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KARDEC E OS ESPÍRITAS INCONVENIENTES: DIÁLOGO CONVENIENTE

 


 Por Jorge Luiz

            Allan Kardec, em a Revista Espírita, de março de 1863, valendo-se de dois artigos – A Luta entre o Passado e o Futuro e Falsos Irmãos e Amigos Inábeis, elaborou uma série de comentários acerca do progresso do Espiritismo entre as diatribes dos atos de violência que a doutrina recebia, analisando, ao mesmo tempo, o comportamento dos espíritas no movimento que se iniciava, pelo próprio desconhecimento da Doutrina, os quais ofereciam a esses opositores mais armas que do realmente a defesa que o Espiritismo necessitava. O autor da referida obra abordava principalmente as publicações mediúnicas e as atitudes precipitadas de certos adeptos. Ele, buscando definir esses fatos, justificou-se usando o seguinte provérbio, ao exigir que os espíritas agissem de forma amadurecida: “Mais vale um inimigo confesso do que um amigo inconveniente.” Sabe-se que o sujeito inconveniente é aquele pelo qual não segue os preceitos e comportamentos considerados socialmente (espiriticamente) aceitáveis, desconsiderando os mesmos; descortês, deseducado ou impolido.

            Minuciosamente, Kardec estabelece as diferenças entre os falsos irmãos e os amigos inábeis, entretanto, ele conclui que os resultados são os mesmos: desacreditar a Doutrina.

            Nesses tempos de acontecimentos, deveras inconvenientes no Brasil e que atingem com muito significado o tecido doutrinário e social dos espíritas brasileiros, vem sempre à mente quem realmente hoje seriam esses amigos inconvenientes de Allan Kardec e em que situação esse medíocre resenhista se insere?

            É uma equação muito difícil de resolver, considerando que em cada consciência espírita, por estar se fazendo um trabalho pelo bem da causa espírita - e isso no foro íntimo de cada um é a verdadeira caridade - revestidos de sensatez, sempre amparados pelos mentores espirituais de cada instituição e individualidades, não existem motivos para se mudar de comportamentos. Esquecem-se, contudo, de que ninguém é infalível; nem do lado de lá, nem do lado de cá. Acredita-se que com o presente diálogo cada um realize a autocrítica necessária. Estarei fazendo a minha.

            Nessa explosão de ideias que ora se observam no Movimento Espírita Brasileiro - MEB, é de se ressaltar que havia um embarreiramento de ideias e de pensares doutrinários (alguns se consideram progressistas), pelos quais me arrisco em afirmar, de cunho exclusivamente institucional devido à ignorância doutrinária por grande parte dos adeptos e, principalmente, pela maioria dos dirigentes espíritas (alguns consideram conservadorismo). A tão sonhada unidade de princípios nunca foi desenvolvida. Não há como não se reconhecer isso.

            No afã de se encontrar um resultado lógico, há de se notar, e é fundamental isso, o conhecimento das ideias e da personalidade de Allan Kardec. Vê-se, pois, o quanto ele ainda é desconhecido pelos espíritas brasileiros. O que mais se vê são recortes de Kardec com o propósito de se justificar esse ou aquele posicionamento nessa ruptura doutrinária, prefiro defini-la assim. Não pode, em uma doutrina fundamentada em uma ciência com origem em uma lei da Natureza, a existência do Espírito, que é inerente à espécie humana, repousar ideias tão antagônicas sobre determinados assuntos. Há equívocos (quem sabe, eu?), sendo-se generoso, é o primeiro reconhecimento necessário.

            Os equívocos, entretanto, definem espaços - não são quimeras - pois refletem iniciativas comportamentais em atitudes e sustentações conflituosas do passado que teima e do futuro que anseia. Comentando situação semelhante relacionada aos detratores do Espiritismo, (servem para nós espíritas) Allan Kardec é objetivo ao afirmar que “pensai que estamos num momento de transição, que assistimos à luta entre o passado, que se debate e puxa para trás, e o futuro, que nasce e empurra para frente. Quem vencerá? O passado é velho e caduco – falamos das ideias – enquanto o futuro é jovem e marcha para a conquista do progresso que está nas leis de Deus.”

         Kardec é claro e objetivo em demonstrar que ninguém pode deter a marcha daquilo que tem de avançar. Nessas situações – diz ele – as resistências existentes serão supérfluas perante as tentativas de vencê-las e que elas decorrem mais do amor-próprio ou por interesse do que somente convicção. Ele mais uma vez é pedagógico: “Em tais casos manda a prudência não confiar em sua opinião pessoal. (...) Não tendo em vista senão o bem da causa, o verdadeiro espírita sabe fazer abnegação do amor próprio. Crer em sua infalibilidade, recusar o conselho da maioria e persistir num caminho que se revela mau e comprometedor, não é atitude do verdadeiro espírita. Seria dar prova de orgulho, senão de obsessão.”

            Os pensamentos de Kardec, nesse primeiro momento, já nos guiam a reflexões pessoais significativas para o processo de mudança nas temáticas as quais propõe essa resenha.

            Pairam, no entanto, considerações pertinentes e que não podem, de forma alguma, ser deixadas de lado, principalmente quando envolvem Jesus, o Espiritismo e a dignidade humana – violência, armamentismo, tortura, xenofobia, misoginia, homofobia –, ressoando em posturas individuais e coletivas no MEB. Óbvio que isso não passaria pela cabeça de Kardec à época, mas equívocos dessas ou de outras naturezas certamente, e ele advertiu que “podem, pois os crentes de boa-fé enganar-se e não os incriminarmos por não pensarem como nós. Se, entre as torpezas (...) algumas não passassem de opinião pessoal, nelas não veríamos desvios isolados, lamentáveis; seria, porém, injusto responsabilizar a Doutrina, que as repudia abertamente.”

            Aqui repousa, de forma confortável, a solução para essa barafunda a qual vive o MEB, onde questões sociais profundas em que vive a sociedade brasileira são deixadas de lado pelos espíritas, que se satisfazem com uma assistência social acrítica, reduzindo a vida a aborto, eutanásia, pena de morte e suicídio, fugindo da essência do Espírito, como Ser político, e do Espiritismo, que contempla duas cidadanias universais – física e extrafísica. Kardec, mais uma vez é lúcido em esclarecer esses aspectos, deixando para cada espírita encontrar as suas respostas, ao afirmar que “antes, pois, de fazer cair a censura de tais atos sobre uma doutrina qualquer, seria preciso saber se ela contém alguma máxima, algum ensinamento que possa justificá-los ou mesmo desculpá-los. Se, ao contrário, ela os condena formalmente, é evidente que a falta é inteiramente pessoal e não pode ser imputada à doutrina.”

            A questão é pessoal, sem sombra de dúvida, fruto da falta de politização do espírita, que na realidade é uma característica da maioria de brasileiros. A política, sempre demonizada pelos espíritas, é de fundamental importância para o exercício da cidadania, que para esses espíritas restringe-se unicamente ao exercício do voto nas eleições. Acentuadamente a esse ponto, tem o desconhecimento do próprio Espiritismo.

            Mea-culpa!

            Conhece-se o verdadeiro espírita pelo esforço diuturno de se melhorar, diz Kardec, notadamente isso passa pela compreensão dos princípios espíritas e pela sua aplicabilidade na vida de relação. Busquei e busco sempre isso em minha jornada espírita, mas a fiz e faço sem nunca me afastar do Ser político que a Doutrina Espírita me faculta. Inconveniências nesse desiderato ocorreram sem dúvidas no passado e ocorrem na atualidade, entretanto, o aprofundamento dos estudos espíritas, do pensamento e do espírito do tempo de Rivail e Allan Kardec propiciou-me minimizá-las, dia a dia.

            Continuarei nessa estratégia.

           

 

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