Por Jorge Luiz
O Chamado à Coerência do Reino
Passaram-se mais de dois milênios e, mesmo com o institucionalismo religioso, apesar de todos os desvios sugeridos, a mensagem original de Jesus tem se mantido coerente com aquilo que a constituiu ser conhecida como o reino de Deus. A ética protestante, como mostrou Max Weber, contribuiu para que a economia capitalista ascendente se desvinculasse completamente dos antigos escrúpulos cristãos. Viu-se a ascendente economia capitalista liberta por completo de todo escrúpulo cristão primitivo e não menos ainda solta e desprendida diante da relativa cristandade da ideologia econômica medieval. O Mandamento do Amor, em Cristo, acabou reduzido a caridade voluntária ou a mera psicologia no quadro da moral pública, e esta mesma triunfa enquanto fim absoluta, enquanto aparição do único serviço divino possível, do prêmio divino, do Império de Deus após a expulsão do Paraíso (Bloch, 1973).
Pesquisadores de todos os matizes têm contribuído para que se resgate o Jesus histórico, e com ele o aspecto revolucionário dos seus ensinamentos. O Reino de Deus se viabiliza na realidade, na dimensão terrena, sem nenhum substabelecimento divino para essa ou aquela agremiação religiosa, mas das iniciativas daqueles que Jesus os denominou de pequeninos, que hoje se conhece como proletariado, mas na realidade são os indesejáveis das classes dominantes. A dinâmica do Reino, portanto, se dinamiza naquilo que Karl Marx denominou lutas de classes.
Cristianismo Libertador – A Mensagem de Jesus e os Pobres
Perdido em um movimento espírita anêmico, lanço meu olhar à escolha do novo Papa, a partir das articulações do Papa Francisco para que a escolha recaísse em alguém da América Latina que estivesse identificado com a sua linha de ação.
Antes de adentrarmos à especificidade do item, ouçamos Allan Kardec em seu diálogo fictício com um Padre, ao respondê-lo quando indagado sobre a visão dos Espíritos em existindo um católico fervoroso, que escrupulosamente cumpre os deveres do seu culto, se seria censurado por esses, notadamente, a partir da sua fé. Kardec é claro ao responder que os Espíritos não irão censurá-lo pelo simples fato da sua fé, e reconhecerão quando os seus ministros desempenharem sua missão com devotamento e interesse cristão (Kardec, 2013). Assim, ao expressar apreços aos pensamentos do Papa Francisco, faça-o pautado no ecumenismo natural do Espiritismo. Ficarão mais claros esses apreços pelos arrazoados que se desenvolverão.
Embora soe redundante, há um Cristianismo Libertador na América Latina, também conhecido como Igreja dos Pobres, e quem o assim denomina é Michael Löwy, pensador marxista brasileiro radicado na França, onde trabalha como diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique.
Atualmente, a Teologia da Libertação está atrelada ao Cristianismo Libertador, entretanto, em sua origem não foi assim. A Teologia da Libertação é, ao mesmo tempo, o reflexo da práxis e uma reflexão sobre essa práxis, define o teólogo Leonardo Boff. Este autor deixa claro que os escritos da década de 1970, produzidos por personalidades latino-americanas como os brasileiros Rubem Alves, Frei Betto, Leonardo e Clodovil Boff, foram que deram origem à teologia libertadora, pela influência de vasto movimento social surgido no começo da década de 1960. Historicamente, os eventos que foram determinantes e contribuíram para as articulações que enredaram essas ações ocorreram simultaneamente em 1958-59: um deles no Vaticano – a eleição do Papa João XXIII e o outro em uma ilha Caribenha: a vitória da Revolução Cubana (Löwi, 2016).
Teologia da Libertação e Espiritismo
Lövi chama a atenção de que a Teologia da Libertação não é um discurso social e político e sim, antes de qualquer coisa, uma reflexão religiosa e espiritual.
É de fundamental importância anotar que o Vaticano nunca foi simpático à Teologia da Libertação. Na realidade, ele foi fortemente combatido pelo Vaticano, levando Boff a sofrer sanções severas incluindo um processo judicial na Congregação para a Doutrina da Fé e, posteriormente, a proibição de ensinar. A sanção mais dura foi a suspensão da sua atividade sacerdotal, mas ele acabou pedindo para ser reduzido ao estado leigo. Fica evidente que a Teologia da Libertação nunca teve e nem tem vinculação com a Igreja Católica. É importante destacar que essa decisão do Vaticano, através do Papa João Paulo II, foi demandada pelo Presidente norte-americano Ronald Reagan (Lövi, 2016).
Entre os princípios básicos da maior parte dos teólogos libertadores, que são inovações radicais, destacam-se:
a) a luta contra a idolatria;
b) a libertação humana histórica como a antecipação da salvação final em Cristo, o Reino de Deus;
c) uma crítica da teologia dualista tradicional, como produto da filosofia grega de Platão, e não da tradição bíblica;
d) uma nova leitura da Bíblia que dá uma atenção significativa a passagens tais como a do Êxodo, que é vista como paradigma de luta de um povo escravizado por sua libertação;
e) uma forte crítica moral e social do capitalismo dependente como sistema injusto e iníquo, como uma forma de pecado estrutural;
f) a opção preferencial pelos pobres e a solidariedade com sua luta pela autolibertação;
g) o desenvolvimento de comunidades de base cristã entre os pobres como uma nova forma de igreja e como alternativa para o modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista (Löwi, 2016).
Economia de Francisco e Clara
O Papa Francisco não
evidenciou publicamente sua simpatia pela Teologia da Libertação, o que é compreensível.
No entanto, recebeu o peruano Gustavo Gutierrez, teólogo e sacerdote peruano,
desencarnado recentemente, considerado um dos principais nomes da teologia, bem
como o teólogo Leonardo Boff. O Papa Francisco é autor do projeto Economia de
Francisco, hoje conhecido como Economia de Francisco e Clara, presente na
Colômbia e em outros países da América Latina. No Brasil, é movimentada pela
Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC), que busca
mobilizar diferentes atores sociais e religiosos na construção de uma nova
economia (saiba mais).
Os fundamentos da Economia de Francisco e Clara:
a) crenças na ecologia integral;
b) desenvolvimento Integral;
c) alternativas anticapitalistas;
d) bens comuns;
e) ‘tudo está interligado’;
f) potência das periferias vivas;
g) economia a serviço da vida;
h) comunidades como saída;
i) educação integral;
j) solidariedade e no clamor dos povos.
Os fundamentos acima, conjugados com a Teologia da Libertação, são revolucionários e explicam os anseios do Papa Francisco com o nome que o sucedeu, diante do futuro do Cristianismo – leia-se Catolicismo... Acredito que ficaram claros os motivos dos meus apreços ao Papa Francisco, referenciados no início do texto.
Similia similibus – Movimento Espírita e sua Crise de Identidade
O encolhimento no número de adeptos do Espiritismo no censo de 2022 não é surpreendente. A causa principal é paradoxal, mas é real; o movimento espírita brasileiro faliu pela ausência do Espiritismo. O fenômeno é fácil de se identificar, basta se remontar aos primeiros dias do Espiritismo no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, pela batalha encetada entre místicos e científicos, vencida pelos primeiros. A implantação dos estudos do Roustainguismo na Federação Espírita Brasileira, pela batuta pelo Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, nome de maior expressão entre os místicos, era prenúncio dos atuais dias. O religiosismo igrejeiro que se disseminou no Brasil sufocou os fundamentos filosóficos, cerne das obras espíritas, bem sistematizada em O Livro dos Espíritos.
Léon Denis, grande apóstolo do Espiritismo, também profetizou ao evocar a lei dos semelhantes, Similia similibus, e advertiu que o Espiritismo será o que o fizerem os homens, prossegue ele, ao contato da Humanidade as mais altas verdades as quais, às vezes, desnaturam-se e obscurecem. Pode se construir uma fonte de abusos. A gota de chuva, conforme o lugar onde cai, continua sendo pérola que se transforma em lodo (Denis, 1994). Procure visitar dez instituições espíritas e ver-se-á em cada uma delas a característica pessoal – o personalismo – do seu fundador. A partir dessa realidade, o movimento espírita brasileiro foi construindo em um viés personalístico, reforçado pelas obras de dois médiuns, Chico Xavier e Divaldo Franco. O confrade Alexandre Júnior, coordenador do coletivo progressista Ágora Espírita, lendo esse cenário, aponta que a consequência é a construção de um movimento espírita que acaba por perder a sua principal criticidade, fazendo com que a prática espírita se distancie da sua razão de existir inicial: a sociedade. Ele aponta três características marcantes desse movimento, quais sejam: o materialismo, o conservadorismo e a contemplação (Júnior, 2022).
Espiritismo de Libertação – Caminhos para o Futuro
Não há Espiritismo sem Cristianismo. Se há um Cristianismo de Libertação, deverá haver um Espiritismo de Libertação? Consciente da redundância, respondo: sim, com o olhar para o movimento espírita.
A tarefa não parece tão difícil, tanto quanto a do Catolicismo, por considerar que o movimento conhecido como “espíritas progressistas” através de coletivos, desenvolve discussões favorecidas pelos galhos socialistas da árvore da Doutrina Espírita, cujo tronco é O Livro dos Espíritos, abandonado em sua pedagogia pelo tradicionalismo religioso no movimento espírita. Essas discussões vêm sendo subsidiadas, além das obras básicas, com as de Eusínio Lavigne, Humberto Mariotti, Cosme Mariño, Manoel Porteiro, J. Herculano Pires e Léon Denis.
Irão merecer distintas autocríticas para sinalizarem mudanças estruturais – vejo-as como difíceis de acontecer: as instituições e a assistência social espírita. Ambas deverão ser redirecionadas para uma versão crítica da sociedade, sendo presentes os ensinos filosóficos da Doutrina, como bem-ditos por Allan Kardec, e onde está a sua força, no apelo feito à razão e ao bom senso (Kardec, 2000). Difícil, por um sentido maior, expressiva maioria dos dirigentes espíritas sequer sabe a função e o significado do que é um centro espírita, muito bem anotado pelo professor e filósofo J. Herculano Pires, quando afirmou que se os espíritas soubessem quais são realmente a sua função e significação, o Espiritismo seria hoje o mais importante movimento cultural e espiritual da Terra (Pires, 1990). Enfático dizer que se tem um modelo de casa espírita ainda do século XIX, quando surgiram as primeiras instituições espíritas no Brasil.
Inquiro, por fim, que o movimento intitulado “Espíritas Progressistas” passe a se intitular “Espiritismo de Libertação”. “O Espiritismo de Libertação” não é um novo Espiritismo, mas o reencontro com o projeto original de Kardec, em profunda comunhão com Jesus, que não veio consolar apenas, mas educar e transformar. É o Espiritismo sem dogmatismo, misticismo, institucionalismo, profissionalismo religioso, religiosismo igrejeiro, missionarismo, insitucionalismo, mediunato,.. livre de todos os atavismos.
Temos de esperançar e tudo isso é esperançoso. Esperançar de que a luta, e não contemplação, pelo reino de Deus está ativa e independe, graças a Deus, das religiões ditas cristãs.
Referências:
BLOCH, Ernst. Thomaz Münzer: teólogo da revolução. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
DENIS, Léon. No invisível. Brasília: FEB, 1994.
JÚNIOR, Alexandre. Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidade. Recife: DTT Editora CBA, 2022.
LÖWI, Michael. O que é cristianismo de libertação? São Paulo: Expressão Popular, 2016.
KARDEC, Allan. O Livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.
PIRES, J. Herculano. O Centro espírita. São Paulo: LAKE, 1990.
SITE:
https://economiadefranciscoeclara.com.br/.
COMENTÁRIO ELABORADO PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - IA
ResponderExcluirO artigo "Por um Espiritismo de Libertação" propõe uma reflexão crítica sobre os rumos do movimento espírita brasileiro, argumentando que este se distanciou de suas raízes filosóficas e progressistas em favor de um religiosismo igrejeiro e personalista.
O autor traça um paralelo entre o Cristianismo de Libertação, associado à Teologia da Libertação e aos ideais do Papa Francisco, e o que ele chama de Espiritismo de Libertação. Ambos os movimentos são vistos como tentativas de resgatar a mensagem original de Jesus, que, segundo o texto, era focada na libertação dos "pequeninos" e na transformação social, em oposição a uma visão puramente espiritual e individualista.
O texto critica o conservadorismo, materialismo e contemplação que, na visão do autor, marcaram o espiritismo no Brasil, especialmente após a influência de figuras como Bezerra de Menezes e o foco nas obras de médiuns como Chico Xavier e Divaldo Franco. O artigo sugere que o movimento espírita faliu por "ausência do Espiritismo", ignorando sua essência filosófica e crítica da sociedade.
Como solução, o autor propõe o "Espiritismo de Libertação" como uma forma de reencontro com o projeto original de Kardec, livre de dogmatismos e misticismos. O artigo defende a necessidade de que as instituições espíritas e a assistência social se tornem mais críticas e engajadas na transformação social, em sintonia com os ideais de um cristianismo mais atuante. Em suma, o texto é um chamado à ação e a um retorno às origens progressistas e revolucionárias da Doutrina Espírita.