Pular para o conteúdo principal

MAIS ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A DESUMANIZAÇÃO NO MOVIMENTO ESPÍRITA

 

Não costumo dar sequência a artigos publicados no blog e muito menos em resposta aos comentários feitos. Mas a postagem da semana passada Desumanização no Movimento Espírita rendeu centenas de comentários e mais de 33 mil visualizações. Parece que mexemos numa ferida aberta e é preciso falar mais para pensarmos em soluções, remédios e melhoras.

Primeiro, a resposta aos que me criticaram por não ter ouvido o outro lado. Sou jornalista profissional e sei muito bem o que faço em termos de fontes. Chequei com várias pessoas (claro que não posso citar as fontes) e o ocorrido foi exatamente o que relatei, no caso da desencarnação de Claudio Arouca na Feesp.

Felizmente, a família se sentiu confortada com o meu artigo e com o apoio que recebeu de muita gente por causa dessa publicação. Então isso já basta.

O fato, porém, extremo e lamentável, serviu como um exemplo de uma tendência no movimento espírita em geral. Nossa crítica não é pessoal à Feesp, quisemos fazer uma reflexão mais ampla. Tanto é verdade que não foram poucas as mensagens e comentários que recebemos, contanto casos, apoiando a reflexão proposta e dizendo muitos que não frequentam mais centros espíritas (aliás nem pequenos, nem grandes), porque se depararam com autoritarismo, burocratização, descaso, luta por cargos, falta de acolhimento, exclusões, etc.

Cito esse caso abaixo, só para exemplificar:

“Em 1994, dezembro, estava com minha filha num hospital de SP. Ela havia feito uma cirurgia cardíaca e estava em coma. Depois da entrevista com médicos que a desenganaram, saí sem rumo; triste e sozinha. Havia levado o endereço de um centro espírita de uma médium famosa por seus romances. Entrei, sentei e comecei a chorar. Umas mulheres estavam arrumando o centro. Nem me olharam. Depois de um tempinho, sem se aproximarem, disseram o dia do passe. Enxuguei as lágrimas e fui embora. Precisava de apoio, aconchego, como sempre encontrei no centro que frequentava. As paredes do tal centro cobertas de reportagens de revistas com fotos da médium.”

Nessa mesma linha de denúncia, neste mês, o Jornal Crítica Espírita  publicou uma matéria de Franklin Felix, com muitos relatos de perseguição política e partidarização em centros espíritas.

Então, o que acontece? Vamos ficar calados, de braços cruzados, colocar panos quentes? Fingir que somos um movimento fraterno, amoroso e caridoso? É óbvio que há muita gente boa no movimento. Viajo Brasil afora e conheço instituições e pessoas que ainda guardam o espírito acolhedor e amoroso que faz parte da ética espírita-cristã. Mas ouço também inúmeros relatos de expulsões, discriminações, brigas internas…

Enfim… dirão: seres humanos são assim. É verdade. Mas seria de se supor que pessoas que adotam uma filosofia de vida como a espírita estivessem ensaiando um comportamento melhor.

Quero levantar aqui duas hipóteses explicativas para esse problema. Primeira, lembro do filósofo francês Henri Bergson, que escreveu uma obra-prima, sempre muito citada por Herculano Pires: As duas fontes da moral e da religião. Nesse livro, ele expõe uma tese de que movimentos religiosos e novas formas de moralidade, quando nascem, brotam da fonte espiritual legítima, com seus iniciadores, animados do élan evolutivo. Mas depois, com o tempo, se cristalizam, se institucionalizam e portanto, vão perdendo vida e impulso, vivência e amor.

Não foi o que aconteceu com o Cristianismo? Em seu livro História do Cristianismo, Paul Johnson tem a sua primeira parte intitulada: De mártires a Inquisidores. Impressionante relato de como aquele primeiro movimento lançado por Jesus, no seio de apóstolos (que aliás, já começaram a se desentender entre si – veja-se o conflito entre Paulo e Tiago), foi se tornando a Igreja poderosa e inquisitorial. Mas no seio dela, sempre ressurgiram aqueles que tentaram voltar à simplicidade e à fraternidade primitivas. Francisco de Assis, por exemplo, e tantos outros.

O próprio movimento da Reforma protestante se deu também na tentativa de voltar às bases do Evangelho. E novamente, houve um esfriamento, uma institucionalização. 150 anos depois da morte de Lutero, o movimento pietista, dentro do próprio protestantismo, tentava revigorar o espírito de simplicidade e acolhimento e recomendava o culto do Evangelho no lar, a reaproximação aos ensinos de Jesus… Pestalozzi teve essa influência.

Então, já dá para concluir que nós, espíritas, estamos no mesmo caminho: institucionalização (quando falo esse termo, estou me referindo à uma situação em que regras, burocracias, cargos, dinheiro, poder, valem mais do que o ser humano), perda de fraternidade real, esfriamento das relações humanas.

Por que acontece isso? Agora vamos à nossa segunda hipótese explicativa.

A adesão dos seres humanos à moral proposta pelas diversas tradições espirituais da humanidade se dá muitas vezes de maneira exterior. Adota-se uma postura artificial, de bondade, de fala mansa, de pseudocaridade, mas não houve de fato uma revolução interna profunda – coisa aliás que só se dá num processo de autoeducação e de terapia simultaneamente, com a coragem de nos olharmos como somos, nossas feridas, procurando curá-las, sem dissimulação. Esse fenômeno, Jesus já combateu: é o farisaísmo. A pessoa se traveste de santa, mas de santa não tem nada. E infelizmente ocorre entre católicos, budistas, protestantes, espíritas…

Um exemplo dessa atitude tive num comentário que recebemos em relação ao artigo sobre a desumanização. Não aprovei a mensagem no blog, porque achei profundamente ofensiva – mas é a ofensa de fala mansa, citando Chico Xavier, desqualificando-me como pessoa e não usando de argumentos contra meus argumentos e nem me agredindo abertamente, assumindo a própria raiva.

Sem citar o nome do autor, que aliás não conheço, veja-se o teor da mensagem:

Cristãos: meditemos sobre as três peneiras de Sócrates (Pessoas inteligentes falam sobre ideias; pessoas comuns falam sobre coisas; pessoas mesquinhas falam sobre pessoas). Ainda nesse sentido, e sem intenção de ofender ou debater sobre assunto, tampouco julgar quem quer que seja, estudemos a lição 74 do Livro Vinha de Luz, será de grande valia para o nosso aprimoramento.

A passagem de Emmanuel em questão, intitulada de Maus Obreiros, contém o seguinte trecho, referindo-se aos “maus obreiros”, portanto à autora do artigo:

Destacam os defeitos de todas as pessoas, exceto os que lhes são peculiares. Alinham frases brilhantes e complacentes, ensopando-as em óleo de perversidades ocultas. Semeiam a dúvida, a desconfiança e o dissídio, quando percebem que o êxito vem próximo. Espalham suspeitas e calúnias, entre os que organizam e os que executam. Fazem-se advogados para serem acusadores. Vestem-se à maneira de ovelhas, dissimulando as feições de lobos. Costumam lamentar-se por vitimas para serem verdugos mais completos.“Guardai-vos dos maus obreiros.”

E o autor de tal pérola se despede fraternalmente. Mandou depois diversas mensagens, indagando por que não publiquei o comentário dele.

Eis aí o protótipo do farisaísmo: ofende com palavras do Evangelho, coloca-se numa posição de falsa superioridade, porque adota um palavreado bonito, extraído de obras respeitáveis, mas na verdade não está discutindo as ideias que coloquei no texto, não tem contra-argumentos, apenas está na posição de um mestre advertindo uma “má obreira”. Infelizmente, é desse tipo de espíritas que o movimento está cheio.

Se alguém discorda, é fraternalmente enviado para a desobsessão; se alguém migra de um centro para outro, de uma cidade para outra, de um Estado para outro, é obrigado fraternalmente a recomeçar o Espiritismo do zero, porque não se aceita o que a pessoa traz de bagagem de aprendizado e de anos de serviço prestado; se alguém se opõe a alguma regra ou conduta (muitas vezes com razão e mesmo que não fosse com razão) é convidado fraternalmente a sair do grupo…

Quando se limita o debate, quando não se sabe discutir ideias, porque só há melindres e vaidades, estamos entrando no campo do farisaísmo, da falta de autocrítica, da cristalização, que leva à intolerância e que mais dia menos dia nos pode levar a atitudes inquisitoriais.

Quais os caminhos para remediar essa situação:

·      Façamos grupos pequenos, em casa ou no centro, com pessoas reconhecidamente afins, sinceramente interessadas em estudar, praticar a mediunidade e devotar-se ao bem;

·         Estudemos Kardec em profundidade;

·         Desierarquizemos as relações: todos devem ser ouvidos, as lideranças devem deixar de lado vaidades e vontade de poder (para isso uma boa terapia ajuda);


  •      Façamos todos uma autoanálise diária, constante, de nossas atitudes e sentimentos (sobretudo de sentimentos, porque deve haver uma coerência entre eles e nossas ações
  •      Não forcemos a barra de uma santidade prematura, somos pessoas normais, em aprendizado constante;
  • ·         Não idolatremos ninguém e nem nos deixemos idolatrar; sejamos enérgicos quanto a isso;
  • ·         Não tenhamos mestres no espiritismo, somos todos aprendizes;
  • ·         E se participamos de alguma instituição já rendida a essas práticas burocráticas e desumanizadas, com lideranças inquestionáveis, se depois de tentarmos melhorar as coisas, nos sintamos ainda incomodados ou indignados, retiremo-nos sem medo, fundemos outras casas ou façamos o espiritismo doméstico – mas não deixemos nunca essa doutrina libertadora, por causa daqueles que não se libertaram a si mesmos!

Comentários

  1. Caminho traçado, momento de seguir as orientações e reumanizar o movimento espírita.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

A CULPA É DA JUVENTUDE?

    Por Ana Cláudia Laurindo Para os jovens deste tempo as expectativas de sucesso individual são consideradas remotas, mas não são para todos os jovens. A camada privilegiada segue assessorada por benefícios familiares, de nome, de casta, de herança política mantenedora de antigos ricos e geradora de novos ricos, no Brasil.

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O MOVIMENTO ESPÍRITA MUNDIAL É HOJE MAIS AMPLO E COMPLEXO, MAS NÃO É UM MUNDO CAÓTICO DE UMA DOUTRINA DESPEDAÇADA*

    Por Wilson Garcia Vivemos, sem dúvida, a fase do aperfeiçoamento do Espiritismo. Após sua aurora no século XIX e do esforço de sistematização realizado por Allan Kardec, coube às gerações seguintes não apenas preservar a herança recebida, mas também ampliá-la, revendo equívocos e incorporando novos horizontes de reflexão. Nosso tempo é marcado pela aceleração do conhecimento humano e pela expansão dos meios de comunicação. Nesse cenário, o Espiritismo encontra uma dupla tarefa: de um lado, retornar às fontes genuínas do pensamento kardequiano, revendo interpretações imprecisas e sedimentações religiosas que se afastaram de seu caráter filosófico-científico; de outro, abrir-se à interlocução com as descobertas contemporâneas da ciência e com os debates atuais da filosofia e da espiritualidade, como o fez com as fontes que geraram as obras clássicas do espiritismo, no pós-Kardec.

AMOR DE MÃE

O sentimento de amor mais refinado que nos envolve, massageia nosso coração com sensações sublimadas, sem qualquer interferência sediciosa ou de caráter mundano, é aquele experimentado do filho para mãe ou da mãe para o filho, não há do que duvidar, o passar do tempo revela essa verdade cada vez mais com transparência e comprovação sentimental. No esposo amoroso, à medida que cuidados esponsais são recebidos, amor materno é convocado, no idoso em final da trajetória terrena o fenômeno é relevante, como septuagenário percebo com clareza essa realidade, mormente em estados de convalescenças prolongadas,   meu pai, já próximo da partida à pátria espiritual, tratado por minha mãe com paciência imperturbável, sensibilizado, agradecia identificando-a como sua mãezinha e assim a tratava no relacionamento diário, via nela a presença de quem outrora recebeu carinhos protetores que lhe rejubilavam a casa ...

PRÓXIMOS E DISTANTES

  Por Marcelo Henrique     Pense no trabalho que você realiza na Instituição Espírita com a qual mantém laços de afinidade. Recorde todos aqueles momentos em que, desinteressadamente, você deixou seus afazeres particulares, para realizar algo em prol dos outros – e, consequentemente, para si mesmo. Compute todas aquelas horas que você privou seus familiares e amigos mais diletos da convivência com você, por causa desta ou daquela atividade no Centro. Ainda assim, rememore quantas vezes você deixou seu bairro, sua cidade, e até seu estado ou país, para realizar alguma atividade espírita, a bem do ideal que abraçaste... Pois bem, foram vários os momentos de serviço, na messe do Senhor, não é mesmo? Quanta alegria experimentada, quanta gente nova que você conheceu, quantos “amigos” você cativou, não é assim?

ÚLTIMAS INSTRUÇÕES DE ALLAN KARDEC AOS ESPÍRITAS(*)

“Caro e venerado   Mestre, estais aqui presente, conquanto invisível para nós. Desde a vossa partida tendes sido para todos um protetor a mais, uma luz segura, e as falanges do espaço foram acrescidas de um trabalhador infatigável.” (Trecho do discurso de abertura da Sessão Anual Comemorativa aos Mortos de novembro 1869 – Revista Espírita – dez/1869)   Por Jorge Luiz   O discurso de Allan Kardec, proferido na sessão anual da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas - SPEE, comemorativa aos mortos, em 1º de novembro de 1868, "O Espiritismo é uma Religião?" (leia aqui) - Revista Espírita, novembro de 1868 - contêm 3.881 palavras. Nele, Kardec discorre sobre a comunhão de pensamentos, as dimensões da caridade, o verdadeiro sentido de religião e sobre a crença espírita. Foi seu último discurso, pois cinco meses depois ocorre a sua desencarnação. Soa, portanto, como as últimas instruções aos espíritas, da mesma forma que Jesus as realizou aos...

DEMOCRACIA SEM ORIENTAÇÃO CRISTÃ?

  Por Orson P. Carrara Afirma o nobre Emmanuel em seu livro Sentinelas da luz (psicografia de Chico Xavier e edição conjunta CEU/ FEB), no capítulo 8 – Nas convulsões do século XX, que democracia sem orientação cristã não pode conduzir-nos à concórdia desejada. Grifos são meus, face à atualidade da afirmação. Há que se ressaltar que o livro tem Prefácio de 1990, poucas décadas após a Segunda Guerra e, como pode identificar o leitor, refere-se ao século passado, mas a atualidade do texto impressiona, face a uma realidade que se repete. O livro reúne uma seleção de mensagens, a maioria de Emmanuel.

JESUS E A QUESTÃO SOCIAL

              Por Jorge Luiz                       A Pobreza como Questão Social Para Hanna Arendt, filósofa alemã, uma das mais influentes do século XXI, aquilo que se convencionou chamar no século XVII de questão social, é um eufemismo para aquilo que seria mais fácil e compreensível se denominar de pobreza. A pobreza, para ela, é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação (Arendt, 1963).              A pobreza é uma das principais contradições do capitalismo e tem a sua origem na exploração do trabalho e na acumulação do capital.