terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

O PUNITIVISMO DAS RELIGIÕES¹

 

Por Dora Incontri

Desde o momento em que nascemos, estamos enredados numa sociedade que procura nos condicionar o comportamento na base de castigos e recompensas: desde a criança ser posta “para pensar” no quarto ou no canto da sala de aula (verdadeiro horror que passa a mensagem de que pensar é castigo), até além da vida, a promessa de punição do fogo do inferno ou nas doutrinas reencarnacionistas, o resgate cármico através de múltiplas existências. Na educação, a recompensa de presentes e para depois da morte, o paraíso com harpas. Somos tão condicionados a essa forma de raciocínio justiceiro e de barganha, que torcemos o tempo todo pela destruição do outro, que julgamos mau, ou empunhamos em nós mesmos o autoflagelo da chamada culpa cristã. A motivação consumista da vida capitalista é outra forma infantilizada de auto recompensa se formos bonzinhos e trabalharmos bem.

Em seu último romance Ressurreição, publicado em 1899, quando já engajado numa espécie de anarquismo cristão, Lev Tolstoi disseca o sistema judiciário russo da época czarista (crítica que permanece completamente atual ante o sistema judiciário brasileiro, por exemplo), com sua crueldade vingativa, com seu aspecto classista. E mais, denuncia o quanto a Igreja ortodoxa russa estava conluiada com essa justiça punitivista e injusta, com seus crucifixos em cada repartição pública e em cada tribunal. O Cristo torturado e morto pela injustiça de judeus e romanos, servindo como justificação para a opressão do povo, torturado pela miséria e pelas prisões. Tolstoi se põe como crítico demolidor do próprio Estado, com seu aparato militar e policial para controle dos cidadãos e para promoção de guerra com outros Estados e afirma que o verdadeiro cristão se opõe a qualquer forma de violência, sobretudo a que se fez em nome da lei, da ordem e da religião. Por isso, é considerado como um anarquista.

Hoje, além dos exércitos que dominam as guerras no mundo, as polícias que oprimem as manifestações populares – estamos vendo essa semana acontecer na Argentina, porque sempre as forças de segurança alguma hora serão usadas contra o povo – as prisões que arrancam a dignidade humana, lotadas no Império norte-americano e no Brasil, sobretudo de negros; temos também o tribunal popular das redes sociais, onde se julga sem análise, se condena sem prova e se destrói pessoas culpadas ou inocentes, com a rapidez e a facilidade do linchamento virtual.

A questão que proponho aqui é se essa mentalidade punitivista, que tem profundos traços psicológicos de sadomasoquismo, de fato resolve alguma questão humana, se muda a sociedade, e, sobretudo, se está no fundo das melhores ideias e proposições apresentadas pelas tradições espirituais. Podemos começar a pensar que Jesus dizia que “o amor cobre a multidão de pecados”, que não devemos julgar para não sermos julgados, que é preciso perdoar setenta vezes sete, que podemos amar os próprios inimigos. Isso vale só como moral individual ou deveria servir para estruturarmos nossas relações na sociedade? Podemos lembrar também que tanto o budismo quanto o hinduísmo (embora sejam também punitivistas na lei do karma) pretendem libertar o ser humano do sofrimento, promovendo a sua saída da roda do karma. No espiritismo kardecista, temos duas leituras possíveis, uma mais punitivista, com a lei de causa e efeito e uma compreensão mais pedagógica, progressista, de que estamos em processo de aprendizagem nas múltiplas existências e o erro faz parte. Consultemos também os místicos – em geral, a melhor parte das diversas tradições –, sejam eles cristãos, judeus, muçulmanos, hindus – e neles não veremos, em geral, trovoadas ameaçadoras ou condenatórias, mas apenas o deleite poético da comunhão com Deus. Quem está em sintonia divina, não se apraz em ser vigilante e acusador do comportamento do outro.

Hoje, temos plenas condições de entender que um crime, desde um simples furto a um assassinato, desde um assédio a um estupro, é sempre o resultado de estruturas sociais injustas, opressoras, onde não há educação amorosa, plena, aberta e ao mesmo tempo, reprodução de adoecimentos psíquicos familiares, individuais e coletivos e se formos reencarnacionistas, trazidos do passado. Assim, não se trata de punir, mas reeducar, promover terapias, e adentrarmos por uma justiça restaurativa e reparadora e não essa que se compraz em humilhar e arrasar o ser humano.

Poucos minutos antes de escrever esse artigo, li uma reportagem sobre um trabalho com meditação, que está sendo feito na Penitenciária feminina de Santana, em São Paulo, com excelentes resultados. E quem apoia a iniciativa é Jorge Santana, vice-diretor, que é sacerdote da Umbanda e conhece práticas de meditação de sua tradição. Um exemplo de gota de orvalho no inferno que são as prisões.

A questão toda se radica na premissa de que é preciso salvar, melhorar, curar o ser humano e não o massacrar sem piedade, com um sadismo que se manifesta na polícia, nas prisões, no sistema judiciário e, mais recentemente, nas redes sociais. Devo confessar que, embora rejeite totalmente os atos de vandalismo e o atentado à democracia do dia 8 de janeiro, sinto tremendo mal-estar com os anos de prisão a que estão sendo condenados os participantes. Com o agravante de que os mandantes estão muito bem soltos por aí. Todos deveriam ser alfabetizados politicamente, passarem por sessões individuais e coletivas de terapia… enfim, reinseridos na sociedade de forma mais saudável.

Certamente, muitos dirão que minhas considerações são utópicas e ingênuas, mas tenho convicção de que é o mais necessário a fazer para de fato mudarmos as estruturas sociais que nos oprimem. E, para isso, recorrermos ao que há de melhor nas religiões – que não são as formas de poder e repressão, mas a ideia de que todo ser humano tem uma divindade interior, um lugar de essência intocada, não corrompida, que pode ser despertada pelo amor, pelo acolhimento e por um tratamento adequado.

 

 ¹ postado originalmente no Jornal GGN, desta data.

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