Pular para o conteúdo principal

A DEFESA DO FETO E SUAS SUBJETIVIDADES


Em todos os episódios que a sociedade se posiciona em defesa do feto, mesmo entre os espíritas, fica um vazio ainda não preenchido pelos defensores da vida. E esse vazio só será realmente preenchido após a resposta à seguinte pergunta: a vida se resume só ao feto?

Allan Kardec faz um convite vibrante para os espíritas acerca desse assunto, quando ele se refere ao conceito espírita de educação, na questão n° 625, de “O Livro dos Espíritos”. É um chamado viril ao ativismo espírita:

 

“Quando se pensa na massa de indivíduos diariamente lançados na corrente da população, sem princípios, sem freios, entregues aos próprios instintos, deve-se admirar das consequências desastrosas desse fato?”

 

            O grande mestre Jean Henrich Pestalozzi mostra de onde Allan Kardec se inspirou, via o homem como essência divina assim se reportar:

 

“O homem é por natureza, se abandonado a si mesmo, selvagem, ocioso, ignorante e ambicioso sem limites. (...) Este é o homem; se deixado a si mesmo, cresce selvagemente: ele rouba como come e mata como dorme. O direito de sua natureza é a sua necessidade, a base de sua justiça é o prazer, os limites de suas exigências são sua ociosidade e a impossibilidade de conseguir mais.”

 

            Essas duas considerações emitem um verdadeiro enunciado social para se construir uma agenda pedagógica na busca do homem novo.

       Discorrer, portanto, sobre o abortamento na visão espírita é demasiadamente desnecessário ante a clareza com que os Espíritos e Allan Kardec fazem em todo o corpo doutrinário e obras acessórias, além de autores encarnados.

            As citações de Pestalozzi e Kardec postulam a necessidade de sociedade e famílias funcionais, que o indivíduo tenha, no mínimo, direito à moradia, saúde, trabalho, educação e segurança. Em não dispondo desses recursos, fica comprometida a finalidade da encarnação, conforme dizem os Reveladores Celestes, que é se aperfeiçoar e enfrentar a sua parte na obra da encarnação. A família espírita é um grupo de espíritos normalmente necessitados, desajustados, em compromisso inadiável para a reparação, graças à contingência reencarnatória. Entende-se, dessa forma, que o planejamento reencarnatório tem necessidades básicas negadas aos Espíritos. Vê-se que as desigualdades sociais são enfermidades do organismo social. A vida, portanto, se desdobra em processos de aperfeiçoamentos que visam, conforme preceitua Kardec, na educação que consiste na arte de formar caracteres, porque a educação é conjunto de hábitos adquiridos.

            A bandeira do ativismo espírita deve ser sim contra o abortamento, mas, acima de tudo, em defesa pela Vida. E a vida contempla muitas narrativas sociais e econômicas que influenciam nas diversas matizes do abortamento.

            A pandemia da Covid-19 aprofundou a crise do capitalismo e expôs o flagelo do desemprego, as habitações precárias para suportar quarentenas, a precariedade dos transportes públicos propiciando as contaminações e a fragilidade do sistema de saúde, teoricamente bem organizado, mas vem sendo submetido a um desmonte desde o golpe patrocinado pela burguesia nacional em 2016. A crise, portanto, não é da Covid, mas sim de um modo de produção, o capitalismo. Aqui fica patente que o capitalismo não pode resolver as questões da saúde coletiva, do assalariado ou da habitação. São essas variáveis que devem constar na agenda do ativismo espírita. Todas as mazelas sociais e morais do Brasil, e aí se inclui o abortamento, são gestadas por esse sistema de produção. Um sistema que começa com a colonização, escravidão, caças às bruxas (mulheres), desde o seu início até aos nossos dias. Atribuir a responsabilidade exclusivamente à mulher, e até mesmo em crianças como tempos visto, é de uma hipocrisia sem tamanho.

            Vê-se, pois, que em decorrência disso, a defesa do feto passa por uma análise de diversas subjetividades que vão desde a situação de gênero, até nas questões que envolvem o “abortamento masculino” (abandono paterno), “abortamento social” (questões financeiras).

            O jurista, escritor espírita e filósofo do direito marxista brasileiro Alyssom Mascaro, em sua obra “Crise e Golpe”, atesta que sem a participação popular, a atual crise alcançará um grau de flagelo social altíssimo, e que certamente se recomporá com uma ainda maior dominância neoliberal, e que ao invés de freá-lo, permitirá o seu avanço ainda mais imunizado. A crise é estado normal do sistema capitalista. No capitalismo, a crise é a solução da crise. E Mascaro atesta:

 

“Se se olha para muitas décadas para trás, nunca houve, como agora, tanta possibilidade de desfraldar a unificação de sentido das massas trabalhadoras e desprovidas de capital do mundo em favor do socialismo. É chegado o momento da tentativa não só de reagir ao capital com remendos ou com clamores de misericórdia. Crise econômica e alteração brusca de subjetividades.”

 

            O movimento disruptivo no contexto espírita, que vem se autodenominando “espíritas progressistas”, é um bom sinal dentro desse combalido movimento espírita. As discussões que vêm se ampliando em lives já mostram um direcionamento para a evolução dessas pautas e não há outra alternativa senão essa via.

            Portanto, essas e outras subjetividades do sistema de governança no seio do movimento espírita podem e devem ser elencadas para a superação dessa anemia de ações. Como afirma o evangelista Mateus, “ninguém põe remendo de pano novo em roupa velha, pois o remendo forçará a roupa, tornando pior o rasgo.”. Os espíritas também podem e devem, pois dispõem de elementos doutrinários para isso, além de buscarem novas subjetividades pós-pandemia.

 

Referências:

INCONTRI. Dora. Pestalozzi - educação e ética. São Paulo: Scipione, 1996.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.

MASCARO, Alyssom. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2020.

 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

ESPÍRITAS: PENSAR? PRA QUÊ?

           Por Marcelo Henrique O que o movimento espírita precisa, urgentemente, constatar e vivenciar é a diversidade de pensamento, a pluralidade de opiniões e a alteridade na convivência entre os que pensam – ainda que em pequenos pontos – diferentemente. Não há uma única “forma” de pensar espírita, tampouco uma única maneira de “ver e entender” o Espiritismo. *** Você pensa? A pergunta pode soar curiosa e provocar certa repulsa, de início. Afinal, nosso cérebro trabalha o tempo todo, envolto das pequenas às grandes realizações do dia a dia. Mesmo nas questões mais rotineiras, como cuidar da higiene pessoal, alimentar-se, percorrer o caminho da casa para o trabalho e vice-versa, dizemos que nossa inteligência se manifesta, pois a máquina cerebral está em constante atividade. E, ao que parece, quando surgem situações imprevistas ou adversas, é justamente neste momento em que os nossos neurônios são fortemente provocados e a nossa bagagem espiri...

POR QUE SOMOS CEGOS DIANTE DO ÓBVIO?

  Por Maurício Zanolini Em 2008, a crise financeira causada pelo descontrole do mercado imobiliário, especialmente nos Estados Unidos (mas com papéis espalhados pelo mundo todo), não foi prevista pelos analistas do Banco Central Norte Americano (Federal Reserve). Alan Greenspan, o então presidente da instituição, veio a público depois da desastrosa quebra do mercado financeiro, e declarou que ninguém poderia ter previsto aquela crise, que era inimaginável que algo assim aconteceria, uma total surpresa. O que ninguém lembra é que entre 2004 e 2007 o valor dos imóveis nos EUA mais que dobraram e que vários analistas viam nisso uma bolha. Mas se os indícios do problema eram claros, por que todos os avisos foram ignorados?

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

PROGRESSO - LEI FATAL DO UNIVERSO

    Por Doris Gandres Atualmente, caminhamos todos como que receosos, vacilantes, temendo que o próximo passo nos precipite, como indivíduos e como nação, num precipício escuro e profundo, de onde teremos imensa dificuldade de sair, como tantas vezes já aconteceu no decorrer da história da humanidade... A cada conversação, ou se percebe o medo ou a revolta. E ambos são fortes condutores à rebeldia, a reações impulsivas e intempestivas, em muitas ocasiões e em muitos aspectos, em geral, desastrosas...

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...