Pular para o conteúdo principal

ÉTICA E CAPITALISMO - PARTE I

 


       Por Alysson Mascaro 

           Libertar o problema ético de sua vertente passadista religiosa já há muito é imperativo. Negar a divindade dos líderes religiosos, negar os milagres ou livros santos, isto é tarefa que não exige dos homens da atualidade nada mais do que o esforço de ler um Voltaire ou qualquer lúcido pensador do século XVIII.

Um problema maior, no entanto, é o de libertar o problema ético de suas amarras individualistas e racionalistas típicas do século XVIII. Na entrada do século XIX, um pensador na corrente das mudanças da história como Hegel já lustrara suas armas contra a moral individualista e a razão atemporal. Fuerbach, diria Marx em meados do século XIX, já havia destruído tudo o que era preciso em matéria de religião no seu livro A Essência do Cristianismo. Nietzche, esta espécie de razão enfurecida que a virada do século presenciou pasma e incomodada, sepultou a moral da razão iluminista da mesma forma que sepultada já estava a moral da religião medieval. Heidegger, no século XX, não cumpriu itinerário diferente destes seus colegas do passado próprio ao rejeitar não só a metafísica das religiões como o império racional, individual e universal. Ao cabo desta grande travessia, parece que o colosso da moral racional estava definitivamente vencido, dois séculos depois de ter se abatido o monstro da moral das teologias, religiões, revelações, metafísicas, livros sagrados e palavras divinas.

A quebra desta moral racionalista individualista e universalista foi feita por muitos ângulos, por autores que jamais tiveram consciência de que, de um lado e de outro, matavam o mesmo grande monstro. Nietzche e Marx, sem saberem um do outro, desferiram golpes mortais na moral da razão iluminista, e graças a eles e mis outros finou este jovem espécime, a moral racionalista.

Na verdade, é preciso entender que a moral racionalista do Iluminismo é o ajuste do mundo capitalista no momento de inflexão da sua conquista definitiva do mundo. A moral protestante é o tosco esboço de que o capitalismo necessitou para romper com o passado feudal. A luta contra o passado não-capitalista é a luta protestante, cuja lógica é sempre ser o não do sim católico, feudal, medieval. Até o nome, protestante ou reformado, remete imediatamente à matriz da qual se contrapõe. Toda a Idade Moderna, a era do protestantismo, é a era em que o capitalismo luta contra as amarras do passado feudal e medieval católico. Ao final desta etapa, já não bastava o ser o não de um sim já remoto, era preciso abandonar a teologia do não e instaurar a positivação de um novo sim, o da razão. O capitalismo, quando já não tem mais inimigos do passado, joga fora seu Deus com o qual lutava contra o Deus dos outros. Agora era preciso instaurar um mundo, definitivamente, sem religiões. Foi o que fez o Iluminismo; estava instaurada a moral definitivamente do capitalismo.

Esta moral, racionalista, passava por muito avançada em comparação com o passado. Não era própria nem de homens crédulos e subjugados como os católicos nem de homens crentes em amarras metafísicas como no caso protestante. Era uma moral de homens racionais, livres que julgavam por si próprios, livre-pensadores que rejeitavam a santificação da pobreza antiga e glorificavam suas especulações racionais no conforto de suas bibliotecas burguesas.

Esta moral, tal qual o capitalismo que então definitivamente ganhara a batalha contra seus inimigos, fazia de cada homem um princípio, fazia a humanidade girar em torno das individualidade, do empreendimento e do arrojo individual, não ditando nada mais do que as possibilidades das consciências. Da mesma forma que é o próprio burguês que conta seu lucro e o entesoura, é o próprio, é o próprio homem que se julgará por si só, pela consciência e sua amplitude racional. Não haverá o dízimo da igreja obrigando a contar os lucros do homem medieval na frente de terceiros: agora, da mesma forma que os lucros de cada qual, a moral também o é. E da mesma forma que o dinheiro que faz lucros é um só para todos mesmo sendo de cada um a sua apreensão, a moral será uma só pra todos mesmo sendo de cada qual a sua jurisdição.

Da mesma forma que a lógica capitalista é de propriedade individual, produção e circulação do lucro, a moral capitalista – racionalista e individualista – procede à sua semelhança. Kant guardou a moral na propriedade privada de cada consciência, e cada juízo é sua moral. Rousseau, Voltaire e outros mais apostavam na igualdade da moral de cada indivíduo como se aposta na igualdade do mercado, onde não importa quem compra nem quem vende, só importa o lucro. Da mesma maneira, a moral racionalista, capitalista por excelência, não pergunta sobre a procedência de nenhum indivíduo – cristão ou muçulmano, judeu ou ateu, tanto faz – mas pergunta exatamente a respeito de seus produtos morais circuláveis no grande mercado da moral racional humana. Assim, alguns escolhem ser empresários, patrões, que ganham lucros nos maquinários de exploração do trabalho, mas não tem necessidade de prestar contas de seus lucros a ninguém. A mais-valia do trabalho não é pecado pré-estabelecido. O acordo de vontades entre patrão e trabalhador, sim, é a verdadeira moral burguesa, e é para o burguês muito justa desde que haja quem queira negociar trabalho segundo tais condições estabelecidas.

A moral do mercado é a moral da negociação às claras, não importando o quando isto seja injusto na realidade: se ambos concordam, a moral aí se fez presente, pois ela é simplesmente uma concórdia entre iguais, a concórdia da forma, não do conteúdo. Patrão e empregado se fazem de iguais no mercado, e cumprem suas obrigações e recebem o que de direito, num contrato às claras. O contrato capitalista cumprido passa a ser sinônimo de moral, da mesma maneira que a moral antiga era o devido cumprimento do contrato com Deus, da aliança de Javé com o povo hebreu. O quanto o burguês leva à casa, ao recôndito de sua vida privada, não é mais problema moral desde que não tenha trapaceado as regras do mercado, as regras do contrato social. A moral passa a ser um meio de chancela das relações contratuais humanas cuja única medida é o acordo, a relação mútua de comum acordo. Nunca o preceito do antigo direito romano foi tão atual quando no caso da moral moderna: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere. (*)

(*) “Viver honestamente, não lesar a ninguém, dar a cada um o que é seu.” (Digesto, 1.1.10)

 

                                                                                             

                                                                                              (continua no próximo artigo)

 

 

Referências:

MASCARO. Alysson L. Cristianismo libertador. São Paulo. 2002

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DIA DA ESPOSA DO PASTOR: PAUTA PARASITA GANHA FORÇA NO BRASIL

     Imagens da internet Por Ana Cláudia Laurindo O Dia da Esposa do Pastor tem como data própria o primeiro domingo de março. No contexto global se justifica como resultado do que chamam Igreja Perseguida, uma alusão aos missionários evangélicos que encontram resistência em países que já possuem suas tradições de fé, mas em nome da expansão evangélico/cristã estas igrejas insistem em se firmar.  No Brasil, a situação é bem distinta. Por aqui, o que fazia parte de uma narrativa e ação das próprias igrejas vai ocupando lugares em casas legislativas e ganhando sanções dentro do poder executivo, como o que aconteceu recentemente no estado do Pará. Um deputado do partido Republicanos e representante da bancada evangélica (algo que jamais deveria ser nominado com naturalidade, sendo o Brasil um país laico (ainda) propôs um projeto de lei que foi aprovado na Assembleia Legislativa e quando sancionado pelo governador Helder Barbalho, no início deste mês, se tornou a lei...

OS ESPÍRITAS E O CENSO DE 2022

  Por Jorge Luiz   O Desafio da Queda de Números e a Reticência Institucional do Espiritismo no Brasil Alguns espíritas têm ponderado sobre o encolhimento do número de declarados espíritas no Brasil, conforme o Censo de 2022, com abordagens diversas – desde análises francas até tentativas de minimizar o problema. O fato é que, até o momento, as federativas estaduais e a Federação Espírita Brasileira (FEB) não se manifestaram com o propósito de promover um amplo debate sobre o tema em conjunto com as casas espíritas. Essa ausência das federativas no debate não chega a ser surpreendente e é uma clara demonstração da dinâmica do movimento espírita brasileiro (MEB). As federativas, na realidade, tornaram-se instituições de relacionamento público-social do movimento espírita.

CONFLITOS E PROGRESSO

    Por Marcelo Henrique Os conflitos estão sediados em dois quadrantes da marcha progressiva (moral e intelectual), pois há seres que se destacam intelectualmente, tornando-se líderes de sociedades, mas não as conduzem com a elevação dos sentimentos. Então quando dados grupos são vencedores em dadas disputas, seu objetivo é o da aniquilação (física ou pela restrição de liberdades ou a expressão de pensamento) dos que se lhes opõem.

JUSTIÇA COM CHEIRO DE VINGANÇA

  Por Roberto Caldas Há contrastes tão aberrantes no comportamento humano e nas práticas aceitas pela sociedade, e se não aceitas pelo menos suportadas, que permitem se cogite o grau de lucidez com que se orquestram o avanço da inteligência e as pautas éticas e morais que movem as leis norteadoras da convivência social.  

O CERNE DA QUESTÃO DOS SOFRIMENTOS FUTUROS

      Por Wilson Garcia Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina. ***   Inicialmente. O pior das discussões sobre os fundamentos do Espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia: