Numa palavra, o que caracteriza a revelação
espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua
elaboração fruto do trabalho do homem. [1]
Chama a atenção o primeiro livro da revelação
Espírita ser uma obra de perguntas. O Livro dos Espíritos em sua primeira
edição de 1857 foi constituído de 501 perguntas que Allan Kardec formulou aos
espíritos. No ano 1860, em sua terceira edição, o livro básico já contava com
1019 perguntas.
Muitas vezes me perguntei por que 1019 e não
1000 perguntas?
Entre os variados aspectos fundamentais da
Doutrina Espírita, tão importante quanto oferecer respostas, seja elaborar boas
perguntas. 1019 não parece ser um número redondo. Deixa a impressão de que
outras perguntas poderiam ser feitas, ou seja o sistema de conhecimento
Espírita não é um constructo pronto. O Codificador parece deixar assim um
ensinamento, o de que a Doutrina Espírita deve caracterizar-se em ser aberta e
sujeita a novos ensinamentos e revelações.
Esse é um caráter desafiador do Espiritismo.
Embora seja mais concebido como uma Doutrina que nos oferece respostas, ela é
mais uma Doutrina que nos convida à dúvida e a permanentes questionamentos.
O ser humano suporta muito pouco a angústia da
dúvida. Normalmente apressa-se em obter respostas o mais rápido que possa,
mesmo que sejam respostas precoces e insatisfatórias. A necessidade de “saber”
impõe-se ante o “não saber” de modo que alcançar certezas parece ser algo
tranquilizador. No entanto, as certezas de ontem podem mostrar-se insuficientes
ou equivocadas com o tempo. Ter certeza de alguma coisa é uma boa forma de
encerrar um assunto e terminar uma questão, no entanto determina uma espécie de
morte filosófica, ao passo que permanecer “não sabendo totalmente” proporciona
o que poderíamos conceber algo como uma “imortalidade de ideias”.
Wilfred Bion, psicanalista, estuda a questão em
uma de suas obras, ampliando nossa reflexão:
“Quero dizer que acredito que há uma
realidade fundamental mesmo que eu não saiba qual seja; é isso que chamaria de
um “fato”. Só que somos prisioneiros de nossos sentidos. “La réponse est
lemalher de laquestion” (Maurice Blanchot) – a resposta é o infortúnio ou a
doença da curiosidade -, ela a assassina. Sempre há um impulso a se pespegar
uma resposta, de tal forma que se impeça que qualquer fluxo se espalhe pelo
espaço existente. A experiência familiar é a de que você pode dar aquilo que
chamamos de “respostas”. Mas estas são, na realidade, tapa-buracos. É um modo
de pôr um fim à curiosidade – especialmente se você consegue ter sucesso em
acreditar que uma resposta é a resposta. De outra forma, você vai alargar a
brecha, este desagradável buraco onde uma pessoa não tem nenhum conhecimento.
Em determinadas situações físicas, há modos pelos quais os buracos podem ser
preenchidos de um modo mais ou menos convincente; se você está consciente de
que tem fome, pode colocar comida na boca e esperar que ela vá, como de fato
vai, tampar sua boca; uma mãe pode enfiar o seio na boca do bebê – caso ela o
faça com sentimentos de raiva e hostilidade, isto é um estado de coisas diverso
do que fazê-lo com amor e afeição. Mesmo no domínio da curiosidade mental, de
querer saber algo a respeito do universo no qual vivemos, este buraco pode ser
bloqueado por respostas prematuras e precoces.[2]”
O problema não está na obtenção de respostas
para dúvidas ou questionamentos, mas, sim, considerá-las definitivas e
absolutas, ou pior, julgar que deste modo se resolve tudo. As religiões em
geral comportam-se assim, dão respostas prontas e absolutas para os problemas
humanos. Soluções que não resolvem, se não apenas que geram uma sensação
temporária de alívio.
Exemplos disso:
“Se você for uma pessoa boa irá para o céu, se
for má, irá para o inferno”.
“Se você tiver fé e frequentar o culto religioso,
cumprindo determinadas obrigações, Deus lhe trará vantagens e você estará
salvo”.
Mas, o que é de fato ser bom ou mal? O céu e o
inferno existem? O que é de fato ter fé? Deus existe desta maneira, ou seja, agradando-se
ou não pelo fato de você cumprir regras? Salvo do quê? Que salvação é essa de
que falam as religiões?
Dependendo da crença que a pessoa professe,
esses simples questionamentos seriam o suficiente para considerá-la
influenciada pelo demônio. A maior parte das religiões não suporta dúvidas,
tratando logo de demonizá-las.
O Espiritismo nasce com uma proposta diferente
em seu fundamento. Prefere questionar e duvidar. Conforme Kardec, uma Doutrina que encara a razão face a
face. O Codificador soube explorar as mais diversas questões da
filosofia à ciência, da sociologia à religião. Em O Livro dos Espíritos e nas
demais obras básicas, Kardec apresentou ao mundo centenas de questionamentos
que permanecem oportunos e de uma atualidade indiscutível.
No entanto, cabe refletirmos se também nós
Espíritas mantemos o caráter questionador e aberto que propõe a Doutrina.
Observamos que no exercício prático das
atividades Espíritas em muitos meios, também esse condicionamento caracterizado
pela necessidade de tudo saber e encontrar respostas definitivas para as mais
complicadas questões, é verificável frequentemente.
O Espírita precisa, a meu ver, tomar um certo
cuidado de não cair em determinadas armadilhas do saber onipotente.
Particularmente o Espírita que veicula o conhecimento, como palestrantes e
coordenadores de estudos. Na minha rotina comum, pelo fato das pessoas saberem
que sou Espírita e palestrante, são dirigidas a mim as mais variadas perguntas.
Desde a origem do universo até situações da intimidade de relacionamentos
pessoais, sempre com a indagação “o que pensa o Espiritismo sobre isso?” Isso
se dá nos mais diversos ambientes, desde encontros fortuitos nas ruas, até nas
mesas de debates em eventos. Como posso eu, que tenho muito poucas respostas
sobre mim mesmo, saber sobre os outros ou sobre o universo? No entanto, já
houve períodos na minha ingênua trajetória de estudioso da Doutrina que fui
acometido desse pretencioso saber e muitas vezes respondi, ainda que
genericamente. Com o tempo tenho descoberto que as respostas são normalmente
perigosas e pretenciosas.
Por exemplo:
- O que o Espiritismo acha da homossexualidade?
– perguntam.
Hoje em dia devolvo a pergunta:
- Homossexualidade de quem?
Na pergunta já está contida a ideia de que
existe apenas uma situação de homossexualidade, quando na verdade os contextos
são variados, tanto quanto o número de indivíduos com inclinação homossexual.
As respostas, quando existem, aplicam-se apenas à singularidade de cada
situação.
- O que acontece com o suicida? – Outra
questão.
- Qual suicida?
Existe o indivíduo que se mata por motivo de
transtorno mental, movido por extremo desespero, mas também aquele que se mata
por motivo fútil e quer se vingar da vida ou de alguém. São situações muito
diversas, com possibilidades de respostas muito variadas. O mais delicado
muitas vezes é que a pessoa que formula a pergunta, encontra-se com um tipo de
pensamento na cabeça e o “estudioso” que está na posição de quem responde,
provavelmente pensa em outra possibilidade. Ambos aparentemente falando de um
mesmo assunto, quando na verdade estão abordando universos diferentes. São
armadilhas constantes da comunicação.
Estabelece-se, assim, um perigoso pressuposto,
o de que o Espírita deve saber sobre tudo e falar sobre qualquer tema. Com tal
motivação verificamos seguidamente expositores Espíritas fazendo palestras
sobre os mais delicados assuntos, desde a política nacional e internacional,
tragédias coletivas, os destinos do planeta e do universo ou como será a vida
deste ou daquele após o desencarne.
Falar sobre qualquer tema se constitui por si
mesmo um desvio conceitual da finalidade do Espiritismo. Como qualquer ciência
ou sistema de conhecimentos, a Doutrina Espírita também tem um campo mais
específico de estudo e saber. Vejamos como se posiciona o codificador:[3]
Podemos defini-lo assim:
O Espiritismo é uma ciência que trata
da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações como
mundo corporal.
O Espiritismo tem, pois, um objeto de estudo,
“trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações
com o mundo corporal”. Não há sentido em acreditarmos que o Espírita precisa
saber de tudo, falar sobre qualquer tema. Há que se cuidar quando temas
palpitantes de cada época passam a fazer parte do cardápio do expositor. Essa
postura demonstra mais uma necessidade particular de quem assim se posiciona do
que uma atitude doutrinária. Também termina por ocasionar um peso pessoal ao palestrante,
porque deposita ele sobre seus próprios ombros o compromisso do ilimitado
saber, perigoso desafio para o orgulho e vaidade pessoais.
Ainda em “O Livro dos Espíritos” encontraremos
em variadas ocasiões, respostas do Espírito de Verdade à Kardec que apontam
para a conveniente abertura a novas indagações. São exemplos:[4]
21. A matéria existe desde toda a eternidade,
como Deus, ou foi criada por ele em dado momento?
“Só Deus o sabe (...)
159. Que sensação experimenta a alma no momento
em que reconhece estar no mundo dos Espíritos?
“Depende. Se praticaste o mal, impelido pelo
desejo de o praticar, (...)
278. Os Espíritos das diferentes ordens se
acham misturados uns com os outros?
“Sim e não. Quer dizer: eles se veem, mas se
distinguem uns dos outros (...)
São exemplos de respostas que não fecham a
questão, antes, pelo contrário, estimulam raciocínios mais amplos que convidam
a abrir novas possibilidades de reflexões.
E para concluir, aprendemos ainda com Kardec um
pouco mais sobre a Doutrina que estamos sempre conhecendo:
“(...) enfim, porque a doutrina não
foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo
trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os
olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta,
compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações.”[5]
Bem-vindo aos nossos dias Kardec! É sempre
oportuno e indispensável retornarmos ao pensamento do Codificador.
REFERÊNCIAS:
[1]KARDEC,
Allan. A Gênese. FEB, 50ª ed. Brasilia, 2006, Cap. I. pag 28.
[2]Bion,
Wilfred R., (1897-1979) Conversando com Bion. Tradução de Paulo César Sandler.
Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1992, pag. 34.
[3]KARDEC.
A. O que é o espiritismo. 56 ed. FEB. Brasilia, 2013, pag. 40
[4]KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1982.
[5]KARDEC, Allan. A
Gênese. FEB, 50ª ed. Brasilia,
2006, Cap. I. pag 28.
EXCELENTE REFLEXÃO. Roberto Caldas
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