sábado, 2 de junho de 2018

O BRASIL É O CORAÇÃO DO MUNDO E A PÁTRIA DO EVANGELHO?



 
Viralizou nas redes sociais um trecho editado de um evento de 2015, o 4º Congresso Espírita do Conselho Espírita do Estado do Rio de Janeiro. No trecho (vídeo abaixo) que tem sido insistentemente compartilhado pelos espíritas, o jornalista André Trigueiro propõe uma reflexão interessante. Diante de estatísticas que mostravam um número muito pequeno de brasileiros dedicados ao voluntariado, números altíssimos de homicídio, de aborto e roubo de carros, sem contar a Lava Jato que naquele ano já tinha o título de maior escândalo de corrupção da história, poderíamos afirmar que o Brasil é o coração do mundo e a pátria do evangelho?

Na roda de palestrantes que foram instigados pela provocação de Trigueiro estavam César Braga Said, Divaldo Franco, Haroldo Dutra, Alberto Almeida e Sandra Della Pola. No trecho divulgado, o vídeo foi editado e só a fala de Haroldo Dutra aparece.


O livro que afirma que o Brasil seria essa pátria do evangelho além do coração do mundo, foi escrito em 1938 pelo médium Chico Xavier, psicografando o texto do espírito Humberto de Campos (Irmão X). Em suas páginas, o autor nos mostra os bastidores dos processos decisórios dos administradores do planeta para fazerem da terra que viria a ser o Brasil, a sede do evangelho de Jesus no mundo, e que no futuro irradiaria luz, paz e fraternidade para os demais povos.

Nesses 80 anos que nos separam da publicação do livro, muitas críticas foram feitas ao seu conteúdo. As incongruências históricas como por exemplo considerar o povo português como o mais pobre e o mais trabalhador da Europa, e as incongruências narrativas como a surpresa e o choro dos anjos ao saberem de atrocidades cometidas pelos espíritos encarnados, num texto carregado de jargão católico, desafiam a razão.

Afirmações categóricas sobre o alto nível evolutivo de personagens da história brasileira como Tiradentes e Dom Pedro II sem um exame mais profundo  de suas vidas, revelando uma idealização ufanista; conceitos sem nenhuma evidência sobre o magnetismo especial da posição geográfica do Brasil, entre outras passagens, ditados por um único espírito, sem nenhum tipo de confirmação por outros médiuns e outras psicografias, sem nenhum apoio da história e da ciência, não teriam passado pelo crivo de Kardec.

Mais do que isso, em 1949, a Federação Espírita Brasileira (FEB) definiu que caberia aos espíritas do Brasil colocarem em prática a exposição contida no livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de maneira a acelerar a marcha evolutiva do Espiritismo. Essa determinação que passou a fazer parte do estatuto da instituição na ocasião do Pacto Áureo (união das instituições espíritas em torno da FEB), amarrava mais ainda ideias roustanguistas à doutrina espírita. Não por acaso no capítulo 22 do livro, Jean-Baptiste Roustaing é apresentado como um dos cooperadores de Kardec. A recente polêmica sobre a adulteração do livro A Gênese mostra que o roustanguismo se infiltrou no espiritismo assim que Kardec morreu, e veio da França para o Brasil, fincando raízes profundas, místicas e catolicizantes, que só agora começam a ser arrancadas.

No vídeo, Haroldo Dutra dramatiza as interações entre os personagens do livro. Jesus, Ismael e os anjos se envergonham, choram, se desesperam, até que o “governador da Terra” pede pra Ismael levar uma “turba de espíritos infelizes” para povoar o Brasil. Na leitura de Haroldo o Brasil é um “hospital” e não uma “galeria de arte”, não foi feito para “exibir santos”, mas sim para “regenerar seres”, já que “o que há de pior” está aqui. Esse constante reforço da ideia de oposição entre espíritos evoluídos e espíritos “caídos” é a base da influência do roustanguismo na doutrina espírita. O que no espiritismo de Kardec é aprendizado natural, evolução contínua, livre e responsável se torna tragédia, queda, punição nas doutrinas de Roustaing.

A tese central de Roustanig sobre a natureza especial do corpo de Jesus parece pontual e sem importância, mas tem consequências profundas. Se Jesus não reencarnou nas mesmas condições que todos os homens, não sofreu as dores e as delícias de uma vida física, sua forma de viver a vida, e portanto seu exemplo, perde força. Além disso, essa ideia estabelece um abismo entre os espíritos ditos evoluídos e a maioria dos espíritos encarnados que seriam atrasados evolutivamente. Esses conceitos alimentam ideias que rotulam espíritos como “trevosos”, derivando cenários de batalhas épicas entre legiões das trevas e espíritos de luz. O recorrente medo dos “espíritos obsessores”, a separação entre espiritismo e umbanda (que é considerada inferior), o tabu da mediunidade nos centros espíritas e por fim o misticismo e a falta de critério racional que dominam o mercado editorial, são consequências diretas disso.

A defesa que Haroldo faz do livro é uma defesa do posicionamento da FEB, do Pacto Áureo, do roustainguismo, ainda que ele faça isso com um verniz de humildade (ele diz que ele mesmo “é um deles”, se referindo aos “piores” espíritos que foram “trazidos” para o Brasil, arrancando aplausos de uma plateia que o idealiza e venera). O ufanismo do livro de Humberto de Campos, em consonância com o contexto histórico em que foi escrito (o nacionalismo do Estado Novo), ainda hoje desperta sentimentos de que seríamos um “povo escolhido”, e a plateia, os espíritas (que se veem como os “verdadeiros” cristãos”), se identificam fortemente com isso e por trás do discurso cheio de suposta humildade, há uma grande pretensão.

Voltando à provocação de André Trigueiro que nos pergunta a todos se, considerando o cenário atual em que “a fome devora nossos irmãos agonizando entre riquezas e os abutres dividem o tempo em guerra e paz para banquetear os lucros” (para citar o Canto da Libertação de Herculano Pires), o Brasil seria então o coração do mundo e a pátria do evangelho?

Acho que a pergunta não faz sentido. Não podemos ser aquilo que não construímos. Se quisermos ser qualquer coisa que seja, precisamos “nos atirar, certos, serenos, firmes, seguros e confiantes, na construção desse futuro” – lembrando de novo Herculano – conscientes de que somos todos iguais. Qualquer discurso de pretensa superioridade espiritual de um povo, de um grupo, de uma corrente espiritual revela na verdade uma boa dose de vaidade, ufanismo e mistificação.

2 comentários:

  1. Sheila Maria Soares3 de junho de 2018 às 09:59

    Já se perguntou o porquê de Ser o Haroldo a responder esse tema à frente dos outros srta Dora Incontri?
    Será que Doutrina Espirita também não está a condenar a eternidade o erro de Roustaing? Ou a providência permite que os erros sejam consertado
    por quem os comete? A Doutrina que professo a Divindade Maior me sinaliza que cada um é responsável por seus erros, que não é cristalizando os erros infelizes de Confrades de caminhada Evolutiva que irá me fazer progredir e fazer a parte que me cabe. Eu não gosto de afirmar nada, mas gosto de me questionar sobre o que intimamente me incomoda. É assim que vou seguindo a vida passo à passo. Como diz meu amigo Jorge Luis. Graças a Deus aprendi que as respostas vêem quando enfreto frente à frente ao Espírito imperfeito que sou.

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    1. Sheila, a participação do Haroldo foi reproduzida, muito embora os demais também tenham respondido à questão. Não se está condenando nada, mas apenas fazer refletir a verdade. Não se corrigem erros sem não os debatê-los, discuti-los, sempre mantendo os princípios da fraternidade. Leia a frase de Kardec que ilustra este espaço: Existe polêmica e polêmica. "Existe aquela ante a qual jamais recuaremos: é a discussão séria dos princípios que professamos."

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