Pular para o conteúdo principal

ECUMENISMO






 

O mestre espírita postulava que “a unidade se fará em religião, como já tende a fazer-se socialmente, politicamente, comercialmente, pela queda das barreiras que separam os povos.”[i] Não deixou, pois, de expressar perspectiva ecumênica, universalista, ou como preferirem. Balizou-a ao dizer qual seria a melhor de todas as religiões e, depois, manteve-se nessa rota, detalhando-a: “(...) a melhor de todas as religiões é aquela (...) que procura melhor combater o egoísmo e lisonjear menos o orgulho e a vaidade dos homens; aquela (...) em nome da qual se comete menos mal, porque uma boa religião não pode servir de pretexto a nenhum mal; ela não lhe deve deixar porta alguma aberta, nem diretamente, nem por interpretação.”[ii] — “(...) a religião que terá de congregar um dia todos os homens sob o mesmo estandarte será a que (...) for a emancipadora da inteligência, com o não admitir senão a fé racional; aquela cujo código de moral seja o mais puro, o mais lógico, o mais de harmonia com as necessidades sociais, o mais apropriado, enfim, a fundar na Terra o reinado do bem, pela prática da caridade e da fraternidade universais”.[iii]

Percebe-se que as balizas dessa perspectiva ecumênica de Kardec não demarcam limites puramente morais; fincam-se em terreno filosófico e mesmo científico, distinguindo enfaticamente a importância da marcha progressiva da humanidade e das necessidades sociais para esse processo unificador. O mestre, não custa lembrá-lo, apresentara o espiritismo como “o mais potente auxiliar da religião”,[iv] na medida em que “a missão do espiritismo é combater a incredulidade pela evidência dos fatos, reconduzir a Deus os que o desconheciam, provar o futuro aos que criam no nada.”[v] O resultado, porém, foi que a Igreja lançou ferozes anátemas sobre aqueles a quem o espiritismo dava fé e, paradoxalmente, mais ainda do que quando muitos desses em nada criam. Segundo Kardec, ao repelir os que acreditavam em Deus e na alma pelo espiritismo, a Igreja os constrangia a buscarem refúgio fora de si mesma. Algo descontente com a situação, o mestre não hesitou em vaticinar com acerto: “Se algum dia [o espiritismo] tornar-se uma religião, é o clero que o terá provocado”.[vi]
Sempre montado numa razoabilidade granítica, Kardec estabeleceu mais tarde: “Uma religião que não estivesse, por nenhum ponto, em contradição com as leis da natureza, nada teria que temer do progresso e seria invulnerável”.[vii] Poderia ser o espiritismo? Kardec nunca o afirmou com todas as letras. Por outro lado, sua perspectiva francamente ecumênica funda-se em balizas fixadas justamente pelo espiritismo a princípio, e que, para o mestre, equivaleriam a um credo, mesmo a uma religião e, ainda assim, conciliável com qualquer culto, na medida em que garantiria: 1) a liberdade de os espíritas permanecerem em seus cultos, caso os tivessem; 2) a unidade entre esses espíritas a despeito de suas diferentes situações; 3) uma futura adesão do gênero humano a esse credo pela força mesma das coisas, culminando na sonhada fusão, num ecumenismo irrestrito alheio a qualquer tipo de ingerência, sendo a revelação espírita o ponto de ligação de todos os cultos.[viii] É o que se depreende de seu último discurso, no qual, após elencar aquelas balizas, concluiu: “(...) eis o Credo, a religião do espiritismo, religião que pode conciliar-se com todos os cultos, isto é, com todas as maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve unir todos os espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando que ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal”.[ix] Que credo seria esse com o poder de unir, num primeiro momento, os diferentes espíritas e, a posteriori, mesmo toda a humanidade? Quais as balizas dessa perspectiva ecumênica de Allan Kardec? Foram assim consolidadas poucos meses antes do seu decesso: “Crer num Deus Todo-Poderoso, soberanamente justo e bom; crer na alma e em sua imortalidade; na preexistência da alma como única justificação do presente; na pluralidade das existências como meio de expiação, de reparação e de adiantamento intelectual e moral; (...) esforçar-se cada dia para ser melhor que na véspera, extirpando toda imperfeição de sua alma; submeter todas as crenças ao controle do livre-exame e da razão, e nada aceitar pela fé cega; respeitar todas as crenças sinceras, por mais irracionais que nos pareçam, e não violentar a consciência de ninguém; ver, enfim, nas descobertas da ciência, a revelação das leis da natureza, que são as leis de Deus”.[x]
Utopia? Quem o saberá ao certo? Mas o fato é que muito diverge do que, mediante falas mansas e bem calculadas, vem sendo proposto por ávidos candidatos a condutores dessa fusão religiosa, os quais, na verdade, ambicionam que seus velhos dogmas permaneçam infensos a qualquer revisão e, a despeito desse engodo, ainda mereçam a adesão da maioria. Espíritas empolgados com o novo bispo de Roma deveriam atentar aos marcos da perspectiva ecumênica kardeciana antes de se renderem aos inegáveis encantos pessoais de Sua Santidade o Papa Francisco. Só haveria motivos de um tão grande entusiasmo se o sucessor de Pedro deixasse de apenas dizer aquilo que, no momento, não só é conveniente, mas vital à sua Igreja imersa no escândalo e, avançando, anunciasse profunda revisão dos dogmas ancestrais, hoje insustentáveis, aproximando-se, quem sabe, do credo por Kardec expresso. Afora isso, nada se afigura tão elogiável, porquanto falas mansas e mesmo atos de benevolência podem servir de disfarce a novíssimas contrarreformas, a invasivas catequeses que tenham neles o necessário passaporte, a inconfessa e sedutora senha para almejada conquista massiva de incautas adesões. Irmãos espíritas! Não nos esqueçamos de que Sua Santidade chefia os herdeiros imperiais de Constantino e do anátema de Niceia, grave distintivo da fé católica. E nós? Viemos sustentar francas heresias, as quais já foram cristianismos em passadas eras, e que Roma tentou apagar com todas as forças do seu fanatismo; ressurgiram, todavia, das cinzas da própria morte, pela reencarnação e pela comunicação mediúnica por vezes dos perseguidos e supliciados, a reivindicarem seu direito à verdadeira herança de Jesus Nazareno, a fim de que seja mais prontamente compartilhada com os que dela necessitam, agora sem os vícios peculiares àqueles antigos entraves corporativos. E eis aí a doutrina dos espíritos, a portentosa obra de Allan Kardec.
Todavia, há esperança para Roma. Tudo pode melhorar. Em face de certas correntes do pensamento teológico, mais plausíveis a seu ver e que pareciam tomar vulto em seu tempo, sobretudo contra a eternidade e a materialidade das penas após a morte, Kardec chegou a dizer que, sem o suspeitar, a Igreja marchava em direção ao espiritismo, sendo essa uma verdade a ser mais tarde constatada.[xi] Mesmo no seu herético estudo sobre a natureza do Cristo,[xii] onde nega, em nome das escrituras, que o Nazareno haja sido Deus, não deixa Kardec de observar que tais discussões, sempre estabelecidas de forma alheia aos fatos, só levaram ao cansaço e, pior, à incredulidade, afastando muita gente da “parte mais essencial do ensino do Cristo, a única que podia garantir a paz para a humanidade.” Ao final desse escrito, Kardec relaciona, perspicaz, uma tendência de retorno “às ideias fundamentais da Igreja primitiva e à parte moral dos ensinamentos do Cristo, por ser a única que pode tornar melhores os homens.” Para ele, se a Igreja tivesse seguido esse caminho, não estaria atingida pelo descrédito nem seccionada. A menção a esse direcionamento conta cerca de século e meio. Concretizou-se na teologia da libertação? Como quer que haja sido, desejamos o melhor à Igreja de Roma e ao seu Papa. Nossos corações estão abertos; mas, de forma nenhuma, fechados os nossos olhos.


Referências:
[i] A Gênese, XVII: 32. Cf. O Céu e o Inferno. Primeira parte. Cap. I, n. 14.
[ii] O Que É o Espiritismo? Cap. I. Terceiro diálogo.
[iii] A Gênese, XVII: 32.
[iv] O Livro dos Espíritos, 148.
[v] Revista Espírita. Jul/1864: Reclamação do abade Barricand. F.E.B., p. 270.
[vi] Revista Espírita. Jul/1864: Reclamação do abade Barricand. F.E.B., p. 270.
[vii] A Gênese, IV: 10.
[viii] A Gênese, I: 45.
[ix] Revista Espírita. Dez/1868. Sessão anual comemorativa do Dia dos Mortos.
[x] Revista Espírita. Dez/1868. Sessão anual comemorativa do Dia dos Mortos.
[xi] Revista Espírita. Jul/1864. A religião e o progresso.
[xii] Obras Póstumas. Segunda parte.

Comentários

  1. Simplesmente excelente. Corações abertos e os OLHOS também. Roberto Caldas

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

A ESTUPIDEZ DA INTELIGÊNCIA: COMO O CAPITALISMO E A IDIOSSUBJETIVAÇÃO SEQUESTRAM A ESSÊNCIA HUMANA

      Por Jorge Luiz                  A Criança e a Objetividade                Um vídeo que me chegou retrata o diálogo de um pai com uma criança de, acredito, no máximo 3 anos de idade. Ele lhe oferece um passeio em um carro moderno e em um modelo antigo, daqueles que marcaram época – tudo indica que é carro de colecionador. O pai, de maneira pedagógica, retrata-os simbolicamente como o amor (o antigo) e o luxo (o novo). A criança, sem titubear, escolhe o antigo – acredita-se que já é de uso da família – enquanto recusa entrar no veículo novo, o que lhe é atendido. Esse processo didático é rico em miríades que contemplam o processo de subjetivação dos sujeitos em uma sociedade marcada pela reprodução da forma da mercadoria.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

A CIÊNCIA DESCREVE O “COMO”; O ESPÍRITO RESPONDE AO “QUEM”

    Por Wilson Garcia       A ciência avança em sua busca por decifrar o cérebro — suas reações químicas, seus impulsos elétricos, seus labirintos de prazer e dor. Mas, quanto mais detalha o mecanismo da vida, mais se aproxima do mistério que não cabe nos instrumentos de medição: a consciência que sente, pensa e ama. Entre sinapses e neurotransmissores, o amor é descrito como fenômeno neurológico. Mas quem ama? Quem sofre, espera e sonha? Há uma presença silenciosa por trás da matéria — o Espírito — que observa e participa do próprio enigma que a ciência tenta traduzir. Assim, enquanto a ciência explica o como da vida, cabe ao Espírito responder o quem — esse sujeito invisível que transforma a química em emoção e o impulso biológico em gesto de eternidade.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

POR QUE SOMOS CEGOS DIANTE DO ÓBVIO?

  Por Maurício Zanolini Em 2008, a crise financeira causada pelo descontrole do mercado imobiliário, especialmente nos Estados Unidos (mas com papéis espalhados pelo mundo todo), não foi prevista pelos analistas do Banco Central Norte Americano (Federal Reserve). Alan Greenspan, o então presidente da instituição, veio a público depois da desastrosa quebra do mercado financeiro, e declarou que ninguém poderia ter previsto aquela crise, que era inimaginável que algo assim aconteceria, uma total surpresa. O que ninguém lembra é que entre 2004 e 2007 o valor dos imóveis nos EUA mais que dobraram e que vários analistas viam nisso uma bolha. Mas se os indícios do problema eram claros, por que todos os avisos foram ignorados?

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.