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ENCONTROS E DESENCONTROS








Simone chegou com alguns minutos de antecedência. Sentada em rústico banco, à sombra de frondosa árvore, recordou que ali tecera com Armando idílico so­nho.
O marido representara o seu encontro com a felici­dade. A seu lado vivera quinze anos de ternura, enrique­cidos por quatro filhos adoráveis. No entanto, há dois anos o sonho convertera-se em pesadelo. Armando apaixonou-se por inconsequente jovem, iniciando perturbadora relação extraconjugal.

Após meses de tensão o caso fora descoberto. Os fi­lhos revoltaram-se e ele, alegando incapacidade para su­perar a atração irresistível, decidiu unir-se à sua amada.
Em princípio Simone ficou indignada. Viveu dias tormentosos. Não fora o conhecimento espírita e o teria odiado com todas as suas forças! Abençoada Doutrina, que a ajudara a compreender que o marido não agira com maldade. Apenas fora fraco, cedendo a impulsos desajustados.
A compreensão preservara-lhe a estabilidade emo­cional e a capacidade de amar. Sim, continuava amando o marido, um afeto diferente, um pouco maternal, de mãe preocupada com o filho rebelde que deixou o lar. E tudo o que fazia era orar, pedindo a Jesus que a amparas­se.
Agora ele queria conversar. O fato de ter escolhido o mesmo banco, na velha praça dos encontros primaveris, evidenciava que ele estava cogitando de uma reconci­liação. Conhecia-o, entendia-lhe as mínimas iniciativas, com a precisão nascida de longa convivência, com a se­creta intuição dos que amam de verdade, acima das hu­manas imperfeições.
Despertando de suas reminiscências, avistou Ar­mando. O coração a bater acelerado no peito, dizia-lhe que o marido continuava a ser o homem de sua vida. O tempo não lhe fora generoso. Estava abatido, ma­gro, envelhecido como se houvessem passado dez anos e não apenas dois. Ele sorriu timidamente:
– Oi, Simone, como está?
– Tudo bem, graças a Deus. E você?
– Não posso dizer o mesmo. Estou mal, mal mesmo! Arrependido até os fios de meus cabelos, afogando-me em remorsos. Será que você me perdoará um dia?
– Você sabe que não sou de guardar rancores. Não se preocupe.
Tomando-lhe as mãos Armando começou a chorar. Em princípio lágrimas furtivas, depois borbulhantes, co­mo imensa dor represada que explodisse em torrente de mágoas.
– Meu Deus! Que foi que fiz! Destruí nosso lar a tro­co de uma aventura!...
Lutando por conter a própria emoção, Simone aca­riciou-lhe as mãos:
– Calma, Armando. Não se entregue ao desalento. Ninguém é perfeito. Todos somos passíveis de erro...
Procurando imprimir um tom de naturalidade às suas palavras, perguntou-lhe:
– Conte-me. Como vai sua vida ao lado da nova companheira?
– Não há mais nada. Foi um equívoco, um desen­contro infeliz... Separamo-nos há uma semana e tudo o que quero é regressar ao nosso lar, ainda que tenha de passar o resto de meus dias pedindo-lhe desculpas. Você me aceitaria de volta?
Simone fitou-o enternecida. Não havia nenhuma dúvida quanto a isso. Desde que se despira de ressenti­mentos, sentia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde, na Terra ou no Além. O amor que os unia era mui­to forte, capaz de resistir aos vendavais dos enganos hu­manos.
– Claro, meu querido. É o que mais desejo.
– Há apenas um problema... Não sei como expli­car...
– Fale. Tentaremos solucioná-lo... Se tem receio de nossos filhos, fique tranquilo. Eles querem nos ver jun­tos novamente.
– Sim, o problema envolve filhos... Mais exatamen­te... outro filho... Da união infeliz resultou uma criança de dez meses. A mãe não o quer. Ficou comigo. Sei que é pedir demais, mas você me permitiria retomar com ele?
Um raio que caísse nas proximidades não a teria abalado tanto! Um filho com a outra, sob seus cuidados, no mes­mo lar, em contato com seus próprios filhos?! A proposta soava absurda. Como reter a lembrança perene da defecção do marido? Era pedir demais!...
Imaginou, em turbilhão de ideias, uma forma de contornar o problema. Um orfanato, talvez... Um casal disposto à adoção... Sabia, entretanto, que uma solução dessa natureza seria desumana, uma flagrante injustiça contra o peque­no inocente.
Era como se o solo se movimentasse debaixo de seus pés, abrindo intransponível abismo entre ela e o marido.
Em prece muda, implorava a inspiração do Céu. E o Céu veio em seu socorro. Sem que conseguisse exprimir com exatidão o que estava acontecendo, sentiu imensa compaixão daquele ser que chegava ao Mundo em circunstâncias tão tristes, rejeitado pela mãe, um entrave na vida do pai... Pobre criança!
Então, o instinto materno, a sensibilidade de um coração generoso, a vocação para o Evangelho, triunfa­ram sobre a mulher traída que, tomada por uma onda de ternura, levantou-se, resoluta, arrastando o marido per­plexo, ao mesmo tempo em que dizia, eufórica:
– Onde está nosso filho? Vamos buscá-lo imediata­mente! Sinto que ele precisa muito de mim!
E partiram os dois, retomando a existência em co­mum, enriquecida pela presença de mais um filho. Um reencontro feliz, norteado por generosos benfeitores espirituais que encontraram ressonância em meigo coração de mulher.


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