terça-feira, 2 de novembro de 2021

O CRISTIANISMO PLENO

 (continuação)

 


 

        O conhecimento científico espírita surge em um determinado momento da história humana, e surge na civilização ocidental. É um conhecimento científico em um mundo historicamente cristão. É natural que o cotejo do conhecimento da existência do espírito com a moral cristã viesse a ser feito. Kardec mesmo já se lançara a tal intento: O Evangelho Segundo o Espiritismo é a primeira grande obra de comparação e relação do conhecimento espírita com alguns pilares da moral cristã.

            É preciso rejeitar um caráter cristão por essência do conhecimento científico espírita. Não há, propriamente se dizendo, uma ciência cristã, a não ser pelo ângulo dos cristãos, nunca pelo ângulo da ciência. Exemplifiquemos: se por cristianismo, suponhamos, se entende a crença na existência de uma só vida, tudo o que prova o contrário disso pode ser dito como ciência não-cristã. Mas esta medida foi dada pelos cristãos. O químico não se perguntará sobre o caráter cristão de sua ciência atômica. Os estatutos da ciência devem ser necessariamente autônomos. Da mesma maneira, a ciência espírita não é do ângulo dos cristãos, é do ângulo da ciência mesmo. Seus estatutos são autônomos.

            Portanto, cotejar o conhecimento espírita com a moral cristã é uma atividade própria da tradição moral ocidental; se surgido tivesse na Índia, seria de se notar uma comparação bastante entre o Espiritismo e as religiões hindus. Sob o ângulo das implicações de um conhecimento científico espírita nas tradições cristãs, muitas possibilidades e sentido se abrem. Na verdade, pode-se dizer com toda folga, só o Espiritismo consegue habilitar definitivamente a moral cristã.

            As promessas do Cristo na Terra são múltiplas, e são múltiplas as interpretações dos ensinamentos cristãos. Aquele Jesus que tenha sido filho de Maria Virgem ou do Espírito Santo ou que também é Deus não interessa ao Espiritismo. Também não interessa ao conhecimento científico espírita se Jesus se sentaria à direita de Deus. Tudo isto o Espiritismo já o rejeita de antemão pelo bom-senso que o mundo moderno e contemporâneo, idades da razão, já havia fornecido aos cientistas espíritas. O que interessa, às implicações espíritas no cristianismo, é um corpo de fundo que é ético-moral. No próprio Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec dizia não tratar das questões teológicas ou bizantinas, para se ater em algum corpo mínimo que dissesse respeito às expressões mais altas da moral cristã.

            A implicação do conhecimento científico espíritas na moral cristã se faz por uma ponte, a intermediação filosófica espírita. As derivações do conhecimento científico espírita ecoam no problema social e no problema ético-moral. O grande ponto de contato entre o Espiritismo e Cristianismo é, basicamente, o amor universal. Lei maior do Cristo – maior mandamento – e cujas implicações sociais são grandemente interessantes se observadas pelo ângulo espírita.

            Se tomarmos o cristianismo a partir da ótica espírita, a questão do amor universal se transforma. Sobre o tema há duas abordagens: a primeira é a do amor como lei natural que rege todo o universo – vale dizer, o amor como lei da natureza e como harmonia e justiça como pano de fundo da existência – e, por outra abordagem, tem-se o amor universal como problema humano, de sua existência no plano da matéria ou em outros planos do espírito.

            Do primeiro ponto de vista é preciso maior cautela. De maneira muito estrita, a existência do espírito, comprovada pela ciência espírita, nada conclui a respeito de uma harmonia intrínseca no universo, a respeito de um amor como lei universal da criação. Sabe-se, apenas, que o espírito se rege por mecanismos de evolução que consistem em experiências, aprendizados. As razões disto, que são no fundo as razões da existência em geral, não estão gravadas no espírito às nossas vistas imediatas. O que é certo, neste sentido, é que o Espiritismo é a única perspectiva possível para uma justiça universal e existência. Se o homem não é um ser de uma só vida, é infinito, seu acúmulo de experiências, sua consciência de si mesmo, seus atos e relações, tudo isto não está conduzido à nulidade. O homem, ao invés de ser para o nada, é antes um ser para a plenitude. Se é um nada em ternos de início de trajetória, nada tendo por essência, isto não quer dizer que não tenha uma projeção de si para o infinito. Só o Espiritismo, por meio da vida infinita e da reencarnação, permite compreender este ângulo frutuoso. Esta talvez seja a maior revolução que o Espiritismo venha a causar em toda a humanidade: só por meio dele a harmonia do universo e a justiça da existência tornam-se algo possível.

            No entanto, daí dizer a respeito da prova de Deus e da justiça universal da vida pelo espírito vai grande cautela científica. O Espiritismo consegue uma profunda revolução no conhecimento do homem a respeito de si mesmo, a respeito das leis universais que o regem como possibilidade, mas o Espiritismo, tal qual as outras ciências, está no mesmo patamar que todas as outras a respeito da divindade, da onisciência, etc. jogar para além, para o infinito, os limites do espírito, não diz nada a respeito de Deus. Dá, é certo, esteio e indícios de uma harmonia universal em plano maior, dá a possibilidade de se compreender uma justiça existencial mais plena. Mais que isto, no entanto, é vagar sem lastro. Mas ao abrir as portas da totalidade, só o Espiritismo permitirá vislumbrar também uma possível totalidade do amor.

            O segundo ângulo do amor universal cristão diz respeito ao problema humano, à situação e ao sentido humano da existência. Este amor cristão, é preciso dizer, é interpretado, a partir da época da razão, não como o fundamento do certo e errado nem como palavra de Deus. É interpretado, sim, como um sentido moral e eticamente proveitoso, justo e bom para a existência humana.

            Este impulso não é o temor do castigo, nem tampouco é um sentimento de esterilização dos conflitos nas relações humanas. Não diz respeito a formas de comportamento social, mas sim a uma espécie de perspectiva do mundo. O amor universal como perspectiva de compreensão do e de atuação no mundo é uma das inusuais e raríssimas interpretações do Cristo; parece, no entanto, ser a melhor de todas, a mais razoável e revolucionária.

            Sob este ângulo a moral moderna, burguesa, é essencialmente cristã na aparência e anticristã no conteúdo: o amor universal é uma espécie de discurso da caridade. A ordem e as coisas como estão são dados incontestes. Toda a vez que a busca de uma compreensão social melhorada esbarra nos interesses do poder econômico e dos poderes estabelecidos, logo o cristianismo burguês se transforma em contenção e lembrança do perdão e da serenidade. O impulso cristão nada tem a ver com esta pretensa serenidade que é somente uma palavra melhorada a dizer, no fundo, conformação.

            O amor à humanidade compreende, na sua base, o impulso para a justiça, o impulso para a transformação. Este parece ser um elemento crucial no exemplo de Jesus. O impulso pela transformação e não pela conservação. Há em Cristo, latente, o ânimo da contestação, propondo a transformação do dado; Jesus não era, absolutamente, o homem do poder. Todas as religiões que se reputaram cristãs, no entanto, foram religiões do poder. Se não do poder político e estatal, do poder econômico certamente. Ao mesmo tempo, do poder de castrar, do poder de submeter. Poder e libertação são dois antípodas. Nossa tendência a trabalhar com o mais confortável à nossa conveniência é que faz com que possamos ver bons poderes e boas submissões. Cristo é a total libertação. Por isso, ainda hoje, ou se vive um cristianismo totalmente adulterado do qual o Cristo só há o nome, ou, se quisermos viver verdadeiramente como cristãos, deveremos ser revolucionários. Os paliativos não bastam; historicamente só fizeram por manchar os altos ideais de Jesus.

            Este Cristianismo libertador é imperativo de nossos tempos, e de todos os tempos. Justamente por ser de todos os tempos não é uma fórmula genérica. É na práxis, é na faina histórica que ele se reveste de verdade e se realiza. Houve, certamente, naqueles primeiros cristãos – que rejeitaram o poder romano e que, irmanados na pobreza, louvaram seu Messias -, verdadeiro impulso cristão. Há, naqueles que se debruçam a estudar cientificamente o mundo de hoje para transformá-lo, tentado fazer da Terra a casa da justiça, grande impulso cristão. Como são diferentes, no entanto, estes tempos e estas atitudes! Nada disso deixa de ser, no entanto, impulso cristão. Por isso o Cristo não está na boca de quem diz segui-lo, está sim naqueles que estão amando e transformando o mundo na plenitude de seus sentimentos de amor á humanidade.

            Assim, rejeitemos o cristianismo sectário, aquele que fundou Igrejas em nome do Cristo. Ele nunca fundou nenhuma. Rejeitemos também aqueles que pensam que ser “religioso”. Cristo não era necessariamente um homem religioso, não tinha rótulos. Não era líder político contra Herodes ou Roma, porque não era este seu objetivo. Não propugnou outro modelo econômico, não pregou nova mora, não era reformador moram nem imoral nem amoral. Nada disso é o território estanque no qual se possa enquadra Jesus Cristo. Ele é tudo isso e é muito mais.

            Aqueles que vivem Cristo como um alienado religioso esquecem-se daquele que esbravejou contra os vendilhões do templo e que dizia que o samaritano era melhor que o sacerdote do Templo de Salomão. Aqueles que veem o Cristo como um exemplo conservador esquecem-se de que o Moisés da Lei de Talião é o exato oposto do revolucionário e altamente originário homem que mandou amar. Aqueles que construíram palácios de ouro para Jesus esqueceram-se que ele era a pureza do singelo. E os que abjuraram levianamente o cristianismo por causa do que feito pelos cristãos esqueceram-se de que os cristãos são dos mais altos inimigos do exemplo do Cristo, apenas usam indevidamente seu nome.

            Cristo é extremamente revolucionário, e é um homem de nosso tempo. Foi um homem do seu tempo, foi um homem de outros tempos e é um homem de todos os tempos. Isto porque seu impulso de amor é uma postura que implica em toda a nossa vida, em qualquer condição, para a transformação. Cristo, no fundo, é um sentido: o mais belo e justo sentido para nossas vidas.

            Quanto faltará ainda para a humanidade compreender este Cristo alegre, radiante, esperançoso, vigoroso e vital! Quanto ainda será preciso errar carregando o nome do Cristo para o moralismo, para a opressão, para o andor das verdades mais irracionais, para a castração. Cristo é o exato oposto do poder, do domínio, da subjugação, da desigualdade, da autoridade. Cristo é libertação.

            Este sentido cristão é o mais justo, urgente e necessário de nossos temos. Quando a alienação impera e reina; quando o mercado compra todas as almas com seus preços; quando a técnica produtiva extingue o tempo e o direito da reflexão; quando a crítica é dita improdutiva; quando a minoria é massacrada; quando os despossuídos são vencidos definitivos; quando a quem nada tem não é dado o direito de esperança; neste mundo entra Jesus Cristo.

            Por isso ele é um só impulso, uma perspectiva: a perspectiva de construção do amor universal. A família universal, a paz verdade e a libertação plena, estes são impulsos derivados do impulso do amor universal. Cristo não se aproveita para sabermos se ele respeitava o dia de sábado. Não se aproveita indagando a respeito do que ele diria sobre a transfusão de sangue, o transplante de órgãos, o clone de embriões, a circuncisão. Cristo sim se aproveita para transformar o mundo e a vida. Quem viver este Cristianismo em si move montanhas e promove a instauração de um reino de amor universal.

                         (continua)

Fonte: Cristianismo Libertador, Alysson Mascaro, Editoria Comenius.

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