Pular para o conteúdo principal

A PALAVRA DOS ESPÍRITOS E O ARGUMENTO DE AUTORIDADE


O que caracterizava o pensamento medieval – o que significa dizer, um pensamento em que a razão deveria ser submetida à fé – era o argumento de autoridade. Autoridade da Bíblia, autoridade de Aristóteles, por exemplo. Muita gente não sabe que vários absurdos científicos que eram aceitos na Idade Média não eram apenas por conta da Bíblia, mas por conta de Aristóteles.  Embora o filósofo grego recomendasse a observação empírica da natureza, ele era citado como fonte de autoridade filosófica e científica. Tomás de Aquino, que formulou a maior síntese entre a visão de mundo cristã (leia-se católica) e Aristóteles, o citava a torto e a direito, como autoridade. Então, por exemplo, toda a polêmica em torno do geocentrismo ou heliocentrismo, tinha como fonte argumentativa, a posição geocêntrica de Aristóteles…

O que significa um argumento de autoridade? Significa que não é preciso demonstrar, observar, verificar, comprovar, argumentar em relação a uma ideia, uma teoria… Basta simplesmente dizer: porque está na Bíblia, porque Aristóteles disse, porque Kardec disse, porque Chico Xavier disse, porque os Espíritos disseram…

Ora, essa postura diante do conhecimento é medieval e pode ser entendida como uma das características do pensamento fundamentalista. A razão se encolhe, tem que aderir cegamente, sem necessidade da observação dos fatos. A concatenação argumentativa se torna raquítica – e sobra a fé cega, a dogmatização de ideias empobrecidas, que se tornam apenas narrativas inconsistentes.

Ora, o Espiritismo é, ou deveria ser, o contrário de tudo isso. Toda a proposta de Kardec é baseada na observação, na argumentação racional e na abertura para novas reformulações – pois ele disse que onde a ciência demonstrasse que as teorias propostas por ele estivessem erradas, o Espiritismo deveria se reformular diante das novas descobertas e teorias (é bom reafirmar, científicas e baseadas na observação e não qualquer novidade estapafúrdia)! Ou seja, Kardec já deixou o antídoto contra o dogmatismo e contra o argumento de autoridade em seus próprios escritos. Mas os espíritas não leram, ou não entenderam. Ou citam Kardec como Tomás de Aquino citava Aristóteles ou querem abrir o Espiritismo para novas reformulações, sem o menor critério científico e racional – então surgem as práticas e ideias místicas, sem nenhum estudo ou referência. Poderia citar aqui centenas delas – mas cada uma mereceria um artigo especial.

O mais grave: Kardec dessacralizou a revelação dos Espíritos, chamando-os de meros colaboradores e não de reveladores predestinados, (ver o capítulo Caracteres da Revelação Espírita no livro A Gênese). Então, mesmo diante daquilo que vem do Além, que sempre na humanidade foi considerado intocável, sagrado – como a Bíblia, o Alcorão, só para citar duas fontes – para Kardec, a nossa atitude tem que permanecer crítica, racional, questionadora. Quando Kardec explica que os Espíritos são homens e mulheres desencarnados, que podem guardar os mesmos preconceitos, os mesmos equívocos, as mesmas idiossincracias que quando na terra, então, eles não podem mesmo ser considerados como reveladores predestinados.

Quer dizer os Espíritos não podem nos ensinar nada? Podem. Segundo Kardec, eles podem nos ensinar duas coisas: dar informações sobre o mundo espiritual (mas isso deve ser referendado por outros Espíritos, com as mesmas informações) e orientações morais, desde que revelem as características de espíritos elevados – que são absolutamente desconhecidas e desconsideradas no movimento espírita brasileiro. Só para citar algumas dessas características:  Espírito elevado tem linguagem simples, objetiva, nobre, sem rebuscamentos excessivos e sem vulgaridades (isso já elimina uma montanha de livros mediúnicos que correm em nossas bibliotecas espíritas); Espírito elevado não traz teorias fantasiosas, elucubrações não confiáveis, não demonstráveis, irracionais; Espírito elevado não faz ciência – essa é uma responsabilidade nossa, ciência tem método, não pode ser fruto de uma revelação; Espírito elevado não se mete em política e não dá palpite na vida alheia…

Diante de tudo isso, quando vamos defender uma ideia no movimento espírita, não podemos simplesmente usar argumentos de autoridade, seja dos Espíritos, seja de Kardec, seja de qualquer médium, por mais confiável que nos pareça.

O Espiritismo tem que andar alinhado em diálogo com o conhecimento contemporâneo. Os espíritas devem usar argumentos racionais, recorrer a evidências científicas, precisam manter uma linguagem objetiva, clara, sólida, atualizada e não ficarmos nessa melosidade chiquista, que não é nem um pouco kardecista… se me permitem a crítica.

Ser kardescista aliás é não citar Kardec como argumento de autoridade, mas adotar seu método racional e de observação, em diálogo com o mundo atual, prosseguir com o Espiritismo, como uma ideia de emancipação e de vanguarda e não como um “pentateuco” bíblico e dogmático.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.