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O TEMPO E NÓS!

 


Por Jerri Almeida

O tempo há de poder acolher o espírito, por assim dizer. E o espírito há de ser, por sua vez, afim com o tempo e com a sua essência.  (Heidegger)

 

Narra-se, no vasto universo da mitologia grega, que Urano, o Céu, fez cair sobre a Terra o seu sêmen e, desta união, nasceram as Titânidas e os Titãs. Dentre os Titãs encontrava-se Cronos, o Tempo. Sem piedade, Cronos devorava seus próprios filhos, da mesma forma que o tempo devora as criaturas humanas. Mas Zeus, um de seus filhos, consegue escapar e, por esse fato, conquista a imortalidade. Mais tarde, Zeus, retira seu pai do poder, tornando-se o mais importante deus grego. Mas Zeus, conforme era comum nas narrativas míticas, casa-se com uma mulher não-humana, uma Titânida chamada Mnemósine, a Memória. Mnemósine era irmã de Cronos, portanto, a memória é irmã do tempo.

Essa narrativa nos permite refletir sobre a interessante relação entre a memória e o tempo. Recordamo-nos de um tempo nostálgico quando ouvimos determinada música. Ao revisarmos antigas fotos de família nos lembramos de pessoas queridas que não mais estão conosco. Passamos por determinado bairro, onde vivemos nossa infância e, imediatamente, nossa memória volta no tempo, reconstituindo certas lembranças que nos marcaram. Assim, o painel vivo de nossa memória guarda o manancial de nossas vivências e experiências ao longo do tempo.

Existe um tempo para ser feliz? Para muitas pessoas sim! Certamente não é necessário examinarmos mapas estatísticos sobre o assunto – para percebermos que um número significativo de pessoas vivem condicionando a sua felicidade a uma dimensão temporal: quando se era solteiro, quando era jovem, quando tinha saúde, quando os filhos eram pequenos. Ou então, projeta-se a felicidade para o tempo futuro em forma de expectativas, sonhos, metas, conquistas: quando me casar, quando me formar, quando comprar minha casa própria, quando ver meus filhos criados, quando..., quando..., quando....

   Quantos deixam arquivada a sua felicidade nas esquinas longínquas da memória, onde residem as lembranças de acontecimentos agradáveis, vivido pessoalmente ou em família? Isso é saudável quando se trata da lembrança nossa de cada dia. Entretanto, prender a felicidade no passado, sufocando-a no presente, é indício de que algo não está bem. Uma decisão equivocada, tomada recentemente, poderá remeter a pessoa a fixar-se no passado como mecanismo de fuga da realidade atual. Deslocando o foco da felicidade para um tempo que somente existe em sua memória, a pessoa passa a isolar e distanciar sua condição de viver feliz.

Em tais circunstâncias, a vida atual vai se cercando de amargor, perdendo o seu brilho e sua motivação. A pessoa, enclausurando mentalmente sua felicidade no passado, vai perdendo os referenciais da alegria e da jovialidade, cedendo espaços à melancolia e, muitas vezes, à depressão. O “sentir-se feliz” é um prestimoso aliado da saúde humana por vincular-lhe o otimismo indispensável.

A experiência humana pode ser muito rica no presente, tanto como foi no passado, ela só depende da disposição de cada pessoa. Disposição que começa por se libertar das amarras do passado, visando viver com consistência o presente. Isso não significar esquecer o passado, mas aproveitar-lhe as experiências, ditosas ou não, para fazer florescer no hoje a meta do bem. O passado é irrecuperável, somente servindo como experiência norteadora para os atos do presente. O passado está inscrito na linhas inalienáveis do tempo e, portanto, não pode ser mudado.

Viver de recordações ou se atormentar com as aspirações não é uma atitude saudável, isto é, o foco de nossas atenções e ações deverá, sobretudo, estar direcionado para o enriquecimento do presente. Não se trata de: “viver intensamente os prazeres do mundo”, mas viver de forma natural, sem ansiedades exageradas em relação ao futuro nem de ressentimentos ou mágoas que nos prendem ao passado. Nesse aspecto, os sentimentos de perdão e de confiança, aliados à esperança e à determinação, serão, por excelência, os sentimentos fundadores de um estado mental positivo e saudável.

Há pessoas que vivem das lembranças de suas desgraças e perdas, recusando-se obstinadamente a viver a felicidade no presente. Rancores e ódios se avolumam, projetando suas sombras do passado, no presente de quem os mantêm vivos na memória. A fragrância do amor ensinado e vivido por Jesus nos convida, a cada novo dia, a vivência do perdão e da compreensão enquanto instrumentos de libertação psicológica de fatos e ocorrências desagradáveis do passado, recente ou remoto.

Ensina o espiritismo que o ser humano está num processo de constante crescimento ético-espiritual,  decorrendo o futuro de como vivemos o hoje. Daí o sentido de a temporalidade atual estar no foco do nosso destino mediato e imediato. Entretanto, projetar a felicidade para o futuro, enclausurando-a em suas metas, sonhos e conquistas é viver num constante “vir-a-ser”. Nós necessitamos viver o presente.

O poeta romano do século I, Horácio, costumava dizer que deveríamos “aproveitar o dia” (Carpe diem). Mas no passado, como no presente, a ideia de aproveitar o dia, muitas vezes tem assumido um ar de superficialidade, sendo vinculada à “lei do menor esforço” ou, ao gozo do prazer imediato. Para Kant (1724-1804), as pessoas deveriam se comportar com base em um código moral interno e, nesse código, estaria a base das ações corretas: “Age apenas segundo aquela máxima que possas querer que se torne uma lei universal.” Gostaríamos que a intolerância se tornasse um sentimento geral? Que a exploração do homem sobre o homem se generalizasse? Se não desejamos que algo se torne uma lei universal então não deveremos praticá-lo. Kant diz, com outras palavras, aquilo que é a essência da “ética cristã”, ou seja, “Faça somente aos outros o que desejarias que os outros te fizessem.”  Isso é o mais admirável princípio ético de todos os tempos.

Voltando para a mitologia, agora romana, Jano era cultuado como o “deus dos inícios”. Divindade responsável pelo fim de uma etapa e início de outra. No calendário romano e depois cristão, deu origem ao nome “janeiro”, definido como o primeiro mês do ano. Dezembro, último mês do ano representa matemática e simbolicamente o fim de uma etapa, com suas experiências, acertos e desacertos, méritos e deméritos, felicidades e desditas. Vivemos na órbita do tempo e de suas representações.

O relacionamento humano com o tempo carrega uma forte bagagem de subjetividades ancoradas na memória que, aliás, na mitologia grega, é a irmã de Cronos. O tempo é depositário das lembranças, dos fatos vividos em família, com amigos, dos afetos e desafetos. Boas e más recordações fazem parte da vida. Algemar-se ao passado, principalmente sobre os eventos negativos, é algo que exige ser bem administrado pelo departamento da inteligência e dos sentimentos. Em nada contribui uma fixação melancólica no passado, uma vez que essa fixação, normalmente, retira da pessoa o foco principal de sua vida: o presente.

Ao aproximar-se o período de final de ano, pessoas há que se dizem envolver, sem que saibam explicar, por uma boa dose de tristeza e melancolia. Ficam quietas, buscam o isolamento evitando festas e diversões. A psicologia busca uma possível explicação para esse fenômeno em prováveis conteúdos inconscientes, vividos consciente ou inconscientemente, em algum momento da vida e que, por algum motivo, afloram nessa época:  a perda de uma pessoa, um desencanto amoroso, objetivos alimentados durante aquele ano, mas não atingidos, etc.

Nem todos, portanto, estão convencidos de que devem comemorar, ufanisticamente, a virada do ano.  Alguns preferem o silêncio. Familiares e amigos muitas vezes não compreendem, nem respeitam, tais posturas. Cada pessoa tem sua própria forma de reagir a essas representações do tempo, pois isso mexe com conteúdos profundos de nossa alma.

 Ocorre, na lógica comum, que  comemorar o fim de ano é fazer o que todos fazem: vesti-se de  branco, se possível ir para a beira da praia, tomar champanhe e terminar a noite numa boate ou a um show qualquer, uma verdadeira festa de passagem. Quem adota outro comportamento que fuja dessas convenções é considerado uma espécie de “subversivo”, ou deve “estar doente”.

O relacionamento do homem com o tempo possui uma dimensão cultural, simbólica, idílica ou lúdica. O final do ano, nesse contexto representa uma forte tradição cultural no universo dos rituais de passagem, herdeiros do imaginário ancestral, e dos rituais pagãos. O fato é inquestionável: somos seres fortemente influenciados pela noção de tempo. Parece haver um tempo para tudo, e comportamentos convencionados para cada situação. Negar-se a aceitar essas representações do tempo sobre nós, parece ser tarefa quase revolucionária, anarquista mesmo!

Mas, como tantas outras revoluções, que expressão até certo ponto a rebeldia humana, o rebelar-se contra o tempo, seus significados e efeitos sobre nós não mudará a temporalidade das coisas. Será uma batalha perdida! Melhor, talvez, seja aprendermos a conviver bem com o presente e tudo o que dele possamos extrair para torná-lo pleno de possibilidade e de ações afirmativas na composição de um ser humano mais ético e solidário. 

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