Pular para o conteúdo principal

ESPIRITISMO BRASILEIRO - DESVIOS À VISTA





 Por Dora Incontri (*)




Seja por conta de nossas heranças culturais ou das naturais imperfeições humanas, o movimento espírita se encontra numa encruzilhada e, se não corrigirmos certos desvios, corremos o risco de trairmos a obra de Kardec, da mesma forma que traímos, no passado, a mensagem de Jesus.

Os perigos que apontamos aqui já estão em processo de cristalização. Merecem ser analisados cuidadosamente (apesar de aqui fazermos apenas breves apontamentos), para que se tomem as devidas medidas de volta ao rumo proposto por Kardec:


A institucionalização está ameaçando a mediunidade, está acabando com a fraternidade e está avivando a sede por cargos e poderes. Expliquemos cada um desses aspectos. Kardec, num discurso de abertura do ano social de 1860, da Sociedade de Estudos Espíritas de Paris, parabenizava os membros da sociedade por instituírem reuniões mediúnicas em suas casas. Pensava ele que as reuniões íntimas, pequenas, com maior homogeneidade de pensamento, eram mais propícias às comunicações familiares, de pessoas queridas, conhecidas. Aliás, foi para instruir os adeptos em como proceder em relação à mediunidade que ele escreveu O livro dos médiuns. A grande revolução proposta por ele é que todos tivessem acesso ao conhecimento da mediunidade, que soubessem como controlá-la e, com parâmetros éticos, empregá-la, justamente para dar autonomia ao indivíduo de se desenvolver como ser interexistencial... Até então, a mediunidade fora apenas para iniciados, agora seria algo para o povo. Ora, quando se criam longos cursos para alguém ter acesso à mediunidade; quando se estabelece como tabu só praticar a mediunidade no centro espírita, porque se desconfia do outro, que deve ser sempre tratado de maneira paternalista; quando não se fazem mais reuniões familiares, mas apenas institucionais; quando a mediunidade passa a ser controlada por quem exerce cargos e não pela própria pessoa, que deve ter a autonomia e a capacidade de julgamento desenvolvida justamente pelo espiritismo... então estamos caminhando a passos largos para a extinção da mediunidade. A Igreja católica procedeu da mesma forma. Até hoje, ela aceita apenas a mediunidade dos santos que ela reconhece e reprimiu entre o povo a comunicação natural e espontânea com o mundo espiritual. Não quer dizer isso que não devamos estudar, racionalizar, controlar a mediunidade - esta é a função da doutrina espírita. Mas isso deve ser feito com cuidado e delicadeza, para não suprimi-la e não se tornar a mediunidade de apenas uns poucos, que de novo dominarão...

A questão da dominação nas instituições e das instituições interfere com o projeto espírita cristão de fraternidade igualitária: quando a instituição passa a valer mais que o indivíduo (por exemplo, expulsamos pessoas dos centros, para preservar a instituição); quando os cargos passam a valer mais do que o trabalho; quando as instituições incham e se tornam burocráticas, impessoais... então estamos caminhando para a igrejificação do espiritismo.

No caso da mediunidade, temos, por um lado, o afastamento da pessoa comum da prática mediúnica e, por outro, a idolatria dos médiuns que se destacam (alguns atualmente com conteúdo bastante ralo e com condutas morais duvidosas, que o grande público desconhece). Kardec não punha os médiuns em evidência, porque ser médium é ser apenas instrumento dos espíritos, numa forma de comunicação tão natural e corriqueira que não precisa de seres especiais. Ao contrário, no Brasil, construímos lideranças a partir da mediunidade - o que é um contrassenso, já que um líder deve ter o seu mérito próprio e o mérito do médium é na verdade dos espíritos, quando houver mérito. O indivíduo deve ser reconhecido como liderança espírita por suas capacidades próprias e sua influência é apenas moral. Um líder assim pode até ser médium - porque todos podemos ser médiuns - mas não poderia alguém se tornar um líder, por ser médium. O que fazemos com esse procedimento de idolatria mediúnica? Estamos de novo considerando a mediunidade um privilégio, uma garantia de superioridade moral, quase iniciática... E Kardec explicou muito bem que a mediunidade não está necessariamente vinculada à superioridade moral. Aliando-se a isso o problema citado acima - do progressivo afastamento do povo da prática mediúnica - temos novamente instituído um sistema em que alguns poucos têm contato com o mundo espiritual e a maioria os idolatra e se julga incapaz de exercer regularmente a mediunidade. Acabamos assim com a democracia mediúnica, que foi uma das maiores contribuições de Kardec. Os médiuns que receberam as comunicações que constam nas obras da codificação não eram grandes líderes, eram pessoas comuns: adolescentes (como as meninas Boudin), donas de casa, artistas, profissionais liberais, pais de família - e essas comunicações eram excelentes. Nenhum médium brasileiro alcançou a clareza, a concisão, a simplicidade de linguagem e a lucidez das mensagens que Kardec incorporou na doutrina espírita.

A idolatria mediúnica acaba evidentemente perturbando os próprios médiuns, já que a vaidade é uma das fraquezas humanas mais comuns. No desejo de contentar os fãs, podem então surgir as mistificações, os espetáculos públicos, a santidade de fachada. Um exemplo de médium no Brasil que se furtou conscientemente a qualquer tipo de idolatria, recusando-se a se colocar em evidência e realizando um trabalho de extrema seriedade e equilíbrio foi Yvonne A. Pereira. Justamente por causa de sua reserva, é pouco conhecida e nada cultuada. Para manter-se nesta posição, o médium tem de usar de uma energia extraordinária, num meio cultural propenso à tietagem, ao beijamão, à ausência de crititicidade.

Às vezes, ligada a essa evidência de médiuns que se projetam no meio espírita, está outra questão que parece uma ameaça ao espiritismo, como doutrina séria e racional. Trata-se da exploração comercial que já se faz em torno do tema. O mundo pós-moderno se caracteriza pelo desejo de receitas rápidas e superficiais em todos os campos. As pessoas querem ler livros, assistir programas que deem dicas, com as quais, sem muita reflexão e esforço pessoal, possam se sentir confortadas, evitar a depressão, educar os filhos, desenvolver a sua espiritualidade. Não há tempo, não há vontade e não há interesse em aprofundamentos, sacrifícios morais, exercício de uma...

(*) Jornalista, educadora e escritora. Suas áreas de atuação são Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP. É sócia-diretora da Editora Comenius e coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.



Comentários

  1. Excelente texto eu só não entendi o final....

    ResponderExcluir
  2. Francisco Castro de Sousa5 de abril de 2015 às 10:04

    É meu caro Fransé, parece que a autora desejava isso mesmo, não dizer aquilo que o leitor mesmo deva completar! Temos muito que refletir sobre a Doutrina e sobre Kardec. A Profª Dora Incontri é uma grande estudiosa da Doutrina Espírita, nós também podemos fazer a nossa parte, daí a importância do Blog Canteiro de Ideias, uma ferramenta que pode ser usada para os nossos questionamentos em busca do esclarecimento através do estudo que fizermos e que outros possam fazer, usando o raciocínio, a reflexão e o estudo da Doutrina para melhor entendermos: por que, para que e como podemos aproveitar melhor essa oportunidade encarnatória em um planeta ainda tão afastado dos mundos superiores!

    ResponderExcluir
  3. Dora Incontri.
    Que propriedade ao fazer a crítica interna, lavar a roupa suja.
    Vai no ponto exato, mexe na ferida e não dói, por que deseja acabar com o carrapato e não com o boi.
    É evidente o desejo de fomentar a melhora, sem subterfúgios, mas com evidente respeito com quem não está acertando.
    Quando eu crescer, quero ser assim.

    ResponderExcluir
  4. Caro Castro,
    Proposta compreendida!
    Abraços!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

ASTRÔNOMO DIZ QUE JESUS PODE TER NASCIDO EM JUNHO (*)

  Por Jorge Hessen Astrônomo diz que Jesus pode ter nascido em junho Uma pesquisa realizada por um astrônomo australiano sugere que Jesus Cristo teria nascido no dia 17 de junho e não em 25 de dezembro. De acordo com Dave Reneke, a “estrela de Natal” que, segundo a Bíblia, teria guiado os Três Reis Magos até a Manjedoura, em Belém, não apenas teria aparecido no céu seis meses mais cedo, como também dois anos antes do que se pensava. Estudos anteriores já haviam levantado a hipótese de que o nascimento teria ocorrido entre os anos 3 a.C e 1 d.C. O astrônomo explica que a conclusão é fruto do mapeamento dos corpos celestes da época em que Jesus nasceu. O rastreamento foi possível a partir de um software que permite rever o posicionamento de estrelas e planetas há milhares de anos.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O NATAL DE CADA UM

  Imagens da internet Sabemos todos que “natal” significa “nascimento”, o que nos proporciona ocasião para inúmeras reflexões... Usualmente, ao falarmos de natal, o primeiro pensamento que nos ocorre é o da festa natalina, a data de comemoração do nascimento de Jesus... Entretanto, tantas são as coisas que nos envolvem, decoração, luzes, presentes, ceia, almoço, roupa nova, aparatos, rituais, cerimônias etc., que a azáfama e o corre-corre dos últimos dias fazem-nos perder o sentido real dessa data, desse momento; fazem com a gente muitas vezes se perca até de nós mesmos, do essencial em nós... Se pararmos um pouquinho para pensar, refletir sobre o tema, talvez consigamos compreender um pouco melhor o significando do nascimento daquele Espírito de tão alto nível naquele momento conturbado aqui na Terra, numa família aparentemente comum, envergando a personalidade de Jesus, filho de Maria e José. Talvez consigamos perceber o elevado significado do sacrifício daqueles missionári...

TUDO MUDOU. E AS INSTITUIÇÕES?

  Por Orson P. Carrara Os de minha geração, nascidos nas décadas de 60 a 80 ou 90 e, claro, mesmo anteriores, lembram-se perfeitamente do formato de organização e funcionamento de uma padaria, de uma farmácia ou de um mercado, entre outros estabelecimentos comerciais. Hoje temos tais formatos completamente diferentes. O que antes era balcão único de atendimento mudou para prateleiras abertas, inclusive com auto atendimento para pagamento. Antes levávamos o pão para casa, hoje vamos à padaria tomar café para apreciar outras delícias. Farmácias normalmente eram reduzidas, hoje se multiplicaram com total mudança nos atendimentos, face às facilidades virtuais. Nem é preciso citar mais nada, todos estamos muito habituados às facilidades dos dias atuais.

DIVERSIDADE SEXUAL E ESPIRITISMO - O QUE KARDEC TEM A VER COM ISSO?

            O meio espírita, por conta do viés religioso predominante, acaba encontrando certa dificuldade na abordagem do assunto sexo. Existem algumas publicações que tentam colocar o assunto em pauta; contudo, percebe-se que muitos autores tentam, ainda que indiretamente, associar a diversidade sexual à promiscuidade, numa tentativa de sacralizar a heterocisnormatividade e marginalizar outras manifestações da sexualidade; outros, quando abrem uma exceção, ressaltam os perigos da pornografia e da promiscuidade, como se fossem características exclusivas de indivíduos LGBTQI+.

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: Uma revista espírita

“O homem é livre na medida em que coloca seus atos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se nas mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista.” ( Arthur Conan Doyle) Allan Kardec ao elaborar os princípios da unidade tinha em mente que os espíritas fossem capazes de tecer uma teia social espírita , de base morfológica e que daria suporte doutrinário para as Instituições operarem as transformações necessárias ao homem. A unidade de princípios calcada na filosofia social espírita daria a liga necessária à elasticidade e resistência aos laços que devem unir os espíritas no seio dos ideais do socialismo-cristão. A opção por um “espiritismo religioso” fundado pelo roustainguismo de Bezerra Menezes, através da Federação Espírita Brasileira, e do ranço católico de Luiz de Olympio Telles de Menezes, na Bahia, sufocou no Brasil o vetor socialista-cristão da Doutrina Espírita. Telles, ao ...

A DOR DO FEMINICÍDIO NÃO COMOVE A TODOS. O QUE EXPLICA?

    Por Ana Cláudia Laurindo A vida das mulheres foi tratada como propriedade do homem desde os primevos tempos, formadores da base social patriarcal, sob o alvará das religiões e as justificativas de posses materiais em suas amarras reprodutivas. A negação dos direitos civis era apenas um dos aspectos da opressão que domesticava o feminino para servir ao homem e à família. A coroação da rainha do lar fez parte da encenação formal que aprisionou a mulher de “vergonha” no papel de matriz e destituiu a mulher de “uso” de qualquer condição de dignidade social, fazendo de ambos os papéis algo extremamente útil aos interesses machistas.