Pular para o conteúdo principal

REENCARNAÇÃO: BREVES APONTAMENTOS

 

Por Jerri Almeida

A linguagem economicista e infeliz, associando o processo reencarnatório com: “pagamento de dívidas”, “ressarcir débitos” ou “saldar o passado”, apresenta uma abordagem distorcida, simplista e tendenciosa da reencarnação. Não raro, ouvimos em palestras nas instituições espíritas, ou mesmo por meio da literatura espírita (religiosa), que os sofrimentos ou desafios da atual existência são decorrentes de nossas “faltas do passado”. Assim, o sujeito que nasce numa condição de miserabilidade social, e/ou com problemas de saúde, que sofre alguma violência, estaria “resgatando” seus erros cometidos em pretéritas existências. Será? Com base em quais evidências podemos fazer tal afirmação?

A literatura espírita mediúnica, principalmente, produzida no Brasil ao longo do século 20, sem passar por nenhum critério mínimo de análise das informações, insistiu em transmutar ou “sincretizar” a reencarnação no sentido espírita com o imaginário religioso de pecados, penas/castigos e recompensas. Em alguns de seus textos, Kardec, lamentavelmente, também deixou brechas para essas associações. Nem mesmo ele conseguiu se libertar totalmente dessas representações. [2]

O escritor Alexandre Junior, a partir de uma abordagem progressista sobre o assunto, ponderou: “A função da pluralidade das existências é nos fazer alcançar a felicidade e para isso se faz necessário que quebremos paradigmas que nos foram impostos por interpretações equivocadas do Espiritismo como, por exemplo, a ideia de que o sofrimento está intimamente ligado ao processo reencarnatório”. [1] Abandonar interpretações simplórias, pelo uso da dialética e da análise crítica, é o desafio de quebrar paradigmas no meio espírita.

O espiritismo laico, progressista e livre-pensador, a partir da obra kardequiana (mas sem sacralizá-la como critério absoluto de verdade), analisa e compreende o processo reencarnatório numa perspectiva educacional, jamais punitiva. Trata-se de uma concepção libertadora, que complexifica a dinâmica do progresso, distanciando-o de argumentos tolos, que insistem em apresentar Deus como um juiz implacável, que nos vigia 24 horas por dia, aguardando que cometamos algum “erro” para “tributá-lo na contabilidade” de nossas existências. 

O sofrimento humano não deve ser “tributado exclusivamente" a um passado do qual não temos a mínima memória. O desenvolvimento de uma consciência lúcida, no plano do Espírito, é muito mais um processo das vivências e das contingências bio-psico-socioculturais, político-espirituais, do que de punições reencarnatórias. Nesse sentido, a reencarnação funcionaria como um dispositivo na construção da autonomia do ser, de forma dinâmica e progressiva.

A teoria espírita da reencarnação não desvelou todos os aspectos que envolvem os motivos de certos sofrimentos humanos. Sobre certos casos, podemos – a partir da teoria – inferir, interpretar, supor, mas jamais afirmar com segurança. As “dobras das experiências”, nem sempre são “fáceis” de serem explicadas.

O espiritismo livre-pensador, entende como fundamental revisar o modelo tradicional de abordagem da reencarnação, “...de maneira a romper com os limites da culpa e castigo divinos, compreendendo que estamos destinados à vitória e à felicidade, e não à dor e à derrota” [3], embora os processos de dor e sofrimento sejam naturais e humanos ao longo das vivências.

 

Notas

[1] JÚNIOR, Alexandre. Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades. Um Diálogo com as Questões Sociais. Recife: CBA Editora, 2022. p.34.

[2] O Livro dos Espíritos, questão nº 1000.

[3] REIS, Ademar Arthur Chioro dos. NUNES, Ricardo de Morais. Perspectivas Contemporâneas da Reencarnação. Santos-SP: CPDoc, 2016. p. 183.



Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

ALLAN KARDEC E A DOUTRINA ESPÍRITA

  Por Doris Gandres Deolindo Amorim, ilustre espírita, profundo estudioso e divulgador da Codificação Espírita, fundador do Instituto de Cultura Espírita do Brasil, em dado momento, em seu livro Allan Kardec (1), pergunta qual o objetivo do estudo de uma biografia do codificador, ao que responde: “Naturalmente um objetivo didático: tirar a lição de que necessitamos aprender com ele, através de sua vida e de sua obra, aplicando essa lição às diversas circunstâncias da vida”.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

A CULPA É DA JUVENTUDE?

    Por Ana Cláudia Laurindo Para os jovens deste tempo as expectativas de sucesso individual são consideradas remotas, mas não são para todos os jovens. A camada privilegiada segue assessorada por benefícios familiares, de nome, de casta, de herança política mantenedora de antigos ricos e geradora de novos ricos, no Brasil.

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.

PUREZA ENGESSADA

  Por Marcelo Teixeira Era o ano de 2010, a Cia. de teatro da qual Luís Estêvão faz parte iria apresentar, na capital de seu Estado, uma peça teatral que estava sendo muito elogiada. Várias cidades de dois Estados já haviam assistido e aplaudido a comovente história de perdão e redenção à luz dos ensinamentos espíritas. A peça estreara dez anos antes. Desde então, teatros lotados. Gente espírita e não espírita aplaudindo e se emocionando. E com a aprovação de gente conhecida no movimento espírita! Pessoas com anos de estrada que, inclusive, deram depoimento elogiando o trabalho da Cia. teatral.

O MOVIMENTO ESPÍRITA MUNDIAL É HOJE MAIS AMPLO E COMPLEXO, MAS NÃO É UM MUNDO CAÓTICO DE UMA DOUTRINA DESPEDAÇADA*

    Por Wilson Garcia Vivemos, sem dúvida, a fase do aperfeiçoamento do Espiritismo. Após sua aurora no século XIX e do esforço de sistematização realizado por Allan Kardec, coube às gerações seguintes não apenas preservar a herança recebida, mas também ampliá-la, revendo equívocos e incorporando novos horizontes de reflexão. Nosso tempo é marcado pela aceleração do conhecimento humano e pela expansão dos meios de comunicação. Nesse cenário, o Espiritismo encontra uma dupla tarefa: de um lado, retornar às fontes genuínas do pensamento kardequiano, revendo interpretações imprecisas e sedimentações religiosas que se afastaram de seu caráter filosófico-científico; de outro, abrir-se à interlocução com as descobertas contemporâneas da ciência e com os debates atuais da filosofia e da espiritualidade, como o fez com as fontes que geraram as obras clássicas do espiritismo, no pós-Kardec.

PRECE DO EDUCADOR

Por Dora Incontri (*) Senhor, Que eu possa me debruçar sobre cada criança, e sobre cada jovem, com a reverência que deve animar minha alma diante de toda criatura Tua! Que eu respeite em cada ser humano de que me aproximar, o sagrado direito de ele próprio construir seu ser e escolher seu pensar! Que eu não deseje me apoderar do espírito de ninguém, imprimindo-lhe meus caprichos e meus desejos pessoais, nem exigindo qualquer recompensa por aquilo que devo lhe dar de alma para alma!