Pular para o conteúdo principal

O MODELO MASCULINO DE CIVILIZAÇÃO¹






Por Dora Incontri (*)

 
Ying e Yang - a simbologia chinesa para o masculino e feminino.
Reflito aqui sobre duas matérias que vi recentemente, sobre diferentes assuntos, mas ambas ligadas a São Paulo, a cidade em que nasci e de onde fugi há 15 anos, para viver no interior, mas onde estão minhas raízes e um pedaço do meu coração.

Uma é a reportagem chocante, de dezembro de 2015, intitulada As veias abertas da Faculdade de Medicina da USP, (ver http://www.adusp.org.br/files/revistas/58/mat05.pdf) e a outra é o documentário Entre Rios, já mais antigo de 2011, mas que eu não conhecia, que conta de maneira didática o processo de urbanização de São Paulo. (Ver: https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc)

O que há de comum entre essas duas matérias: elas de certa maneira dissecam a lógica da dominação, da sujeição, da violência do homem sobre a natureza e sobre outros seres humanos.


No processo de urbanização da cidade, vemos como os rios que a alimentavam, que lhe deram a vida lá nos primórdios das aldeias indígenas, foram sufocados, encanados, soterrados, poluídos, mortos. O rio Tamanduateí, o ribeirão do Anhangabaú, o rio Tietê. A lógica usada nessa urbanização foi a lógica da exploração, do abuso da terra, do crescimento econômico baseado no automóvel, no concreto, na especulação imobiliária. Sem nenhum interesse ou cuidado pela beleza, pela natureza, pela integração do ser humano ao seu meio, de maneira harmoniosa, saudável e nobre. O que vale é dilacerar o solo, construir, ganhar dinheiro. E as delicadas curvas do rio são concretadas, são forçadas a caber nos canos, são submersas debaixo da terra. E o esgoto abunda e as enchentes são uma das péssimas heranças dessa urbanização violenta, acelerada.

Na Faculdade de Medicina da USP, há as denúncias terríveis e silenciadas, de violação dos direitos humanos, nos trotes, nas festas, no cotidiano. Com as mulheres, com os homossexuais, com homens recém-chegados, que se não adotarem o corporativismo violento das festas e das iniciações humilhantes, estão ameaçados de não merecerem o respeito dos seus pares, de não fazerem parte do clube. As denúncias são acachapantes. Uma das que mais me impressionou foi referente ao assassinato do calouro Edison Tsung Chi Hsueh, em 1999, de que aliás me lembrava, durante um trote dos veteranos. A morte em si já seria suficientemente revoltante. Mas agrava-se pelo fato narrado pela reportagem de que a família do rapaz nunca recebeu a solidariedade de nenhum professor da Faculdade. O caso foi encerrado depois de anos pela Justiça, inocentando os acusados.

Não quero fazer generalizações indevidas, porque aprecio os seres humanos do gênero masculino e acho negativo declararmos uma guerra de sexos. Mas há que convir, analisando as duas matérias em pauta, que essa é o modelo de mundo dominado pelos homens.

Alguém viu no decorrer da história uma engenheira como Prestes Maia, planejando a urbanização violenta e exploratória de uma cidade? Há alguma denúncia de abusos de mulheres contra homens num trote, numa situação de trabalho, numa faculdade?

Esse modelo de civilização de opressão do mais fraco, de depredação da natureza, de violação constante do que é humano – foi um modelo construído em milênios de dominação masculina. É o guerreiro, é o macho, é o conquistador…

É verdade que a versão masculina do mundo não pode ser simplesmente jogada na lata do lixo, como querem alguns radicais. As conquistas da ciência, a construção do direito, o pensamento filosófico – tudo isso foi feito no mundo pelo gênio masculino, simplesmente porque a mulher não tinha voz para participar dessa construção, salvo algumas exceções históricas. Admiro o senso prático, a racionalidade, a capacidade de liderança masculina. Mas o homem ainda carrega a marca do dominador, do agressor, do opressor, de insensibilidade  com a dor do próximo. Essas duas reportagens mostram isso. O homem-homem não desenvolveu em sua grande maioria os dons do cuidado, da empatia, da humildade construtiva. Claro que os homens que se destacaram na história como portadores dessas qualidades são os grandes líderes espirituais que apontam caminhos para uma transmutação do macho, guerreiro, conquistador. Pessoas como Buda, Jesus, Francisco de Assis…

O problema é que quando a mulher começa a sair de seu papel de companheira passiva, de vítima da dominação, muitas vezes é tentada a se masculinizar. Não gosto de ver, quando viajo, essas mulheres executivas, robotizadas como seus colegas, dentro da mesma lógica neurótica da carreira competitiva, que não se dão o direito de ter filhos ou de ficar mais com eles. Mas aprecio quando vejo homens que hoje partilham o cuidado dos filhos com a mulher e procuram trabalhos em que podem conservar a sua participação na família e seu diálogo dentro de casa.

O que estou querendo dizer é que precisamos de valores tradicionalmente femininos, para reconstruir a civilização. Valores como delicadeza, cuidado, empatia, sensibilidade. Mais intuição e não só razão instrumental. Mais flores e frutos e não apenas concreto.

Temos que caminhar para um mundo em que a voz do homem e da mulher se harmonizem dentro da família e fora de casa. Em que um reconheça o valor do outro, com respeito mútuo e sem desejos de dominação. E também devo dizer, cada um podendo adquirir, como já tem sido o caso, um pouco das qualidades do outro, mas ainda conservando a identidade de cada gênero, pois eu não sou partidária dessas teorias pós-modernas de que o ser homem e o ser mulher são meras construções sociais. Essa ideia de um relativismo fanático pode levar à perda dos valores positivos que cada gênero construiu ao longo dos milênios e é uma ideia que desconsidera completamente o dado biológico. Embora eu seja reencarnacionista e me lembro de já ter sido homem e mulher, e saiba que o espírito não tem sexo, enquanto condicionados a um corpo, temos uma influência dele em nosso psiquismo. Se assim não fosse, seríamos hermafroditas e não renasceríamos homens e mulheres.

Para citar o caso da medicina, como um campo necessário de integração dos valores dos dois gêneros, já comentei uma vez num artigo que foram duas mulheres no século XX que trouxeram uma grande contribuição para a humanização do cuidar: Cicely Saunders e Elisabeth Kübler-Ross. Nesse exemplo, dá para observar bem a diferença da lógica feminina e masculina. Pela tradição da medicina criada pelos homens, trata-se de guerrear contra a morte e vencê-la com galhardia. Mas a morte faz parte da vida. E é preciso cuidar de quem está morrendo. Então as mulheres é que dão o principal impulso para os cuidados paliativos e para a tanatologia. Não há o que vencer nesse caso. Há que se cuidar, há que se compadecer, há que dar passagem à morte, aceitando-a quando não houver nenhum remédio, criado pelos homens.

Com tudo isso, devemos tomar cuidado para não querer abolir o progresso da ciência e voltarmos à era das bruxas. Mas temos que dar um passo adiante nesse modelo vigente, onde só o lucro conta, onde a lei do mais forte se instala em toda parte, onde ainda mulheres e crianças no mundo todo são abusadas, espancadas, violentadas, onde a própria mãe natureza é estuprada…

Caminhemos para um mundo em que a virilidade seja mais sensível e a feminilidade mais participativa. E assim já está sendo.

(*)Jornalista, educadora e escritora. Suas áreas de atuação são Educação, Filosofia, Espiritualidade, Artes, Espiritismo. Tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela USP. É sócia-diretora da Editora Comenius e coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita. Coordenadora geral da Universidade Livre Pampédia.

fonte:  http://doraincontri.com/

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

A PIOR PROVA: RIQUEZA OU POBREZA?

  Por Ana Cláudia Laurindo Será a riqueza uma prova terrível? A maioria dos espíritas responderá que sim e ainda encontrará no Evangelho Segundo o Espiritismo a sustentação necessária para esta afirmação. Eis a necessidade de evoluir pensamentos e reflexões.

O CORDEIRO SILENCIADO: AS TEOLOGIAS QUE ABENÇOARAM O MASSACRE DO ALEMÃO.

  Imagem capa da obra Fe e Fuzíl de Bruno Manso   Por Jorge Luiz O Choque da Contradição As comunidades do Complexo do Alemão e Penha, no Estado do Rio de Janeiro, presenciaram uma megaoperação, como define o Governador Cláudio Castro, iniciada na madrugada de 28/10, contra o Comando Vermelho. A ação, que contou com 2.500 homens da polícia militar e civil, culminou com 117 mortos, considerados suspeitos, e 4 policiais. Na manhã seguinte, 29/10, os moradores adentraram a zona de mata e começaram a recolher os corpos abandonados pelas polícias, reunindo-os na Praça São Lucas, na Penha, no centro da comunidade. Cenas dantescas se seguiram, com relatos de corpos sem cabeça e desfigurados.

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

ESPÍRITISMO E CRISTIANISMO (*)

    Por Américo Nunes Domingos Filho De vez em quando, surgem algumas publicações sem entendimento com a codificação espírita, clamando que a Doutrina Espírita nada tem a ver com o Cristianismo. Quando esse pensamento emerge de grupos religiosos dogmáticos e intolerantes, até entendemos; contudo, chama mais a atenção quando a fonte original se intitula espiritista. Interessante afirmar, principalmente, para os versados nos textos de “O Novo Testamento” que o Cristo não faz acepção de pessoas, não lhe importando o movimento religioso que o segue, mas, sim, o fato de que onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome ele estará no meio deles (Mateus XVIII:20). Portanto, o que caracteriza ser cristão é o lance de alguém estar junto de outrem, todos sintonizados com Jesus e, principalmente, praticando seus ensinamentos. A caridade legítima foi exemplificada pelo Cristo, fazendo do amor ao semelhante um impositivo maior para que a centelha divina em nós, o chamado “Reino de...

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...

O DISFARCE NO SAGRADO: QUANDO A PRUDÊNCIA VIRA CONTRADIÇÃO ESPIRITUAL

    Por Wilson Garcia O ser humano passa boa parte da vida ocultando partes de si, retraindo suas crenças, controlando gestos e palavras para garantir certa harmonia nos ambientes em que transita. É um disfarce silencioso, muitas vezes inconsciente, movido pela necessidade de aceitação e pertencimento. Desde cedo, aprende-se que mostrar o que se pensa pode gerar conflito, e que a conveniência protege. Assim, as convicções se tornam subterrâneas — não desaparecem, mas se acomodam em zonas de sombra.   A psicologia existencial reconhece nesse movimento um traço universal da condição humana. Jean-Paul Sartre chamou de má-fé essa tentativa de viver sem confrontar a própria verdade, de representar papéis sociais para evitar o desconforto da liberdade (SARTRE, 2007). O indivíduo sabe que mente para si mesmo, mas finge não saber; e, nessa duplicidade, constrói uma persona funcional, embora distante da autenticidade. Carl Gustav Jung, por outro lado, observou que essa “másc...