Por Jorge Luiz
A Pobreza como Questão Social
Para Hanna Arendt, filósofa alemã, uma das mais influentes do século XXI, aquilo que se convencionou chamar no século XVII de questão social, é um eufemismo para aquilo que seria mais fácil e compreensível se denominar de pobreza. A pobreza, para ela, é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação (Arendt, 1963).
A pobreza é uma das principais contradições do capitalismo e tem a sua origem na exploração do trabalho e na acumulação do capital.
O Reino de Deus como Projeto de Justiça
Há a necessidade de se reescrever a história no que diz respeito às questões sociais. O grande divisor do mundo, Jesus, o Nazareno, foi quem melhor diagnosticou as questões sociais e apresentou a solução ao fundar o reino de Deus aqui na terra. E ele a fez de forma profunda e apresentou soluções simples e perfeitamente realizáveis, entretanto, as classes dominantes deslocam a sua personalidade para como divina, restringindo-o ao âmbito das igrejas, convertendo-as em intermediárias desse reino, realizável agora após a morte. A passagem dos evangelhos que será referência para essa adulteração está em Lucas, 16:19-31, conhecida como “O Rico e Lázaro”, que na realidade irá encontrar respaldo doutrinário na Doutrina Espírita, através da Lei de Causa e Efeito, como bem atesta Carlos Torres Pastorino, ao afirmar “a lição é por demais preciosa, sobretudo por vir trazer confirmação de muitas obras espiritualistas, incluindo as obras de Francisco Cândido Xavier e Yvone A. Pereira, reforçando a recusa pelas igrejas ortodoxas (Pastorino, 1967, 6 v.). Outras passagens podem levar a essa compreensão.
Ódio de Classes e a Mensagem de Jesus
Prefiro a terminologia ódio de classes utilizada pelo teórico marxista Karl Kautsky, à luta de classes utilizada pelo revolucionário socialista alemão, Karl Marx, mesmo entendendo o contexto que ele a pensou. A palavra luta sugere combate entre pessoas, ideias, em igualdade de condições. A relação das classes na sociedade capitalista onde ela surgiu é de exploração, opressão, que resulta na realidade em ódio.
A passagem acima, pode servir de introito para esse destaque. Vê-se, também, que na conhecida passagem do Jovem Rico, quando ele adverte que é mais fácil um camelo passar no fundo de uma agulha do que o rico entrar no reino de Deus. Esse diálogo é sequenciado após Jesus sugerir ao jovem que vendesse tudo que dispunha de bens materiais para segui-lo. Na realidade, essa passagem foi notoriamente mal manipulada, diz Myers, por aqueles cujo interesse reside em atenuar e abrandar sua crítica aos ricos. Popularmente conhecida como a narrativa do “jovem rico e de posição”, a personagem do evangelista Marcos, na realidade, não é jovem (Mt, 19:16), nem pessoa de posição (Lc, 18:18); o que nos foi dito – e somente depois ele desistiu e se afastou do convite ao discipulado – é que ele era grande proprietário, alguém que possuía muitos bens (Myers, 2021).
Leia-se o que está em Tiago: agora, vós, ricos, chorai, e pranteai, por causa das misérias que sobre vós hão de vir, as vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão comidas de traça; o vosso ouro e a vossa prata se enferrujaram. A sua ferrugem a qual dará testemunho contra vós foi retida com fraude, está clamando (Tg, 5:1-5).
O ponto culminante da denúncia de Jesus sobre as desigualdades está no Sermão da Montanha. Ali, Ele afirma: “Bem-aventurados vós, os pobres, pois vosso é o reino de Deus (Lucas, 6:21). A mensagem é clara: os ricos, mergulhados em suas posses, interditam a si mesmos o acesso ao Reino.
Kautsky afirma em seu belíssimo estudo sobre as origens do cristianismo que o ódio de classes do moderno proletariado assumiu formas tão fanáticas quanto o proletariado cristão, muito embora o proletariado se sinta mais forte do que se sentiu, em qualquer momento, o nascente proletariado do cristianismo (Kautsky, 2010).
A riqueza era perseguida com a mesma cobiça que na sociedade capitalista, mas seguindo apenas o princípio de “tomar ou esmagar”; não havia a intenção de cria-la através de um aumento da produção. O método de acumulação do capital da Antiguidade era simplesmente tomá-lo de outra pessoa, seja através do espólio das guerras ou dos impostos altíssimos, arrancados da população camponesa trabalhadora (Crossan, 1994).
O conflito trazido por Jesus desenvolve-se com suas próprias palavras entre grupos sociais – pobres e ricos, marginalizados e favorecidos – cuja interação constitui a estrutura central da “polis” de Israel (Segundo, 1991).
A questão mais urgente de Jesus aos iniciados do Reino, eram a fome e as dívidas, isso é bem notado nas súplicas proferidas no Pai Nosso, “O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores.” (saiba mais). O compartilhar dos bens materiais era a regra áurea do reino que se iniciava. O perdão – dos devedores e credores – que Jesus manifesta no Pai Nosso é sem limites. Quando ele concebia as curas conhecidas como milagres, restaurava-os não só a saúde, como também a sua condição social, assim, também, era o condicionante aos que faziam parte das comunidades do Reino.
A Propriedade Privada e o Acúmulo
O desprendimento dos bens terrenos destacados na Parábola do Jovem Rico – Lucas, 18:18 - que mesmo sustentando obedecer a todos os ditames da Lei de Deus, ouve de Jesus que faltava um item que era de vender tudo e repartir com os pobres, para poder segui-lo e fazer parte do reino de Deus. A acumulação material que resulta na miséria e que produz profundas desigualdades no mundo, fundamental conceito no sistema da forma mercadoria, não prospera nos fundamentos básicos do reino de Jesus. A propriedade privada não é direito natural, apesar de o direito de propriedade sê-lo. A esse respeito dizem os Espíritos: “— Sem dúvida, tudo o que é legitimamente adquirido é uma propriedade, mas, como já dissemos, a legislação humana é imperfeita e consagra frequentemente direitos convencionais que a justiça natural reprova (Kardec, 2000 – questão nº 885).
A Inclusão dos Impuros
Perante a sociedade judaica em que Jesus assentou os fundamentos sociais e políticos, para o que ele definiu como reino de Deus, merece destaque a questão da “pureza”, principalmente à mesa, a qual definia os considerados “impuros” - os portadores de alguma deficiência físico-mental, principalmente os hansenianos.
A benção de Jesus coloca os indigentes, e não os pobres (a mendicância e não a pobreza) como os bem-aventurados. Jesus falava de um Reino que se destinava às classes sujas, degradadas e dispensáveis, e não à classe camponesa ou dos artesãos (Crossan, 1994).
Isso fica muito evidente nas bem-aventuranças, destaque para três: “Bem-aventurados os tristes; bem-aventurados os famintos; bem-aventurados os perseguidos.
A Revolução Silenciosa de Jesus
O reino de Jesus é puro ebionismo, doutrina unicamente dos pobres. Jesus não exigiu perfeição moral nem santidade para a práxis do reino, mas apenas o amor como o motriz maior, através da solidariedade e do compartilhar dos bens terrenos: Olhem os lírios do campo, que não trabalham nem tecem! E, contudo, nem Salomão em toda a sua glória se vestiu tão bem como eles (Lc, 12:27). Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer, ou pelo que haveis de beber; (...) “Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não valeis vós muito mais do que elas? (Mt, 6:25-26).
O Reino não ocorrerá em um passe de mágica. No encontro com Nicodemos – João, 3 -, Jesus condiciona-o às vidas sucessivas ao falar da necessidade do nascer de novo, que o Espiritismo a revelou. Agora, são duas as vertentes do reino de Deus, como bem explicita o Espírito Lázaro: a primeira, o amor que substitui a personalidade pela fusão dos seres; extingue as misérias sociais (...). Quando Jesus pronunciou a divina palavra – amor, os povos sobressaltaram-se e os mártires, ébrios de esperança, desceram ao circo. (...) O Espiritismo a seu turno vem pronunciar uma segunda palavra do alfabeto divino. Estai atentos, pois que essa palavra ergue a lápide dos túmulos vazios, e a reencarnação, triunfando da morte, revela às criaturas deslumbradas o seu patrimônio intelectual. Já não é ao suplício que ela conduz o homem: condu-lo à conquista do seu ser, elevado e transfigurado. O sangue resgatou o Espírito e o Espírito precisa atualmente resgatar da matéria o homem (Kardec, 2007).
O Desafio do Reino Hoje
Onde estão em nossos dias os fiéis em Jesus tal qual os primeiros cristãos enfrentaram as feras, as fogueiras e as perseguições de toda a ordem? Cegos, como as mariposas frente à luz, que a levará a morte, os cristãos frequentam os bancos de instituições religiosas na ânsia da prosperidade material, doando bens materiais na esperança de receber de Deus em dobro, enriquecendo os profissionais da religião. Jesus advertiu:
Mas ai de vós, ricos! Porque já tendes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais fartos, porque tereis fome! Ai de vós, os que agora rides, porque vos lamentareis e chorareis! Ai de vós quando todos os homens falarem bem de vós, porque assim faziam seus pais aos falsos profetas! (Lc, 24-26).
Jesus tem um lado sim, em todas as épocas das civilizações, sempre o teve. Hoje, não há como conciliar os fundamentos do Reino com o sistema capitalista vigente.
Há uma saída fácil de se implantar; que a partir de todas as iniciativas sociais, sejam de qualquer natureza, ditas cristãs, iniciem um processo de cristianização nos termos que Jesus ensinou, a exemplo das Comunidades Eclesiais de Base, Movimento dos Sem Terras, dentre outros. Far-se-á, silenciosamente, a revolução que Jesus iniciou!
Referências:
ARENDT, Hanna. Sobre a revolução. São Paulo: Cia. das Letras, 1963.
CROSSAN, John D. O Jesus histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
KARDEC, Allan. O Livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.
_____________. O Evangelho segundo o espiritismo. São Paulo: LAKE, 2007.
KAUTSKY, A origem do cristianismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
MYERS, Ched. O Evangelho segundo marcos. São Paulo; Paulus, 2021.
PASTORINO. Sabedoria do evangelho. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1964.
SEGUNDO, Juan Luis. A História perdida e recuperada de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulus, 1997.
COMENTÁRIO ELABORADO PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - IA (GEMINI)
ResponderExcluirPontos Chave
Pobreza e Desumanização (Arendt): Inicialmente, o texto utiliza Hannah Arendt para definir a pobreza não como mera privação, mas como um estado de carência e miséria que desumaniza ao submeter o indivíduo à "necessidade absoluta do corpo". É apontada como uma contradição central do capitalismo, resultante da exploração e acumulação.
Jesus e o Reino de Deus como Justiça Social: O cerne do argumento é que Jesus de Nazaré diagnosticou as questões sociais e fundou o Reino de Deus como um projeto de justiça aqui na Terra. O autor critica a igreja por deslocar essa mensagem para um plano divino e pós-morte (como na passagem do Rico e Lázaro), o que é reforçado por doutrinas como a Lei de Causa e Efeito do Espiritismo, atenuando a urgência da ação social presente.
Crítica à Riqueza e "Ódio de Classes": O artigo prefere a terminologia "ódio de classes" (Kautsky) em vez de "luta de classes" (Marx), para expressar a exploração e opressão. Ele resgata passagens bíblicas (Jovem Rico, Tiago, Sermão da Montanha) para enfatizar a condenação explícita de Jesus à riqueza e a desigualdade, afirmando que os ricos se auto-interditam o acesso ao Reino.
Propriedade e Solução de Jesus: O texto conclui que a solução do Reino de Deus implica o compartilhamento de bens (regra de ouro) e o perdão das dívidas (como no Pai Nosso), combatendo a acumulação material e a propriedade privada que geram miséria.
Avaliação
O artigo é polêmico e assertivo, propondo uma leitura desmistificada e eminentemente revolucionária da figura de Jesus, alinhada a uma crítica marxista-socialista. A justaposição de Arendt, Marx/Kautsky e a exegese bíblica cria um argumento poderoso, posicionando o cristianismo original como uma força contra a opressão e a acumulação capitalista, cuja essência teria sido adulterada pelas classes dominantes e instituições religiosas.
Uma excelente reflexão !
ResponderExcluirDesafiador para nós como humanidade rever as questões do capitalismo com vistas e criar uma organização social com base em princípios de parceria e partilha. Maria Luiza -Fortaleza-CE