Pular para o conteúdo principal

DOUTORES? AH, SIM! OS DOUTORES!…..

 


Sentimo-nos constrangidos quando empregamos o vocábulo “doutor” antes do nome de um médico ou de um advogado, mormente ser for um espírita. Ajuizamos que o termo “doutor” é uma erva daninha inflexível que reflete muito sobre um Brasil tupiniquim. Nossa rejeição ao extemporâneo “doutor” é um ato consciente. Dia virá (queira Deus, o quanto antes!) em que os filólogos e bons dicionaristas definirão a palavra “doutor” como “um arcaísmo usado no passado pelos subordinados (pobres) para acercar-se dos mais presunçosos (ricos), a fim de limitar a dominação especialmente de médicos e advogados, entretanto, com a abolição da desigualdade socioeconômica e a conquista dos direitos de cidadania, essa definição desmoronou em desuso”.

A tradição impôs o termo “doutor” em nossa sociedade como uma maneira de abordar os superiores na divisão socioeconômica. O “doutor” não se instituiu em nosso idioma como uma expressão inocente, porém como um abismo, ao propagar na linguagem uma diferença vivida na realidade do dia-a-dia que deveria ter nos envergonhado desde o século XIX.

Os causídicos de plantão defendem o “Dr.” porque estaria numa licença régia no qual D. Maria, de Portugal, avaliada como “a louca”, teria concedido o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o “Dr.” teria sido garantido aos bacharéis de Direito por um decreto de D.Pedro I, ao instituir os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. Ora, supostamente o decreto imperial não foi “derrogado”, assim, ser “doutor” seria parte do “direito” dos advogados (pasmem, mesmo com a inauguração da República!).

Ah! No Brasil se dá um jeitinho em tudo e o título de “Dr.” foi “espontaneamente” esticado para os médicos em décadas posteriores (acreditem!). No caso dos médicos, a contemporaneidade e a insistência do título de “doutor” devem ser abrangidas no contexto de uma sociedade enfermada, na qual as pessoas se decidem em grande monta por seu check-up ou por suas patologias. De ordinário, o “doutor” médico e o “doutor” advogado (promotor, procurador, delegado) têm algo em comum: o império sobre os indivíduos. Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os outros.

Etimologicamente, o vocábulo “doctor” procede do verbo latino “docere” (“ensinar”). Significa, pois, “mestre”, “preceptor”, “o que ensina”. Da mesma família é a palavra “douto” que significa “instruído”, “sábio”.(1) Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados estimula e até exige o título no dia a dia, mesmo que não sejam doutores.

DOUTORES (com maiúsculas) somente são os que tenham defendido uma tese diante de uma banca de notáveis. E diga-se que os autênticos DOUTORES (com maiúsculas) em geral, quase sempre nenhum deles é chamado de Doutor na vida cotidiana, seja na sala de aula, seja na rua.

Por essas razões, não podemos concordar com líderes espíritas que fazem questão de manter em seus nomes a sigla “doutor” e se vangloriam desse pronome de tratamento (2) nos eventos de que participam em nome do Cristo. Como dissemos acima, o emprego ultrapassado de “doutor” é comum entre os pobres, os sem instrução que associam a palavra a um status social ou a um nível de autoridade superior ao seu. Estratificações sociais que não se coadunam com o Evangelho.

Enquanto houver líderes espíritas que não se reconheçam como indivíduos comuns e acreditem merecer o tratamento cerimonioso, submetido às formalidades dos protocolos sociais, com cuidadosa discriminação em vários graus de adequação e propriedade, indiscutivelmente refletirá a prova de seu “potencial doutrinário” e “superioridade moral”, incentivando comportamentos distorcidos das propostas cristãs.

É bastante conhecida a influência que os endinheirados desempenham nos diferentes domínios da sociedade, e também no movimento espírita. Fragmentos dos poderosos acabaram assumindo postos de autoridade nas federações e centros espíritas. E como idolatram os prestígios sociais, os títulos e o assentar-se nos principais espaços dos eventos o desfile do inchaço da vaidade passa a ser apenas um espelho adequado desse antiespiritismo bem em voga dos dias de hoje, onde a barganha pública de “meiguices” é tão somente o verniz da moléstia moral dos que detêm as rédeas do movimento espírita.

Os expositores-“doutores” não deveriam olvidar que Chico Xavier, Ivone Pereira, Zilda Gama, Frederico Junior, tanto quanto no passado Léon Denis, não poderiam participar desses congressos pagos conduzidos pela importância dos títulos acadêmicos, sob pena de se perceberem desambientados e constrangidos, por nunca terem possuído uma titulação conferida pelas universidades do mundo. Isso para não citar o próprio Cristo, que não passou da condição de modesto carpinteiro.

Por mais respeitáveis os títulos acadêmicos que detenhamos, não hesitemos em nos confundir na multidão para aprender a viver, com ela, a grande mensagem. Não é admissível prosseguirmos escutando expositores espíritas, aplaudidos pelo tratamento de doutores, realizarem preleções jactanciosas de prosperidade enquanto a humanidade estertora na penúria da ignorância das letras.

 

Referencias bibliográficas:

(1)           Nos países de língua inglesa, os médicos são chamados de “doctor”. Quando escrevem artigos, ou em seus jalecos, no entanto, não empregam o termo, mas apenas o próprio nome, acompanhado da abreviatura M.D. (medical degree), isto é, “formado em Medicina”, “médico”.

(2)           O “Aurélio” define os pronomes de tratamento como “palavra ou locução que funciona tal como os pronomes pessoais”. Os gramáticos, por sua vez, ensinam que esses pronomes são da terceira pessoa, substituindo o “tu” da segundo pessoa


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

SOCIALISMO E ESPIRITISMO: Uma revista espírita

“O homem é livre na medida em que coloca seus atos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se nas mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista.” ( Arthur Conan Doyle) Allan Kardec ao elaborar os princípios da unidade tinha em mente que os espíritas fossem capazes de tecer uma teia social espírita , de base morfológica e que daria suporte doutrinário para as Instituições operarem as transformações necessárias ao homem. A unidade de princípios calcada na filosofia social espírita daria a liga necessária à elasticidade e resistência aos laços que devem unir os espíritas no seio dos ideais do socialismo-cristão. A opção por um “espiritismo religioso” fundado pelo roustainguismo de Bezerra Menezes, através da Federação Espírita Brasileira, e do ranço católico de Luiz de Olympio Telles de Menezes, na Bahia, sufocou no Brasil o vetor socialista-cristão da Doutrina Espírita. Telles, ao ...

TRAPALHADAS "ESPÍRITAS" - ROLAM AS PEDRAS

  Por Marcelo Teixeira Pensei muito antes de escrever as linhas a seguir. Fiquei com receio de ser levado à conta de um arrogante fazendo troça da fé alheia. Minha intenção não é essa. Muito do que vou narrar neste e nos próximos episódios talvez soe engraçado. Meu objetivo, no entanto, é chamar atenção para a necessidade de estudarmos Kardec. Alguns locais e situações que citarei não se dizem espíritas, mas espiritualistas ou ecléticos. Por isso, é importante que eu diga que também não estou dizendo que eles estão errados e que o movimento espírita, do qual faço parte, é que está certo. Seria muita presunção de minha parte. Mesmo porque, pelo que me foi passado, todos primam pela boa intenção. E isso é o que vale.

ESPIRITISMO E POLÍTICA¹

  Coragem, coragem Se o que você quer é aquilo que pensa e faz Coragem, coragem Eu sei que você pode mais (Por quem os sinos dobram. Raul Seixas)                  A leitura superficial de uma obra tão vasta e densa como é a obra espírita, deixada por Allan Kardec, resulta, muitas vezes, em interpretações limitadas ou, até mesmo, equivocadas. É por isso que inicio fazendo um chamado, a todos os presentes, para que se debrucem sobre as obras que fundamentam a Doutrina Espírita, através de um estudo contínuo e sincero.

O ESPIRITISMO É PROGRESSISTA

  “O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõe todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem - a mão para marchar, na mesma rota ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.”   Revista Espírita – junho de 1868, (Kardec, 2018), p.174   Viver o Espiritismo sem uma perspectiva social, seria desprezar aquilo que de mais rico e produtivo por ele nos é ofertado. As relações que a Doutrina Espírita estabelece com as questões sociais e as ciências humanas, nos faculta, nos muni de conhecimentos, condições e recursos para atravessarmos as nossas encarnações como Espíritos mais atuantes com o mundo social ao qual fazemos parte.

A HISTÓRIA DA ÁRVORE GENEROSA

                                                    Para os que acham a árvore masoquista Ontem, em nossa oficina de educação para a vida e para a morte, com o tema A Criança diante da Morte, com Franklin Santana Santos e eu, no Espaço Pampédia, houve uma discussão fecunda sobre um livro famoso e belo: A Árvore Generosa, de Shel Silverstein (Editora Cosac Naify). Bons livros infantis são assim: têm múltiplos alcances, significados, atingem de 8 a 80 anos, porque falam de coisas essenciais e profundas. Houve intensa discordância quanto à mensagem dessa história, sobre a qual já queria escrever há muito. Para situar o leitor que não leu (mas recomendo ler), repasso aqui a sinopse do livro: “’...

DEUS¹

  No átimo do segundo em que Deus se revela, o coração escorrega no compasso saltando um tom acima de seu ritmo. Emociona-se o ser humano ao se saber seguro por Aquele que é maior e mais pleno. Entoa, então, um cântico de louvor e a oração musicada faz tremer a alma do crente que, sem muito esforço, sente Deus em si.

É HORA DE ESPERANÇARMOS!

    Pé de mamão rompe concreto e brota em paredão de viaduto no DF (fonte g1)   Por Alexandre Júnior Precisamos realmente compreender o que significa este momento e o quanto é importante refletirmos sobre o resultado das urnas. Não é momento de desespero e sim de validarmos o esperançar! A História do Brasil é feita de invasão, colonização, escravização, exploração e morte. Seria ingenuidade nossa imaginarmos que este tipo de política não exerce influência na formação do nosso povo.