Pular para o conteúdo principal

CARTAS SOBRE NÃO VIOLÊNCIA (2)


Continuamos aqui as reflexões sobre a não violência, iniciadas na semana passada. Retomando a partir de Jesus, já que é a referência principal dos cristãos, que supostamente são a maioria em nossa sociedade, em suas diversas denominações. Em nome de Jesus, tanta violência já foi cometida e continua sendo propagada e aplicada, que parece importante decifrar sua mensagem.

Os cristãos, em sua maioria, não aceitaram a não violência de seu mestre. Desde os primeiros séculos, promoveram perseguições entre eles mesmos, sem mencionar a virulência contra os pagãos e os judeus, assim que conseguiram se estabelecer como religião aceita no decadente Império Romano. Divergências teológicas provocavam brigas armadas; catequese à força implicava e implica ainda em destruição de outras formas de crença (dos pagãos dos anos 400 às crenças indígenas e afro-brasileiras da atualidade); conluio indecente entre poder religioso e poder do Estado – desde Constantino ao nosso (des)governo atual. Muito ilustrativo é o filme Ágora (ou Alexandria), em que se narra a história de Hipátia, uma filósofa e matemática, que foi trucidada por cristãos, no ano de 415. Apesar de algumas imprecisões históricas, o filme reflete bem o clima da época.


Ora, os cristãos nunca levaram a sério a mensagem de amor, perdão, fraternidade e paz propagada pelo Mestre que dizem seguir.

Por isso, o modo não violento de agir nunca foi experimentado no mundo, e isso inclui Ocidente e Oriente (e me parece que no caso no Oriente, Buda também tinha uma postura de não violência, pela sua ênfase na compaixão). Todos os governos, todas as empreitadas, todas as resoluções de conflito e toda a estrutura social (seja escravagista, feudal ou capitalista), sempre se deram na base na violência, do morticínio, da opressão, diga-se de passagem, no enquadramento do patriarcado. Esse mundo violento e opressor que conhecemos é um mundo governado pelos homens, que já se constituíram desde a pré-história, como guerreiros. Raras sociedades tiveram mulheres guerreiras.

É factível pensarmos em mudar isso? Será ingenuidade querer transformar a espécie humana, gerada na luta pela sobrevivência, segundo a visão de Darwin, e mantida historicamente na luta de classes, segundo a perspectiva de Marx, carregando sempre no inconsciente, um impulso cego de destruição, segundo a visão de Freud?

Desejamos que sim, esperamos que sim, acreditamos que sim. É possível, necessário, urgente… mudarmos o padrão de comportamento violento, que começa nas microestruturas familiares e escolares e se estende aos impérios e às nações…

Se alguns seres humanos se propuseram e conseguiram agir nesse sentido, todos podemos, se acreditarmos nesse caminho e trabalharmos por ele. Claro que o pressuposto de uma natureza humana que contém uma centelha divina, um potencial crístico ou búdico, ajuda a nos enxergar esse possível caminho.

Então, é preciso combater a injustiça, a exploração, a fome, as estruturas de poder, mas superando igualmente em cada um de nós a fonte de agressividade, ganância e sadismo. Se combatemos todas as estruturas injustas com mais violência e ódio, alimentamos em nós os mesmos impulsos que as geraram em primeiro lugar. Não existe a dimensão social sem a dimensão psíquica e vice-versa. Um grande autor como Erich Fromm, que fez um diálogo construtivo entre marxismo e psicanálise, demonstra bem esse ponto, ao analisar as origens do nazismo em seu brilhante livro O Medo à Liberdade.

Para combater um fascista não posso agir como ele, senão me torno igual a ele. Não podemos ser moles, permissivos, indiferentes, coniventes, medrosos. Temos que manter a coragem, a dignidade, a firmeza, a resistência, a desobediência, mas não podemos nos deixar tomar pelo ódio, pelo desejo de extermínio, pois estaremos coisificando o outro, tanto quanto ele nos está coisificando. Ao invés de nos deixarmos tomar pela sombra do ódio, temos que acender uma luz interna, que poderá um dia iluminar também o outro. Para mim, espírita, esse dia pode ser agora ou em próximas vidas.

Pode-se alegar então: devemos entregar o pescoço para o inimigo? Não. Toda defesa é necessária. Mas na luta armada, não se pode também morrer? Então, melhor a morte do martírio, que fecunda um mundo novo, do que a morte levando outros junto, que perpetua a guerra e a violência, num ciclo sem fim.

Para o pensamento masculino, patriarcal, aquele que se constitui na violência de ser macho predador, essas ideias são ingênuas, fracas, indignas. Passados dois mil anos da mensagem de Jesus e mais de dois mil anos da mensagem de Buda, ainda ocidentais e orientais consideram que perdoar é desonra, é humilhação e falta de dignidade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

A PIOR PROVA: RIQUEZA OU POBREZA?

  Por Ana Cláudia Laurindo Será a riqueza uma prova terrível? A maioria dos espíritas responderá que sim e ainda encontrará no Evangelho Segundo o Espiritismo a sustentação necessária para esta afirmação. Eis a necessidade de evoluir pensamentos e reflexões.

O CORDEIRO SILENCIADO: AS TEOLOGIAS QUE ABENÇOARAM O MASSACRE DO ALEMÃO.

  Imagem capa da obra Fe e Fuzíl de Bruno Manso   Por Jorge Luiz O Choque da Contradição As comunidades do Complexo do Alemão e Penha, no Estado do Rio de Janeiro, presenciaram uma megaoperação, como define o Governador Cláudio Castro, iniciada na madrugada de 28/10, contra o Comando Vermelho. A ação, que contou com 2.500 homens da polícia militar e civil, culminou com 117 mortos, considerados suspeitos, e 4 policiais. Na manhã seguinte, 29/10, os moradores adentraram a zona de mata e começaram a recolher os corpos abandonados pelas polícias, reunindo-os na Praça São Lucas, na Penha, no centro da comunidade. Cenas dantescas se seguiram, com relatos de corpos sem cabeça e desfigurados.

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

ESPÍRITISMO E CRISTIANISMO (*)

    Por Américo Nunes Domingos Filho De vez em quando, surgem algumas publicações sem entendimento com a codificação espírita, clamando que a Doutrina Espírita nada tem a ver com o Cristianismo. Quando esse pensamento emerge de grupos religiosos dogmáticos e intolerantes, até entendemos; contudo, chama mais a atenção quando a fonte original se intitula espiritista. Interessante afirmar, principalmente, para os versados nos textos de “O Novo Testamento” que o Cristo não faz acepção de pessoas, não lhe importando o movimento religioso que o segue, mas, sim, o fato de que onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome ele estará no meio deles (Mateus XVIII:20). Portanto, o que caracteriza ser cristão é o lance de alguém estar junto de outrem, todos sintonizados com Jesus e, principalmente, praticando seus ensinamentos. A caridade legítima foi exemplificada pelo Cristo, fazendo do amor ao semelhante um impositivo maior para que a centelha divina em nós, o chamado “Reino de...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

O DISFARCE NO SAGRADO: QUANDO A PRUDÊNCIA VIRA CONTRADIÇÃO ESPIRITUAL

    Por Wilson Garcia O ser humano passa boa parte da vida ocultando partes de si, retraindo suas crenças, controlando gestos e palavras para garantir certa harmonia nos ambientes em que transita. É um disfarce silencioso, muitas vezes inconsciente, movido pela necessidade de aceitação e pertencimento. Desde cedo, aprende-se que mostrar o que se pensa pode gerar conflito, e que a conveniência protege. Assim, as convicções se tornam subterrâneas — não desaparecem, mas se acomodam em zonas de sombra.   A psicologia existencial reconhece nesse movimento um traço universal da condição humana. Jean-Paul Sartre chamou de má-fé essa tentativa de viver sem confrontar a própria verdade, de representar papéis sociais para evitar o desconforto da liberdade (SARTRE, 2007). O indivíduo sabe que mente para si mesmo, mas finge não saber; e, nessa duplicidade, constrói uma persona funcional, embora distante da autenticidade. Carl Gustav Jung, por outro lado, observou que essa “másc...