre as maiores fortunas do Brasil;
·       Os fiéis passam a ser consumidores em potencial;
·       Nas economias mais desenvolvidas, o número de descrentes é crescente. Na Suécia, por exemplo, o índice chega a 64% da população, seguida por Dinamarca (48%), França (44%) e Alemanha (42%).
·       Individualização da crença.

Tudo isso faz lembrar a célebre frase de Jean-Jacques Rousseau:

“Todos os crimes do clero, como alhures, não provam que a religião seja inútil, mas que muito pouca gente tem religião.”

          As religiões estão morrendo como morreram tantas outras através das civilizações. Exemplos: Vedismo, Caneismo, Atenismo, Mitraísmo, Maniqueísmo. As seitas proliferam e também desaparecerão, pois ambas são criações dos homens.
          João Henrique Pestalozzi, grande mestre de Allan Kardec, citado pela professora Dora Incontri, em sua obra Ética e Educação, afirma:

“(...) se o homem vê o erro da superstição e a fraude da religião do Estado, e vê que isso está de fato impedindo a verdadeira religião e o enobrecimento da sua geração, então não só lhe é permitido, mas é um dever, mostrar a corrupção de tal religião, mas evidentemente de uma forma que não fira a essência da religião, mas do que o seu desvio está ferindo.”  (grifos nossos)

          A maioria dos jovens europeus não se interessa por religião. O número mais elevado de jovens afastados das religiões está em países como República Checa (91%), Estônia (80%) e Suécia (75%), segundo pesquisa realizada pelo Centro Bento XVI para a religião e sociedade. No Brasil o número de pessoas com menos de 20 anos que dizem não seguir nenhuma religião está crescendo três vezes mais rapidamente do que entre as pessoas com mais de 50 anos, sendo que 9% dos jovens brasileiros dizem não pertencer a nenhuma religião.

          Ouça-se o Espírito São Luis, no capítulo X, item 21, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, quando indagado por Kardec se há casos em que seja útil descobrir o mal alheio:

“Esta questão é muito delicada, e precisamos recorrer à caridade bem compreendida. Se as imperfeições de uma pessoa só prejudicam a ela mesma, não há jamais utilidade em divulgá-las. Mas se elas podem prejudicar a outros, é necessário preferir o interesse do maior número ao de um só. Conforme as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode ser um dever, pois é melhor que um homem caia, do que muitos serem enganados e se tornarem suas vítimas. Em semelhante caso, é necessário balancear as vantagens e os inconvenientes.”

         


E Jesus, Mateus 7:15-16:
“Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores. Por seus frutos os conhecereis. Porventura, colhem-se uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos?”

          A tolerância como virtude tem limite, não é ilimitada como o amor, seja em qualquer situação. André Comte-Sponville, filósofo materialista francês, atesta que uma tolerância universal seria condenável: porque esqueceria as vítimas, porque as abandonaria à sua sorte, porque deixaria perpetuar-se seu martírio. Uma tolerância infinita, diz ele, seria o fim da tolerância e a perpetuação da intolerância, considerando que quando apontamos a intolerância, também estamos sendo intolerante.
          Democracia não é fraqueza. Tolerância não é passividade.
          O limite da tolerância acaba quando se depara com o sofrimento e a dor do próximo. Pois se toleramos a injustiça e o horror que não se é vítima, é indiferença, egoísmo, pusilanimidade, hipocrisia, ou pior.
A religiosidade é Estatuto divino e faz parte da lei natural – Lei de Adoração –, por isso se encontra em todos os povos, embora se expresse em diferentes formas. Isso faz o homem gravitar em torno de Deus e para Deus.
          Ora, por ter essa chancela divina a religiosidade, necessariamente, deve e tem que ser defendida, como se defende o aborto, a eutanásia, a pena de morte. Não há nenhum óbice que o expositor espírita ou outro pregador munido de princípios éticos e morais cristãos apontem comportamentos que prejudiquem o desenvolvimento do sentimento de religiosidade, sem que isso se caracterize como intolerância religiosa. Ressalte-se, que tudo isso deve ocorrer sem nominar pessoas ou instituições, pois aí se caracterizará um julgamento, consequentemente, um gesto de intolerância religiosa.
          A religiosidade faz do ser humano um ser teocêntrico, criado por Deus e para Ele converge, pelas experiências do amor A manifestação do sagrado no homem funda ontologicamente o mundo e dele a Humanidade convergirá para as excelências da Vida. Corrompê-la, fraudá-la, malogra o progresso moral das civilizações.

COMTE-SPONVILLE. André. Pequeno tratado das grandes virtudes. Martins Fortes: São Paulo: 2000;
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Martins Fontes. São Paulo. 2001;
GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião. São Paulo: Attar Editorial, 2002.
INCONTRI. Dora. Pestalozzi – educação e ética. São Paulo: Scipione, 1985.
KARDEC. Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. São Paulo, 1996.
_____________ O livro dos Espíritos. São Paulo: LAKE, 2002.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

A CULPA É DA JUVENTUDE?

    Por Ana Cláudia Laurindo Para os jovens deste tempo as expectativas de sucesso individual são consideradas remotas, mas não são para todos os jovens. A camada privilegiada segue assessorada por benefícios familiares, de nome, de casta, de herança política mantenedora de antigos ricos e geradora de novos ricos, no Brasil.

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

O MOVIMENTO ESPÍRITA MUNDIAL É HOJE MAIS AMPLO E COMPLEXO, MAS NÃO É UM MUNDO CAÓTICO DE UMA DOUTRINA DESPEDAÇADA*

    Por Wilson Garcia Vivemos, sem dúvida, a fase do aperfeiçoamento do Espiritismo. Após sua aurora no século XIX e do esforço de sistematização realizado por Allan Kardec, coube às gerações seguintes não apenas preservar a herança recebida, mas também ampliá-la, revendo equívocos e incorporando novos horizontes de reflexão. Nosso tempo é marcado pela aceleração do conhecimento humano e pela expansão dos meios de comunicação. Nesse cenário, o Espiritismo encontra uma dupla tarefa: de um lado, retornar às fontes genuínas do pensamento kardequiano, revendo interpretações imprecisas e sedimentações religiosas que se afastaram de seu caráter filosófico-científico; de outro, abrir-se à interlocução com as descobertas contemporâneas da ciência e com os debates atuais da filosofia e da espiritualidade, como o fez com as fontes que geraram as obras clássicas do espiritismo, no pós-Kardec.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

ALLAN KARDEC E A DOUTRINA ESPÍRITA

  Por Doris Gandres Deolindo Amorim, ilustre espírita, profundo estudioso e divulgador da Codificação Espírita, fundador do Instituto de Cultura Espírita do Brasil, em dado momento, em seu livro Allan Kardec (1), pergunta qual o objetivo do estudo de uma biografia do codificador, ao que responde: “Naturalmente um objetivo didático: tirar a lição de que necessitamos aprender com ele, através de sua vida e de sua obra, aplicando essa lição às diversas circunstâncias da vida”.

JESUS E A QUESTÃO SOCIAL

              Por Jorge Luiz                       A Pobreza como Questão Social Para Hanna Arendt, filósofa alemã, uma das mais influentes do século XXI, aquilo que se convencionou chamar no século XVII de questão social, é um eufemismo para aquilo que seria mais fácil e compreensível se denominar de pobreza. A pobreza, para ela, é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação (Arendt, 1963).              A pobreza é uma das principais contradições do capitalismo e tem a sua origem na exploração do trabalho e na acumulação do capital.

DEMOCRACIA SEM ORIENTAÇÃO CRISTÃ?

  Por Orson P. Carrara Afirma o nobre Emmanuel em seu livro Sentinelas da luz (psicografia de Chico Xavier e edição conjunta CEU/ FEB), no capítulo 8 – Nas convulsões do século XX, que democracia sem orientação cristã não pode conduzir-nos à concórdia desejada. Grifos são meus, face à atualidade da afirmação. Há que se ressaltar que o livro tem Prefácio de 1990, poucas décadas após a Segunda Guerra e, como pode identificar o leitor, refere-se ao século passado, mas a atualidade do texto impressiona, face a uma realidade que se repete. O livro reúne uma seleção de mensagens, a maioria de Emmanuel.