Pular para o conteúdo principal

MORTE E VIDA

 

 


 Por Mário Portela

 

Ao longo de nossas vidas, experimentamos inúmeras situações dolorosas que permanecem nítidas em nossa mente: a morte de um ente querido, um relacionamento fracassado, a insatisfação profissional, etc. Todas essas recordações, muitas vezes, influenciam nosso comportamento e nossa maneira de ser. Em minhas lembranças, permanecem acesas as cenas da morte de meu pai. Ainda criança, por volta dos seis anos, senti o gosto amargo da orfandade. As imagens daquele dia perduram fortes e com elas, consigo rememorar o amargor da sensação de angustia, do nada e da morte. Mas, se pararmos e refletirmos acerca de nossa essência, veremos que a vida passa rapidamente, é um instante da existência e se não nos adequarmos à velocidade dos ponteiros do relógio do tempo, perderemos momentos preciosos de nosso dia a dia.

Diante da transitoriedade na qual nos vemos mergulhados, várias questões existenciais nos são apresentadas. O que pensar da morte? Qual o sentido da vida? Tais questões golpeiam a alma humana e parecem continuar indecifráveis ante a nossa capacidade limitada de conhecer a razão de todas as coisas.

Em 1927, o filósofo alemão Heidegger, no livro Ser e tempo, afirma que a questão do ser se coloca no momento em que nos tornamos capazes de questionarmos o ser, que é o próprio homem. Esse ponto de partida inicial é fundamental para desenvolvermos nossa análise existencial. Posto isso, poderíamos inferir que questionar o sentido da vida pode nos remeter ao sentido morte, já que a morte se relaciona com a vida.  Desse modo, não passamos inertes ao mundo, estamos em constante transformação, em constante processo de mortificação para renovação. Já se referindo ao conceito de existência, Heidegger nos dá uma boa definição na Introdução à preleção Que é metafísica? (1929), em que diz: "A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta". E logo a seguir, acrescenta: Somente o homem existe. O rochedo é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. A frase:  "o homem existe" não está restringindo que somente o homem é um ente real, e que todos os entes restantes são irreais e apenas uma representação do homem. A frase o "homem existe" significa que somos agentes de nossa própria história, escrita diariamente nos transcurso de nossos dias.

Ao nos depararmos com um processo individual, ativo e perene de transformação, precisamos envidar esforços na construção de uma estratégia de historicização. O que sou? A quem temo? Que caminho devo seguir? O que quero ser? Esse processo de desvelamento do ser, descrito nas entrelinhas do discurso heideggeriano, é um trocar de pele constante para se conseguir o tão sonhado crescimento. É evidente que nesse caminhar nos depararemos com a angústia, com o medo do nada. Novas situações são sempre novos desafios. Mas são justamente esses desafios o cinzel que molda nosso caráter. No livro Morte e Vida Severina, a obra-prima do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, conhecemos a história de Severino, um nordestino que deixa o sertão em direção ao litoral em busca de uma vida digna. Severino encontra no caminho outros nordestinos que, como ele, passam pelas privações impostas pela aridez do sertão. A desertificação dos sentimentos costura a obra e nos convida a meditação. Um mundo de injustiças, marcado pela morte. Ele presencia a muitas e, de tanto vagar, termina por descobrir que é justamente a morte, a maior empregadora do sertão. É graças a ela que existem os empregos do médico, do coveiro, da rezadeira, do farmacêutico, etc. Severino, porém, retrata que a persistência da vida é a única maneira de vencer a morte. Mas não nega a dificuldade de viver. Em dado momento, ele mesmo pensa em suicídio jogando-se do Rio Capibaribe, mas é contido pelo carpinteiro José, que fala do nascimento do filho. É obvio que o autor deixa subentendido que a renovação da vida é uma indicação clara ao nascimento de Jesus, também filho de um carpinteiro e caminho seguro para remissão de nossos vícios. Severino retrata a nossa capacidade de adaptação e ao mesmo tempo de luta, de transformação. A vitória da vida sobre a morte. Sendo ele mesmo, dá início ao desvelamento de seu ser. Não se viu melhor nem pior, apenas, Severino. Dizia ele: “— O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.” Nesse processo de identificação pessoal, Severino principia seu processo íntimo de individuação, de conhecer-se a si mesmo, para saber seus limites e suas potências. Para deixar de ser o homem inautêntico e passar a ser o homem autêntico proposto por Heidegger.

Assim, viver de maneira autêntica é viver tendo a certeza de que somos finitos e um dia vamos morrer. Viver autenticamente é reconhecer-se vivo para morrer e, a partir disso, diante das possibilidades para as quais ela nos abre projetarmos e construirmos a nossa vida a partir dessa constatação. Portanto, devemos matar todos os dias aquilo que nos faz mal, que nos prende a barbárie, que nos minimiza enquanto humanos. Todas as nossas ações deverão ser voltadas para a construção de um novo ser, portador de uma ética universal que envolva a todos em laços fraternais, nos libertando das normas moralizantes.

Por fim, tenhamos a certeza que mesmo as lembranças mais dolorosas nos trazem um aprendizado. Refletir sobre essas lembranças é entregarmo-nos as lições que, se bem vividas e compreendidas, transformarão as recordações negativas em um aprendizado para o nosso amanhã.

 

Ab imo Pectore!

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

DIA DE FINADOS À LUZ DO ESPIRITISMO

  Por Doris Gandres Em português, de acordo com a definição em dicionário, finados significa que findou, acabou, faleceu. Entretanto, nós espíritas temos um outro entendimento a respeito dessa situação, cultuada há tanto tempo por diversos segmentos sociais e religiosos. Na Revista Espírita de dezembro de 1868 (1) , sob o título Sessão Anual Comemorativa dos Mortos, na Sociedade Espírita de Paris fundada por Kardec, o mestre espírita nos fala que “estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para dar aos nossos irmãos que deixaram a terra, um testemunho particular de simpatia; para continuar as relações de afeição e fraternidade que existiam entre eles e nós em vida, e para chamar sobre eles as bondades do Todo Poderoso.”

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O DISFARCE NO SAGRADO: QUANDO A PRUDÊNCIA VIRA CONTRADIÇÃO ESPIRITUAL

    Por Wilson Garcia O ser humano passa boa parte da vida ocultando partes de si, retraindo suas crenças, controlando gestos e palavras para garantir certa harmonia nos ambientes em que transita. É um disfarce silencioso, muitas vezes inconsciente, movido pela necessidade de aceitação e pertencimento. Desde cedo, aprende-se que mostrar o que se pensa pode gerar conflito, e que a conveniência protege. Assim, as convicções se tornam subterrâneas — não desaparecem, mas se acomodam em zonas de sombra.   A psicologia existencial reconhece nesse movimento um traço universal da condição humana. Jean-Paul Sartre chamou de má-fé essa tentativa de viver sem confrontar a própria verdade, de representar papéis sociais para evitar o desconforto da liberdade (SARTRE, 2007). O indivíduo sabe que mente para si mesmo, mas finge não saber; e, nessa duplicidade, constrói uma persona funcional, embora distante da autenticidade. Carl Gustav Jung, por outro lado, observou que essa “másc...

SOBRE ATALHOS E O CAMINHO NA CONSTRUÇÃO DE UM MUNDO JUSTO E FELIZ... (1)

  NOVA ARTICULISTA: Klycia Fontenele, é professora de jornalismo, escritora e integrante do Coletivo Girassóis, Fortaleza (CE) “Você me pergunta/aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa/já tem seu caminho no ar...”[Caminhos, Raul Seixas]   Quem vive relativamente tranquilo, mas tem o mínimo de sensibilidade, e olha o mundo ao redor para além do seu cercado se compadece diante das profundas desigualdades sociais que maltratam a alma e a carne de muita gente. E, se porventura, também tenha empatia, deseja no íntimo, e até imagina, uma sociedade que destrua a miséria e qualquer outra forma de opressão que macule nossa vida coletiva. Deseja, sonha e tenta construir esta transformação social que revolucionaria o mundo; que revolucionará o mundo!

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

O MEDO SOB A ÓTICA ESPÍRITA

  Imagens da internet Por Marcelo Henrique Por que o Espiritismo destrói o medo em nós? Quem de nós já não sentiu ou sente medo (ou medos)? Medo do escuro; dos mortos; de aranhas ou cobras; de lugares fechados… De perder; de lutar; de chorar; de perder quem se ama… De empobrecer; de não ser amado… De dentista; de sentir dor… Da violência; de ser vítima de crimes… Do vestibular; das provas escolares; de novas oportunidades de trabalho ou emprego…

ALLAN KARDEC, O DRUIDA REENCARNADO

Das reencarnações atribuídas ao Espírito Hipollyte Léon Denizard Rivail, a mais reconhecida é a de ter sido um sacerdote druida chamado Allan Kardec. A prova irrefutável dessa realidade é a adoção desse nome, como pseudônimo, utilizado por Rivail para autenticar as obras espíritas, objeto de suas pesquisas. Os registros acerca dessa encarnação estão na magnífica obra “O Livro dos Espíritos e sua Tradição História e Lendária” do Dr. Canuto de Abreu, obra que não deve faltar na estante do espírita que deseja bem conhecer o Espiritismo.