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O SUPREMO E A CRUZ*

 


Por Dora Incontri

Desde a chegada (ou invasão) dos portugueses em terras depois chamadas brasileiras, a promiscuidade entre Estado e religião é histórica, enraizada a fundo em nossa tradição. De início, não havia contexto histórico para ser diferente: o projeto de colonização estava pautado juntamente com a Contrarreforma. Inácio de Loyola, o superior de Manuel da Nóbrega (há cartas enviadas do Brasil deste último para o fundador da ordem jesuíta), encabeçava um movimento internacional de reconquista das almas, perdidas para a Reforma protestante.

Isso se estendia sobretudo à catequese enquistada na educação. Como os reformadores foram empenhados na alfabetização do povo e na criação de escolas, para que todos pudessem ler a Bíblia e se formarem para o trabalho, os jesuítas se apressaram a assumir entre os católicos o trabalho de educar e catequisar e isso no Brasil também andava junto. Esse projeto foi momentaneamente descontinuado com a expulsão dos jesuítas do Brasil e de Portugal, feita pelo déspota esclarecido, Marquês de Pombal – o que aliás, deixou um vácuo na educação entre nós. Depois, chegaram também outras ordens religiosas para assumirem tal tarefa.

Quando veio a “independência” entre muitas aspas, em todos os outros países das Américas, a emancipação do colonizador se deu numa transição direta para a repúblicas. No Brasil, tivemos um império – cuja religião oficial ainda era a católica. E a república veio mais tarde num golpe de estado pelos militares (em conivência com as elites) – e desde então, os militares estão viciados em golpes! A influência ideológica desses primeiros militares golpistas, porém, não era do catolicismo. Eles eram, em sua maioria, positivistas, do positivismo de Augusto Comte, e adeptos alguns de uma estranha religião, proposta pelo filósofo francês, a “religião da humanidade”, de que ele, Comte, se autointitulava o sumo sacerdote. Ainda há remanescentes museológicos desta igreja positivista no Rio de Janeiro.

O caso é que, embora a república tenha proposto um Estado laico, desde então, nunca se consolidou como tal.

No início do século XX, o educador espírita Eurípedes Barsanulfo, estudado hoje por suas posições avançadas em educação, era vereador de sua cidade do interior de Minas, a pequena Sacramento, e brigava pela retirada do crucifixo da câmara municipal.

Mais de 100 anos depois, temos um Congresso Nacional com uma bancada da Bíblia, com as concepções mais antidemocráticas e conservadoras possíveis, e dias atrás, o Supremo Tribunal Federal formou maioria contra a retirada de símbolos religiosos – leia-se cristãos – das instituições públicas.

É inacreditável que ainda em pleno século XXI, há pessoas, pretensamente democráticas, e que representam os poderes da república, que defendem o indefensável.  A presença de símbolos religiosos cristãos em escolas, repartições, tribunais, revela sim uma promiscuidade inaceitável entre uma religião majoritária e as instituições públicas. E os adeptos de outras religiões minoritárias? E os que não têm religião?

O problema é que esses símbolos são a representação concreta da ingerência da religião na política.  Por esses dias, fui procurada por uma ex-aluna, que estava participando de uma formação de professores municipais, em São Paulo, e me apontou inconformada alguns itens evangélicos na bibliografia. Isso sem mencionar a ofensiva de cristãos conservadores para ocupar os Conselhos Tutelares e a presença até de “desencapetamento” entre práticas escolares, já filmadas e viralizadas nas redes.

Escrevi aqui já alguns artigos de alerta para o fato de que podemos estar caminhando a passos largos para um Estado teocrático. E o Supremo acaba de ratificar uma tradição que se aferra a um passado em que não havia separação entre Estado e Igreja e, com isso, pode ajudar a pavimentar um futuro em que retrocedamos alguns séculos ainda para trás.

 

* publicado originalmente no jornal GGN, em 27.11.2024.

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