Pular para o conteúdo principal

CRÔNICAS DO COTIDIANO: "INTOLERÂNCIA RELIGOSA"




“Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”

(Jesus, Mt. 22:34-40)



Por Jorge Luiz (*)

Mãe Dede de Iansã


            Mildreles Dias Ferreira, 90 anos, conhecida por Mãe Dede de Iansã, morreu na madrugada de (1/06) de junho, vítima de um infarto, após atos de intolerância religiosa por grupo de fiéis de uma igreja que se instalou em frente ao terreiro Oyá Denã do qual Mãe Dede é líder e fundadora. Na noite da morte os fiéis da igreja, segundo informações, realizaram uma vigília de “libertação” na calçada do terreiro, horas a fio, aos gritos de “queima essa satanás, liberta Senhor, destrói a feitiçaria” ameaçando a dirigente do centro religioso de cultura africana.
            A nonagenária Mãe Dede de Iansã, diante da pressão psicológica que sofria, foi acometida de infarto do miocárdio vindo a desencarnar.

            Ressalte-se que o africanismo foi e é responsável pelo “colchão” de espiritualidade que se consolidou no Brasil para que nele se desenvolvesse a Doutrina Espírita, tornando-o o País com a maior população de espíritas do Planeta. Não se deve esquecer também, que o espiritualismo afro contribui para que o Brasil seja um grande “Condomínio Emocional”, albergando pacificamente indivíduos de várias nacionalidades, etnias, raças, credos religiosos, isso faz com que esperança seja a emoção dominante do brasileiro, como afirma Dominique Moïsi, uma das maiores autoridades em Relações Internacionais, ao estudar a geopolítica das emoções.
            A intolerância religiosa que Mãe Dede sofreu é a mesma que fomentou durante a Idade Média a Inquisição ou Santa Inquisição, espécie de tribunal religioso criado pela Igreja Católica, que mandou à fogueira milhares de pessoas consideradas heréticas (doutrinas ou práticas contrárias ao que era orientado pela Igreja Católica), ou práticas por ela consideradas bruxarias ou simplesmente por serem praticantes de outras religiões que não o catolicismo. Intolerância essa que levou John Locke (1632-1704), filósofo inglês, a escrever a Carta Acerca da Tolerância. Nela ele afirma:

“A tolerância para os defensores de opiniões opostas acerca de temas religiosos está tão de acordo com o Evangelho e com a razão que parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz tão clara. Não condenarei aqui o orgulho e a ambição de uns, a paixão a impiedade e o zelo descaridoso de outros.”

            Do mesmo sentimento foi tomado Voltaire, a publicar em 1763, O Tratado sobre a Tolerância, no qual ele ataca o fanatismo religioso, mais particularmente o dos jesuítas onde estudara. Para ele, o fanatismo religioso é uma espécie de febre ou cólera da alma que leva os indivíduos a confundirem visões e sonhos com a realidade, terminando por satisfazer sua loucura por meio do crime. É a ignorância entre a ignorância e a crueldade.
Os resquícios dessa intolerância promoveram a queima em praça pública, em Barcelona, de trezentas obras espíritas, em outubro de 1861, que Allan Kardec notabilizou-a como Auto-de-Fé de Barcelona.
Allan Kardec, em extraordinária lucidez, desenvolveu estudo sobre a fé, no capítulo XIX de O Evangelho segundo o Espiritismo. Ao analisar a fé religiosa, ele a apresenta em duas dimensões: a fé cega e a fé raciocinada. A fé cega leva o indivíduo ao excesso e produz o fanatismo, afirma ele.
            A tolerância, como virtude, nasce a partir do reconhecimento da existência do outro, que além de ocupar espaço, tem direitos e deveres como eu, mas é essencialmente diferente de mim. Ela não para por aí. Ela só é ativa quando permite a convivência com o outro porque tem respeito por ele e aceita a riqueza plural da realidade.

            Ao contrário do amor que não tem limites intrínsecos, a tolerância é essencialmente limitada: uma tolerância ilimitada seria o fim da tolerância. Portanto, não é possível ser tolerante, em nome da liberdade de religião, com crimes perpetrados em nome dela, como o que ocorreu com Mãe Dede. É de se exigir, e se espera que isso ocorra, a apuração devida para responsabilizar penal e criminalmente, os responsáveis por tamanha bestialidade.
            Hans Kung, teólogo holandês, afirmou sobre a tolerância:

“Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver, se não houver um etos global, uma ética para o mundo inteiro.”
           
Allan Kardec consciente dessa realidade, e mais precisamente, que as essas diferenças individuais se realizam através da esteira dos tempos, nas vidas sucessivas, insculpiu em sua bandeira a tolerância, juntamente com o trabalho e a solidariedade. Em decorrência disso, ele não disse:
“Fora do Espiritismo não há salvação, mas como o Cristo: Fora da Caridade não Há Salvação, princípio de união, de tolerância, que unirá os homens num sentimento de fraternidade, em lugar de dividi-las em seitas inimigas.”
           
            O que anima a todos é que no mundo, intitulando-se de espiritualidade, para diferenciar claramente de religião, muitas pessoas perseguem o o diálogo pacífico, não só entre pessoas, mas nações, credos e etnias. Essas pessoas propõem a espiritualidade aberta, questionadora, crítica que permita a busca pessoal, a individualização da crença não sujeita ao sectarismo religioso, que respeite a consciência de cada um, como preconiza a Doutrina dos Espíritos, e, sobretudo, Allan Kardec.
Portanto, sejamos como Kardec, como bem afirma seu biógrafo em Obras Póstumas:

“Sejamos, como ele, infatigáveis: sejamos acordemente com os seus anseios, tolerantes e solidários.”

P.S. Em 16.06, garota de 11 anos também foi vítima de ato de intolerância religiosa, ao ser atingida por pedrada na cabeça, após festa de candomblé. Depois de medicada ela afirmou: “Susto não abala a minha fé.” Parabéns garota!


REFERÊNCIAS
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. São Paulo: EME, 1996.
____________. Obras póstumas. Brasília: FEB, 1987.
KUNG, Hans. Religiões do mundo. São Paulo. VERUS. 2004;
MOÏSI, Dominique. A Geopolítica das emoções. Rio de Janeiro. 2009. CAMPUS.
http://revistalivre.com.br/colaboradores/marcelo-ferrao/item/1021-quando-a-intolerancia-religiosa-mata-dolosamente.html (consulta em 13/06/2015)

(*) blogueiro e expositor espírita.

Comentários

  1. Excelente!
    Sobre este artigo, marcaria GOSTEI mais de uma vez, se fosse preciso.

    ResponderExcluir
  2. As religiões são caminhos diferentes convergindo para o mesmo ponto. Que importância faz se seguimos por caminhos diferentes, desde que alcancemos o mesmo objetivo?
    Mahatma Gandhi GANDHI, M.K. Hind Swaraj or Indian Home Rule.Translated into English by M.K. Gandhi. 1910 .

    ResponderExcluir
  3. Francisco Castro de Sousa19 de junho de 2015 às 13:37

    Jorge Luiz, muito bom o seu artigo. Espero que seja o primeiro de uma série. As pessoas que não são tolerantes em matéria de religião, também não são tolerantes em família mas, muitas vezes, compactuam com a corrupção e com o tráfico de drogas e pessoas! Parabéns Jorge! Prossiga nessa estrada, você vai longe rapaz!!

    ResponderExcluir
  4. O confrade Gilberto Arruda, do Lar de Frei Luiz, Rio de Janeiro, foi encontrado morto, amarrado em uma cama, com sinais de espancamento. O Lar de Frei Luiz é uma instituição com com 124 funcionários e mais de mil voluntários. Será mais uma vítima de intolerância religiosa? As investigações responderão, é o mínimo que se espera.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

A PIOR PROVA: RIQUEZA OU POBREZA?

  Por Ana Cláudia Laurindo Será a riqueza uma prova terrível? A maioria dos espíritas responderá que sim e ainda encontrará no Evangelho Segundo o Espiritismo a sustentação necessária para esta afirmação. Eis a necessidade de evoluir pensamentos e reflexões.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

ESPÍRITISMO E CRISTIANISMO (*)

    Por Américo Nunes Domingos Filho De vez em quando, surgem algumas publicações sem entendimento com a codificação espírita, clamando que a Doutrina Espírita nada tem a ver com o Cristianismo. Quando esse pensamento emerge de grupos religiosos dogmáticos e intolerantes, até entendemos; contudo, chama mais a atenção quando a fonte original se intitula espiritista. Interessante afirmar, principalmente, para os versados nos textos de “O Novo Testamento” que o Cristo não faz acepção de pessoas, não lhe importando o movimento religioso que o segue, mas, sim, o fato de que onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome ele estará no meio deles (Mateus XVIII:20). Portanto, o que caracteriza ser cristão é o lance de alguém estar junto de outrem, todos sintonizados com Jesus e, principalmente, praticando seus ensinamentos. A caridade legítima foi exemplificada pelo Cristo, fazendo do amor ao semelhante um impositivo maior para que a centelha divina em nós, o chamado “Reino de...

“BANDIDO MORTO” É CRIME A MAIS

  Imagens da internet    Por Jorge Luiz   A sombra que há em mim          O Espírito Joanna de Ângelis, estudando o Espírito encarnado à luz da psicologia junguiana, considera que a sociedade moderna atinge sua culminância na desídia do homem consigo mesmo, que se enfraquece tanto pelos excessos quanto pelos desejos absurdos. Ao se curvar à sombra da insensatez, o indivíduo negligencia a ética, que é o alicerce da paz. O resultado é a anarquia destrutiva, uma tirania do desconcerto que visa apagar as memórias morais do passado. Os líderes desse movimento são vultos imaturos e alucinados, movidos por oportunismo e avidez.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O CORDEIRO SILENCIADO: AS TEOLOGIAS QUE ABENÇOARAM O MASSACRE DO ALEMÃO.

  Imagem capa da obra Fe e Fuzíl de Bruno Manso   Por Jorge Luiz O Choque da Contradição As comunidades do Complexo do Alemão e Penha, no Estado do Rio de Janeiro, presenciaram uma megaoperação, como define o Governador Cláudio Castro, iniciada na madrugada de 28/10, contra o Comando Vermelho. A ação, que contou com 2.500 homens da polícia militar e civil, culminou com 117 mortos, considerados suspeitos, e 4 policiais. Na manhã seguinte, 29/10, os moradores adentraram a zona de mata e começaram a recolher os corpos abandonados pelas polícias, reunindo-os na Praça São Lucas, na Penha, no centro da comunidade. Cenas dantescas se seguiram, com relatos de corpos sem cabeça e desfigurados.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...