Pular para o conteúdo principal

O CRISTO DO ISLù



Por Dora Incontri (*)



O livro O Jesus Muçulmano, recentemente lançado pela Imago, organizado, editado e compilado por Tarif Khalidi, respeitada autoridade em Islamismo, é instigante e fecundo para reflexões históricas e atuais.
Quando o profeta Maomé proclamou sua mensagem aos povos do Oriente médio, o Cristianismo já era uma tradição de 600 anos. Mas, conta Paul Johnson que muitos dos que se converteram à nova doutrina foram recrutados entre cristãos não-ortodoxos daquelas paragens orientais, que jamais puderam aceitar os rumos da Igreja Romana. (JOHNSON, 2001)
Sabe-se que durante os primeiros séculos de Cristianismo, as interpretações a respeito da figura de Jesus eram várias, tendo demorado muito tempo e custado muitas lutas (e violentas) para que o que é hoje reconhecido como ortodoxia se impor às demais interpretações, acabando por suprimi-las todas.

Eusébio de Cesaréia, em sua História Eclesiástica, escrita em torno de 325, menciona mais de 20 posições diversas dos primeiros três séculos, posições que foram chamadas de heréticas, em confronto com a que prevaleceu na Igreja, aliás selada que foi esta pela autoridade de Constantino, o Imperador que fez do Cristianismo a religião oficial do Estado Romano. Foi Constantino que incumbiu Eusébio de fazer a narração desta primeira história do Cristianismo, coroando-a com a sua imperial adesão a Cristo. “A ortodoxia era apenas uma das várias formas de cristianismo, durante o século III, e pode só ter se tornado dominante no tempo de Eusébio.” (JOHNSON, 2001: 69)
Entre os muitos motivos de polêmica, estava a questão da humanidade e/ou divindade de Jesus e, portanto, aquilo que viria a se tornar o dogma da Santíssima Trindade. Nesse campo, houve desde os que consideravam, como os docetistas, Jesus um puro espírito, andando sobre a Terra, sem encarnar-se num corpo como o nosso, negando assim que ele fosse um homem comum e tivesse sofrido as dores da cruz, aos que aceitavam, como os arianos, apenas o seu aspecto humano, recusando que ele fosse a encarnação do Deus único, que os judeus já adoravam.
A vitória coube à posição intermediária, aquela que concebia Jesus como homem e como Deus, envolvendo-o no mistério da Trindade, constituindo-se esta o núcleo da fé cristã, em que Deus é, ao mesmo tempo, uno e trino, nas pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Deve-se, entretanto, mencionar que, entre os heréticos, que acreditavam num Jesus não-divino, a reverência pelo seu nome e a aceitação de sua mensagem não eram menores que entre os ortodoxos:

“Segundo estes (os arianos), Jesus era um indivíduo que atingiu uma tal perfeição moral, que Deus o havia adotado como Seu Filho e o havia sacrificado para salvar a humanidade do pecado, ressuscitado dos mortos e o elevado ao estado de ser divino. Pela sublimidade de sua realização, ele havia se tornado um modelo para o comportamento humano.” (RUBENSTEIN, 2001: 26)

Uma das causas da resistência em aceitar a encarnação da Divindade estava no rígido monoteísmo herdado da influência judaica e na idéia de que a Trindade seria uma acomodação disfarçada com o politeísmo. Até hoje, um judeu como Rubenstein revela sua fascinação por Jesus, mas não adere à teoria da encarnação divina e escreve um livro para resgatar o arianismo. Quanto aos árabes, diz Khalidi que: “…não é nenhum exagero dizer que o espectro do politeísmo é uma obsessão no Corão”. (KHALIDI, 2001: 22)
O livro de Khalidi vem nos revelar, a nós ocidentais, que a tradição de um Jesus humano — mas enviado e profeta de Deus, modelo ético e objeto de extrema devoção — asilou-se no chamado Evangelho muçulmano, fazendo ver que a relação entre cristãos e islâmicos é muito mais íntima e antiga do que às vezes se supõe. Explica o autor que:

“O Jesus corâmico resulta da tradição cristã ‘ortodoxa’ e canônica, assim como da não ortodoxa e apócrifa. Daí em diante, porém, ele assume uma vida e função próprias, como muitas vezes acontece quando uma tradição religiosa emana de outra.” (KHALIDI, 2001: 26)

A obra compõe-se de um interessante estudo de Khalidi a respeito da abordagem islâmica do Cristo e de mais de 300 provérbios e histórias colhidos de diversas fontes na literatura muçulmana, onde Jesus aparece como figura central.
É verdade que este Jesus está longe de se apresentar de forma homogênea e coerente, pois que emerge nestes trechos de diferentes correntes e épocas do Islã. Ora, revela-se na tradição radicalmente asceta dos sufis, ora mostra-se quietista, ora tende para a crítica social e política. Mas sempre é um Jesus humano, com quem Deus fala, por quem Deus se manifesta; sempre uma autoridade incontestável. Em numerosas passagens, os interlocutores se dirigem a ele, como “Verbo e Espírito de Deus”.
Este título é apenas uma das inegáveis ressonâncias dos Evangelhos canônicos — o Cristo misericordioso, que ensina o amor e o perdão, o Cristo médico, que cura o corpo e a alma, o Cristo de uma humanidade sobre-humana permeia esses provérbios e histórias árabes. Diz Khalidi:

“Em sua totalidade, este evangelho é a história de um caso de amor entre o Islã e Jesus, e portanto um registro sem igual de como uma religião mundial optou por adotar a figura central de outra, vindo a reconhecê-la como constitutiva de sua própria identidade.” (KHALIDI, 2001:15)

O sufismo sobretudo — talvez uma das correntes islâmicas mais afins com o Cristianismo, apesar de seu ascetismo às vezes exagerado (aliás como certo ascetismo presente também entre nós) — soube captar o mesmo Jesus de muitos santos cristãos. Explica o autor de maneira apropriada:

“Visivelmente, o galho místico e muitas vezes metanômico de qualquer árvore de religião é o que mais intimamente se entrelaça com o galho semelhante de uma árvore vizinha. Por isso, no contexto judaico-cristão-muçulmano, a identidade religiosa de um trecho místico selecionado ao acaso muitas vezes não pode ser localizada. O Jesus do sufismo islâmico tornou-se uma figura não facilmente distinguível do Jesus dos Evangelhos.” (KHALIDI, 2001: 49)

Porém, mesmo quando outras correntes, que não a sufi, o invocam para fortalecer argumentos polêmicos dentro do próprio Islamismo, apesar de este Jesus nos parecer menos familiar e mais dissonante das tradições ocidentais, ainda espanta o fato de que ele é posto como inquestionável autoridade, apto a referendar as mais opostas posições.
O que ressalta da leitura desta obra é que Cristo transcende culturas, vai além das fronteiras das igrejas, porque sua mensagem, de uma forma ou de outra, alcançou em cheio o coração humano e isso porque ele bem sabia o que havia nesse coração. Atribui Khalidi a Jesus os adjetivos de meta-histórico e metarreligioso. E isso nos remete à necessidade tão urgente de abolirmos fanatismos intransponíveis entre religiões e doutrinas — o que não pode ser feito com um mero discurso de respeito às diferenças, mas com o conhecimento e o sentimento de que há muitas semelhanças entre os diferentes e de que a verdade pode ser vista sob vários prismas.


¹ publicado originalmente em 22.11.2008, no site da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.

(*) educadora, jornalista e escritora brasileira; autora de mais de 20 obras publicadas, dentre elas livros didáticos de filosofia e ensino inter-religioso.

Referências bibliográficas      

CESARÉIA, Eusébio de. História Eclesiástica. Rio de Janeiro, CPEAD, 2000.
JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro, Imago, 2001.
KHALIDI, Tarif (org.) O Jesus Muçulmano. Rio de Janeiro, Imago, 2001.
RUBENSTEIN, Richard E. Le jour où Jesus devint Dieu. Paris, La Découverte, 2001.


Comentários

  1. Bastante esclarecedor. Esse galho do entrelaçamento entre Cristianismo e Islamismo, fortalecido, traria à humanidade frutos de paz que ela tanto deseja e precisa. Oremos a Deus para que, em ambas a partes, renasçam espíritos dispostos até mesmo ao adubo do sacrifício (como Francisco de Assis e Gandhi). Por enquanto, temos que balançar a cabeça, lamentando nossos históricos desatinos (nossos, cristãos) e as repercussões violentas no mundo de hoje.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

“TUDO O QUE ACONTECER À TERRA, ACONTECERÁ AOS FILHOS DA TERRA.”

    Por Doris Gandres Esta afirmação faz parte da carta que o chefe índio Seattle enviou ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1854! Se não soubéssemos de quem e de quando é essa declaração poder-se-ia dizer que foi escrita hoje, por alguém com bastante lucidez para perceber a interdependência entre tudo e todos. O modo como vimos agindo na nossa relação com a Natureza em geral há muitos séculos, não apenas usando seus recursos, mas abusando, depredando, destruindo mananciais diversos, tem gerado consequências danosas e desastrosas cada vez mais evidentes. Por exemplo, atualmente sabemos que 10 milhões de toneladas de plásticos diversos são jogadas nos oceanos todo ano! E isso sem considerar todas as outras tantas coisas, como redes de pescadores, latas, sapatos etc. e até móveis! Contudo, parece que uma boa parte de nós, sobretudo aqueles que priorizam seus interesses pessoais, não está se dando conta da gravidade do que está acontecendo...

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

"ANDA COM FÉ EU VOU..."

  “Andá com fé eu vou. Que a fé não costuma faiá” , diz o refrão da música do cantor Gilberto Gil. Narra a carta aos Hebreus que a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem. Cremos que fé é a certeza da aquisição daquilo que se tem como finalidade.

O CERNE DA QUESTÃO DOS SOFRIMENTOS FUTUROS

   I Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina. ***   Inicialmente. O pior das discussões sobre os fundamentos do Espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

FUNDAMENTALISMO AFETA FESTAS JUNINAS

  Por Ana Cláudia Laurindo   O fundamentalismo religioso tenta reconfigurar no Brasil, um país elaborado a partir de projetos de intolerância que grassam em pequenos blocos, mas de maneira contínua, em cada situação cotidiana, e por isso mesmo, tais ações passam despercebidas. Eles estão multiplicando, por isso precisamos conhecer a maneira com estas interferências culturais estão atuando sobre as novas gerações.

JESUS TEM LADO... ONDE ESTOU?

   Por Jorge Luiz  A Ilusão do Apolitismo e a Inerência da Política Há certo pedantismo de indivíduos que se autodenominam apolíticos como se isso fosse possível. Melhor autoafirmarem-se apartidários, considerando a impossibilidade de se ser apolítico. A questão que leva a esse mal entendido é que parte das pessoas discordam da forma de se fazer política, principalmente pelo fato instrumentalizado da corrupção, que nada tem do abrangente significado de política. A política partidária é considerada quando o indivíduo é filiado a alguma agremiação religiosa, ou a ela se vincula ideologicamente. Quanto ao ser apolítico, pensa-se ser aquele indiferente ou alheio à política, esquecendo-se de que a própria negação da política faz o indivíduo ser político.

NÃO SÃO IGUAIS

  Por Orson P. Carrara Esse é um detalhe imprescindível da Ciência Espírita. Como acentuou Kardec no item VI da Introdução de O Livro dos Espíritos: “Vamos resumir, em poucas palavras, os pontos principais da doutrina que nos transmitiram”, sendo esse destacado no título um deles. Sim, porque esse detalhe influi diretamente na compreensão exata da imortalidade e comunicabilidade dos Espíritos. Aliás, vale dizer ainda que é no início do referido item que o Codificador também destaca: “(...) os próprios seres que se comunicam se designam a si mesmos pelo nome de Espíritos (...)”.

A HISTÓRIA DA ÁRVORE GENEROSA

                                                    Para os que acham a árvore masoquista Ontem, em nossa oficina de educação para a vida e para a morte, com o tema A Criança diante da Morte, com Franklin Santana Santos e eu, no Espaço Pampédia, houve uma discussão fecunda sobre um livro famoso e belo: A Árvore Generosa, de Shel Silverstein (Editora Cosac Naify). Bons livros infantis são assim: têm múltiplos alcances, significados, atingem de 8 a 80 anos, porque falam de coisas essenciais e profundas. Houve intensa discordância quanto à mensagem dessa história, sobre a qual já queria escrever há muito. Para situar o leitor que não leu (mas recomendo ler), repasso aqui a sinopse do livro: “’...