Pular para o conteúdo principal

KARDEC NÃO NEGOU QUE O ESPÍRITO DA VERDADE FORA JESUS





 Por Sérgio Aleixo (*)


A tradição de João, XIV, XV e XVI, diz que Jesus enviaria o Consolador, ou Paráclito, o Espírito de Verdade; tudo isso junto, e ainda acrescido do tal Espírito Santo das ficções clericais. Como quer que seja, para Kardec, trata-se de referência profética ao Espiritismo, terceira revelação do complexo civilizatório judaico-cristão. Querem alguns, porém, que isso inviabilize a possibilidade de o seu guia espiritual haver sido Jesus.[1] Não faria sentido, segundo eles, que o Cristo houvesse prometido enviar a si mesmo.
O primeiro erro dessa opinião é exigir da linguagem figurada do Evangelho um significado preciso, por lógica de exclusão mais aplicável a ciências exatas. O segundo erro, decorrente do primeiro, está em que a referência profética é, acima de tudo, à Doutrina Espírita, ali personificada no Paráclito; nada obstante à existência de um espírito que assumiu o nome de Espírito de Verdade a Kardec posteriormente, coisa que o símbolo, por sua natureza polissêmica, permite sem sobressaltos. O terceiro erro é que essa opinião desconsidera o fato capital de que a tradição de João também atribui a Jesus, no mesmo contexto da profética promessa, as seguintes ditas:

XIV.18: Não vos deixarei órfãos. Tornarei a vós [...] XVI. 7: É conveniente para vós que eu vá porque, se não for, o Paráclito não virá a vós; mas se eu for, eu vo-lo enviarei [...] XVI.12: Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não podeis compreendê-las agora [...] XVI.25: Eu vos disse estas coisas em parábolas. Hora há de vir entretanto em que não vos falarei mais por parábolas, mas abertamente vos falarei do Pai.[2]


Estas palavras bem convidam ao entendimento de que, sim, o próprio Jesus, mais tarde, encarregar-se-ia de ensinar aquilo que não pudera quando esteve encarnado. A isso respondem que o próprio Kardec teria negado ser Jesus a identidade terrena do seu guia espiritual, o Espírito de Verdade. Será? Vejamos o que ele escreveu:

Qual deve ser esse enviado? Dizendo: “Pedirei a meu Pai e ele vos enviará outro Consolador”, Jesus indica claramente que esse Consolador não é ele mesmo, do contrário, teria dito: “Voltarei para completar o que vos tenho ensinado”.[3]

Em primeiro lugar, Kardec não diz que o Espírito de Verdade não era Jesus; afirma, isto sim, que o Consolador é que não era Jesus. E veremos não se tratar de jogo de palavras. Em segundo lugar, o argumento apresentado por Kardec, de que Jesus não disse que voltaria para completar seu ensino, não tem procedência. Como já demonstrei, segundo a tradição de João, Jesus também disse que voltaria, que ainda tinha muito a dizer e, desta vez, não mais por parábolas. Então, Kardec o ignorava? Não! Pois ele mesmo citou a tradição de João, XVI, 7 e 12, em A Gênese, XVII, 36. E sobre esses passos da Escritura comentou, revelador, no n. 37:

Assim, as religiões fundadas sobre o Evangelho não podem dizer que detêm toda a verdade, uma vez que ele, Jesus, reservou para si a complementação posterior dos seus ensinamentos. O princípio da imutabilidade das religiões é um protesto contra as próprias palavras do Cristo.[4]

Antes, ainda em A Gênese, XVII, 30, Kardec dissera sem rebuços:

O que diria o Cristo se vivesse hoje entre nós? Se visse seus representantes ambicionarem as honras, as riquezas, o poder e o fausto dos príncipes do mundo, enquanto que ele, mais rei do que todos os reis da Terra, fez sua entrada em Jerusalém montado num jumento? Não teria o direito de dizer-lhes: “O que fizestes dos meus ensinamentos, vós que incensais o bezerro de ouro, que dais uma grande parte das vossas preces aos ricos, e uma parte insignificante aos pobres, apesar de eu haver dito que os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros no reino dos céus?” Mas, se ele não está carnalmente entre nós, está em espírito e, como o senhor da parábola, quando chegar a hora da colheita, virá pedir contas da produção da sua vinha aos seus vinhateiros.[5]

O que, então, levou Kardec a dizer que Jesus teria indicado claramente que esse Consolador não era ele? Leia-se o texto de A Gênese, XVII, 39. Mas por completo, e não apenas em sua primeira terça parte:

Qual deve ser esse enviado? Dizendo: “Pedirei a meu Pai e ele vos enviará outro Consolador”, Jesus indica claramente que esse Consolador não é ele mesmo, do contrário, teria dito: “Voltarei para completar o que vos tenho ensinado”. Depois acrescentou: “A fim de que fique eternamente convosco, e ele estará em vós.” Esta proposição não poderia se referir a uma individualidade encarnada, que não pode ficar eternamente conosco, nem, ainda menos, estar em nós, mas pode muito bem referir-se a uma doutrina que, efetivamente, quando é assimilada, pode estar eternamente em nós. O Consolador é, assim, no pensamento de Jesus, a personificação de uma doutrina soberanamente consoladora, cujo inspirador deve ser o Espírito de Verdade.[6]

Se Jesus disse que, sim, voltaria para completar seu ensino; se isso foi antes reconhecido por Kardec, uma de três: a) Kardec se contradisse depois de escrever apenas dois parágrafos; b) houve erro de revisão na publicação da obra; c) ele quis evidenciar que Jesus não completaria seu ensino como individualidade encarnada, mas inspirando uma doutrina consoladora, espiriticamente.
Anote-se que a exegese de Kardec distinguiu o Consolador (ensino doutrinário) do Espírito de Verdade (inspirador e presidente desse ensino). O mestre, pois, tinha razão em dizer que o Consolador não era Jesus, porque, mais propriamente, antes era a Doutrina Espírita; sem embargo, todavia, de uma possível iniciativa, de um provável envolvimento espiritual daquele que, na Terra, fora Jesus de Nazaré.
Ora, Kardec chamou Jesus de o Espírito de Verdade;[7] afirmou que o Espiritismo é obra do Cristo, que este, bem como o Espírito de Verdade, é seu presidente e também da regeneração planetária;[8] publicou na Revista Espírita, sem reparos, mensagem de Hahnemann a revelar que o Espírito de Verdade dirige este globo;[9] de Erasto, a chamá-lo de nosso bem-amado mestre;[10] não deixou sequer de registrar, sobre parte das comunicações do Espírito de Verdade que, “embora obtidas por médiuns diferentes e em épocas diversas, nota-se entre elas uma analogia impressionante de tom, de estilo e de pensamentos, que acusam uma origem única”.[11]


 (*) Escritor e palestrante espírita. Vice-presidente da Associação de Divulgadores do Espiritismo do Rio de Janeiro.




[1] Cf. http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2011/11/sobre-o-espirito-de-verdade.html.
[2] Novo Testamento. Versão da Vulgata por D. Vicente M. Zioni. São Paulo, Paulinas, 1975.
[3] Léon Denis – Gráfica e Editora, 2.ª ed., 2008. Trad.: Albertina Escudeiro Sêco. Grifos meus.
[4] Léon Denis – Gráfica e Editora, 2.ª ed., 2008. Trad.: Albertina Escudeiro Sêco. Grifos meus.
[5] Léon Denis – Gráfica e Editora, 2.ª ed., 2008. Trad.: Albertina Escudeiro Sêco. Grifos meus.
[6] Léon Denis – Gráfica e Editora, 2.ª ed., 2008. Trad.: Albertina Escudeiro Sêco. Grifos meus.
[7] Cf. O Livro dos Médiuns, 48.
[8] Cf. O Evangelho segundo o Espiritismo, I, 7. A Gênese, I, 42.
[9] Cf. Revista Espírita. Jan/1864. Um Caso de Possessão.
[10] Cf. Revista Espírita. Out/1861. Epístola de Erasto aos Espíritas Lioneses.
[11] Cf. Revista Espírita. Dez/1864. Comunicação Espírita.


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

DIA DE FINADOS À LUZ DO ESPIRITISMO

  Por Doris Gandres Em português, de acordo com a definição em dicionário, finados significa que findou, acabou, faleceu. Entretanto, nós espíritas temos um outro entendimento a respeito dessa situação, cultuada há tanto tempo por diversos segmentos sociais e religiosos. Na Revista Espírita de dezembro de 1868 (1) , sob o título Sessão Anual Comemorativa dos Mortos, na Sociedade Espírita de Paris fundada por Kardec, o mestre espírita nos fala que “estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para dar aos nossos irmãos que deixaram a terra, um testemunho particular de simpatia; para continuar as relações de afeição e fraternidade que existiam entre eles e nós em vida, e para chamar sobre eles as bondades do Todo Poderoso.”

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O DISFARCE NO SAGRADO: QUANDO A PRUDÊNCIA VIRA CONTRADIÇÃO ESPIRITUAL

    Por Wilson Garcia O ser humano passa boa parte da vida ocultando partes de si, retraindo suas crenças, controlando gestos e palavras para garantir certa harmonia nos ambientes em que transita. É um disfarce silencioso, muitas vezes inconsciente, movido pela necessidade de aceitação e pertencimento. Desde cedo, aprende-se que mostrar o que se pensa pode gerar conflito, e que a conveniência protege. Assim, as convicções se tornam subterrâneas — não desaparecem, mas se acomodam em zonas de sombra.   A psicologia existencial reconhece nesse movimento um traço universal da condição humana. Jean-Paul Sartre chamou de má-fé essa tentativa de viver sem confrontar a própria verdade, de representar papéis sociais para evitar o desconforto da liberdade (SARTRE, 2007). O indivíduo sabe que mente para si mesmo, mas finge não saber; e, nessa duplicidade, constrói uma persona funcional, embora distante da autenticidade. Carl Gustav Jung, por outro lado, observou que essa “másc...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

O MEDO SOB A ÓTICA ESPÍRITA

  Imagens da internet Por Marcelo Henrique Por que o Espiritismo destrói o medo em nós? Quem de nós já não sentiu ou sente medo (ou medos)? Medo do escuro; dos mortos; de aranhas ou cobras; de lugares fechados… De perder; de lutar; de chorar; de perder quem se ama… De empobrecer; de não ser amado… De dentista; de sentir dor… Da violência; de ser vítima de crimes… Do vestibular; das provas escolares; de novas oportunidades de trabalho ou emprego…

O ESPIRITISMO É PROGRESSISTA

  “O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõe todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem - a mão para marchar, na mesma rota ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.”   Revista Espírita – junho de 1868, (Kardec, 2018), p.174   Viver o Espiritismo sem uma perspectiva social, seria desprezar aquilo que de mais rico e produtivo por ele nos é ofertado. As relações que a Doutrina Espírita estabelece com as questões sociais e as ciências humanas, nos faculta, nos muni de conhecimentos, condições e recursos para atravessarmos as nossas encarnações como Espíritos mais atuantes com o mundo social ao qual fazemos parte.