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| Imagem capa da obra Fe e Fuzíl de Bruno Manso |
Por Jorge Luiz
O Choque da Contradição
As comunidades do Complexo do Alemão e Penha, no Estado do Rio de Janeiro, presenciaram uma megaoperação, como define o Governador Cláudio Castro, iniciada na madrugada de 28/10, contra o Comando Vermelho. A ação, que contou com 2.500 homens da polícia militar e civil, culminou com 117 mortos, considerados suspeitos, e 4 policiais. Na manhã seguinte, 29/10, os moradores adentraram a zona de mata e começaram a recolher os corpos abandonados pelas polícias, reunindo-os na Praça São Lucas, na Penha, no centro da comunidade. Cenas dantescas se seguiram, com relatos de corpos sem cabeça e desfigurados.
A partir daí, iniciou-se a guerra de narrativas. O Governador Castro definiu a ação como a “maior operação das forças de segurança do Rio” e um “sucesso”, considerando como vítimas apenas os policiais. Movimentos de direitos humanos, contudo, disseram ter sido uma chacina e questionaram a política de segurança, afirmando que "quem determinou essa pena de morte foi o próprio policial. Eles decidiram quem iria morrer e quem iria viver”, conforme afirmou seu representante. Especialistas, como a professora Jacqueline Muniz (UFF), criticaram a ação, definindo-a como uma “lambança político-operacional”¹. Essa "lambança" se acentua quando a Polícia Civil, por meio do delegado Felipe Curi, anuncia a responsabilização criminal dos moradores por fraude processual, alegando que teriam tirado a roupa dos corpos, num "milagre que se operou" na mata².
A Ética do Cordeiro em Xeque
A contradição se aprofunda no universo da fé. No Dia de Finados (02/11), o Governador Castro, músico e cantor católico, foi aplaudido de pé pelos fiéis, retribuindo com louvores. A porcentagem de cristãos no Brasil (cerca de 84%) atesta uma contradição estarrecedora: 62,2% dos cariocas aprovaram a matança. O percentual atinge seu ápice entre os evangélicos, com 88,5% de aprovação, e entre os católicos, com 66,6%. O que se revela é uma falta de empatia e o não luto para com as vítimas, desafortunados que são os benditos nas Bem-Aventuranças de Jesus.
Essa postura demonstra o esquecimento da mensagem da Boa Nova, o cântico pelos pobres e oprimidos.
Há de se apelar para o Padre Vieira, no que se refere ao cerne do seu Sermão da Palavra (Sermão da Sexagenésima), centrada na Parábola do Semeador, de Jesus, quando saiu a semear e viu a semente cair em diferentes solos (estrada, pedras, espinhos e terra boa). Vieira é pragmático no seu Sermão e começa afirmando que a Palavra não frutifica e gera frutos para a sociedade, refutando três causas possíveis pra o problema: A) Não é culpa de Deus; B) Não é culpa dos ouvintes; c) A culpa é do Pregador: Por exclusão e argumentação, Vieira conclui que a ineficácia da Palavra é, em grande parte, culpa dos pregadores.
Ele sugere que o pregador para alcançar o sermão ideal, deve observar:
A) Pregar o Evangelho e não a si mesmo: Deve transmitir as Palavras de Deus, e não vaidades ou imaginações do pregador.
B) Pregar com Obras: O pregador deve viver o que prega (a Ação é essencial, junto com o Discurso).
C) Tem um Propósito (Conceptismo): O sermão deve ser logicamente construído, visando persuadir e convencer o ouvinte, usando o raciocínio e a clareza.
Indiscutivelmente, o mundo virtual tem oferecido aos internautas um verdadeiro show de bizarrices, fraudes, delinquências, escândalos, charlatanismo, sem guardar nenhuma correlação com a mensagem do Nazareno.
A palavra teologia, etimologicamente, significa “estudo sobre Deus” (do grego theos - Deus e logos - palavra/discurso/estudo). Para Gustavo Gutiérrez, teólogo peruano, desencarnado recentemente, o lugar teológico privilegiado (o ponto de partida e de referência) é o sofrimento do pobre e oprimido. É na vida e na luta dos pobres que Deus se revela de forma mais clara (a famosa "opção preferencial pelos pobres"). Essa traição ao Evangelho pelas Igrejas brasileiras é o resultado do afastamento do ensinamentos de Jesus, efetivamente pela sua opção preferencial pelos pobres como o cerne da fé. Os evangelhos exigem que o cristão lute contra o "pecado social" que gera a violência. A aprovação da matança, contudo, é a demonstração de que essa opção foi invertida. O que era a fé engajada, hoje é a fé sequestrada, usada para legitimar o opressor, naturalmente, legitimam “o gatilho”.
O Gatilho e a Tríade da Justificação: Ordem, Prosperidade e Domínio
A. Teologia da Ordem (TO): O Fuzil como Instrumento de Deus
O fundamento da TO reside na leitura de Romanos 13:1-7, onde as autoridades são vistas como o "ministro de Deus" que porta a "espada". Historicamente, a passagem legitimou o poder da Coroa, mas hoje é instrumentalizada para o Autoritarismo de Estado e a violência policial, anulando a ética da misericórdia. Essa visão maniqueísta justifica a extirpação da desordem sem luto.
A TO é refutada nas obras de Hans Küng (A Igreja Católica), que critica o silêncio e o apoio da Igreja a atrocidades, e de Leonardo Boff (Igreja: Carisma e Poder). O ponto de Boff é crucial: ao ser interpelado por Ratzinger sobre a constituição hierárquica e o "sacramento da ordem" da Igreja, ele revela que o poder-dominação e a rigidez autoritária eclesiástica se projetam para o Estado. A defesa da ordem policial é o reflexo desse modelo de autoridade. A aprovação ao Governador Castro demonstra a aliança com o discurso neoconservador, consolidando a morte como política de Estado sob a bênção da Ordem.
B. Teologia da Prosperidade (TP): O Endosso da Segurança do Capital
A TP, que define o sucesso material como evidência da bênção divina, fornece a justificação pragmática para a matança. Conforme G.C. Albuquerque, essa doutrina inverte a lógica do Novo Testamento, exigindo o "despojamento" financeiro (Lei da Semeadura) em nome da riqueza (ALBUQUERQUE, 2020). Na esfera política, a TP manifesta-se na defesa irrestrita do status quo e do capital. O crime e o caos são rotulados como "maldições" que ameaçam a prosperidade. A aprovação do massacre torna-se a validação de um "sacrifício necessário" para garantir a estabilidade econômica. O resultado é o exercício direto da Necropolítica: as 117 vítimas, em sua maioria periféricas, são desumanizadas e vistas como falhas morais, justificando seu descarte pelo Estado para proteger o conforto da classe que se considera abençoada.
C. Teologia do Domínio (TD): A Guerra Moral e o Inimigo a Ser Exterminado
A TD tem vínculos ideológicos viscerais com a matança ao se configurar como um plano de poder. O fundamento bíblico em Gênesis 1:28 é interpretado como um mandato para exercer "domínio sobre toda a terra". Conforme Edir Macedo estabelece em seu Plano de Poder, o ser humano luta por "espaços, por domínio e estabelecimento do poder" (MACEDO; OLIVEIRA, 2008).
O Impacto Social e a Crise de Credibilidade
A. O Descarte e a Traição às Periferias
A celebração da matança expõe a crise ética dos cristãos. A aprovação da barbárie é percebida nas comunidades faveladas—alvos centrais da violência—como uma traição à Ética do Cordeiro. Ao endossar o "Gatilho", a fé adota uma Teologia do Descarte, desvalorizando a vida negra e pobre. Isso leva à cisão social e à perda da voz profética, restando apenas grupos minoritários (como as pastorais) para honrar o luto e a misericórdia abandonados pela maioria.
B. A Necropolítica com Selo de Aprovação
O ápice dessa crise é a santificação da Necropolítica. As teologias de poder (Ordem, Prosperidade, Domínio) legitimam o poder do Estado de ditar quem deve morrer para manter a ordem e o capital. A matança de 117 pessoas, que é seletiva e racista, não é um erro, mas a aplicação de uma política de morte. Ao aprovar o massacre, o religiosismo dominante confere um selo religioso ao racismo estrutural e à desumanização da juventude periférica. A crise de credibilidade é inevitável quando o púlpito se alinha com o fuzil.
O Que o Futuro Espera? A Cruz Redescoberta
O massacre no Rio de Janeiro e a subsequente celebração por grandes segmentos cristãos, expõem a falência de uma fé cooptada pelas Teologia da Ordem, da Prosperidade e do Domínio. O Cordeiro foi silenciado para santificar o Gatilho. Contudo, o futuro da fé, se quiser recuperar sua credibilidade, exige o resgate do seu símbolo máximo: a Cruz.
A Cruz não é um signo místico ou um amuleto de sucesso, mas a interseção de duas dimensões vitais. A Verticalidade é a nossa relação com o transcendente, a busca por Deus e a salvação individual. Mas sem a Horizontalidade, ela é vazia. A haste horizontal aponta para o próximo, para o irmão que sofre, para as 117 vidas descartadas. O cristianismo só recuperará seu significado profético quando rejeitar as teologias de poder e se unir à luta de classes e à justiça social. Não haverá redenção vertical sem a compaixão e o engajamento horizontal. O único caminho para o perdão não está nos aplausos ao algoz, mas na empatia e no luto pelas vítimas, assumindo o peso da cruz em sua totalidade: amar a Deus e, inescapavelmente, amar o próximo como a si mesmo.
A Doutrina Espírita é cristalina no que diz respeito à desigualdade das condições sociais, apontando-as como obras do homem e não de Deus (Kardec, 2000; Q. nº 806). Em outro momento, o Espírito Elizabeth da França, enfatiza que não se deve dizer a um criminoso, “é um miserável; deve ser extirpado da Terra; a morte que se lhe inflige é muito branda para uma criatura dessa espécie”; o mesmo que dizer: “bandido bom é bandido morto. Continua ela, “pensai no vosso modelo, que é Jesus. Que diria ele, se visse esse infeliz ao seu lado?” (Kardec, 1996).
Referências
ALBUQUERQUE, G. C. Domínio da fé e da política. Rio de Janeiro: Trinitária, 2020.
BOFF, Leonardo. Igreja, carisma e poder. 5. ed. São Paulo: Ática, 1994.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o espiritismo. São Paulo; EME, 1996.
_____________ O Livro dos Espíritos. São Paulo; LAKE, 2000.
KÜNG, Hans. Igreja católica. São Paulo: Objetiva, 2001.
MACEDO, Edir; OLIVEIRA, Cristiane. Plano de poder. Rio de Janeiro, 2008.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.
VIEIRA, Antonio. Sermões escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2018.
Fontes Jornalísticas
¹AGÊNCIA BRASIL. Moradores retiram cerca de 50 corpos em área de mata após operação. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-10/moradores-retiram-cerca-de-50-corpos-em-area-de-mata-apos-operacao. Acesso em: 5 nov. 2025.
²BBC BRASIL. 'É um milagre': como a polícia do Rio explicou corpos 'só de cuecas' na operação mais letal da história. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/clyg64e15j0o. Acesso em: 5 nov. 2025.
3ICL NOTÍCIAS. Opinião: Que diabo de cristianismo é esse?. Disponível em: https://iclnoticias.com.br/opiniao-que-diabo-de-cristianismo-e-esse/. Acesso em: 5 nov. 2025.

COMENTÁRIO ELABORADO PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - IA
ResponderExcluirO artigo aborda a crise ética e a contradição da fé cristã brasileira diante da violência estatal, usando como ponto central uma megaoperação policial no Complexo do Alemão/Penha (RJ) que resultou em 117 mortos (supostos suspeitos) e 4 policiais.
Ponto Central e Tese:
A tese principal é que a aprovação majoritária da matança (62,2% dos cariocas, 88,5% dos evangélicos) por segmentos cristãos demonstra uma "traição ao Evangelho" e um "sequestro da fé". O artigo argumenta que essa postura inverte a "opção preferencial pelos pobres" de Jesus e do teólogo Gustavo Gutiérrez.
Tríade da Justificação Ideológica:
O texto identifica três vertentes teológicas que, segundo o autor, são instrumentalizadas para justificar o massacre e a Necropolítica:
Teologia da Ordem (TO): Usa Romanos 13 para legitimar a violência policial e o autoritarismo de Estado.
Teologia da Prosperidade (TP): Rótula o caos como "maldição" e justifica o "sacrifício necessário" de vidas periféricas para proteger o status quo e o capital.
Teologia do Domínio (TD): Interpreta Gênesis 1:28 como um mandato para "Guerra Santa" e domínio nas esferas sociais, usando o "Gatilho" como ferramenta contra o inimigo.
Conclusão-Chave:
O autor conclui que a fé só recuperará seu significado e credibilidade ao redescobrir o sentido integral da Cruz (Verticalidade com Deus e Horizontalidade com o próximo/o sofredor), rejeitando as teologias de poder e unindo-se à luta por justiça social. A aprovação da barbárie é vista como a santificação do racismo estrutural e do descarte da vida negra e pobre.