segunda-feira, 6 de junho de 2022

O ETERNO ÓDIO PELO DIFERENTE

 

Por Mário Portela (*)

Foi durante uma exposição de cães. Havia representantes de diversas linhagens, cores e pelagens. Todos estavam belos.

Um Foxhound Inglês, aproveitando a presença de todos, indagou:

- Vocês não acham um absurdo termos que dividir a festa com gatos? Nós somos superiores a eles.

O Spitz Alemão, todo imponente e envaidecido com seu pelo escovado, disse:

- Vamos persegui-los. Gatos jamais serão como cães. Nós somos os mais inteligentes, temos habilidades e servimos fielmente ao homem.

Um Afghan Hound, aparentando nobreza, elegância, forte expressão "oriental" e imponência, pronunciou-se: - É realmente um absurdo! Não devemos tolerar tal insulto.

Nesse momento, fez-se barulho no recinto. Todos os cães estavam dominados pela raiva gratuita contra os gatos. Um Rottweiler babava de tão revoltado. Só pensava em como destruir a espécie “adversária”.

Foi quando, em meio aos latidos e uivos, um cão se pronunciou. Era um vira-lata. Estava ali não para ser exposto, mas para tentar ser adotado. Com ar de serenidade e sofrimento, o cãozinho disse:

- Por que odiamos os gatos? Não são eles serem vivos como nós? Não fazemos parte de um mesmo Criador? Ademais, eles nem concorrem conosco, muito menos fazem parte da nossa cadeia alimentar. Penso que podemos ser fraternos com todos e aprendermos juntos.

Fez-se silêncio no recinto. Aproveitando, o vira-lata bradou:

- Se cultivamos o ódio e a indiferença pelas demais espécies, não somos dignos do posto que desfrutamos por natureza: o de amigo sincero e dedicado.

 ***

A questão da sexualidade permanece como tabu em nossa sociedade. Quando o assunto é sexo, tratamos a questão como algo delicado, e em nossa cultura, coisas delicadas são complicadas para serem analisadas. Por trás dessa ideia desculpista, presa a eufemismos, surge o preconceito, filho dileto de um puritanismo velado e hipócrita alimentado pela mente atrofiada das religiões. Certamente, não é, e nunca será, fugindo da realidade que entenderemos a diversidade de comportamentos ligados ao sexo.

Nossos padrões de entendimento da sexualidade encontram-se ultrapassados e, por conseguinte, não atentem mais à demanda do ser pensante. É preciso, pois, que quebremos os paradigmas religiosos, guiados por dogmas e crenças, e passemos a analisar a questão à luz do entendimento científico, capaz de promover o esclarecimento através do conhecimento intelectual. No passado, os papéis sexuais eram presos, e qualquer pessoa que ousasse a sair do trilho era considerada como portadora de desvios de conduta e pecadora. Isso castrava mentalmente os indivíduos que, invadidos pelo medo, não questionavam seus direitos.

Assim como os cães da crônica, muitas pessoas se acham superiores e donas da verdade pela simples condição de serem heterossexuais e optam por renegar a homossexualidade, alegando que esse seguimento alimenta a devassidão no mundo.

Não se foge à realidade daquilo que se sente na intimidade, no imo do próprio ser. Leis puritanas excluem e maltratam os seres. O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung entendia que “não se pode mudar aquilo que interiormente não se aceitou. A condenação moral não liberta; ela oprime e sufoca. Se eu condeno alguém, não sou seu amigo e não compartilho de seus sofrimentos, sou o seu opressor.”(1)

Jesus nos pede, através de sua postura doce e serena, que amemos uns aos outros assim como Ele nos ama (João 13:34). Ele não espera papéis preestabelecidos, mas sim, que homem e mulheres O revivam por intermédio de experiências íntimas, pouco importando o gênero e/ou identidade sexual, já que o primordial é que sejamos humanos, unidos pela força benfazeja do amor. A sabedoria do evangelho nos convida à renovação diária de consciência, a fim de que desenvolvamos o respeito mútuo.

O primatólogo Frans de Wall, maior referência no campo cientifico na área, narra em sua obra que “a homossexualidade, em vez de ser uma “ preferência”, como alguns conservadores afirmam com segurança, ocorre de modo natural para certos indvíduos; é inerente a quem eles são. Em certas culturas são livres para expressá-la; em outras, precisam ocultá-la. Como não existe povo sem cultura, é impossível saber como se manifestaria a nossa sexualidade na ausência dessas influências sócio-culturais incutidas ao logo dos tempos.” (2)

O comportamento homofóbico de alguns religiosos gera graves feridas sociais, por serem movidos por uma violência gratuita e envoltos em uma enorme crueldade. Gays e lésbicas são de três a sete vezes mais propensos a cometerem suicídio. A cada cinco horas um adolescente homossexual se mata. Para cada adolescente que tira sua vida, há outros vinte que tentam o mesmo. Um dos principais motivos dessa fatalidade é a questão religiosa. Incompreendidos, sentem que não há lugar para eles perto de Deus, porque nós, enquanto pais, amigos, irmãos, líderes espirituais, os afastamos desse Deus criado a nossa imagem e totalmente antagônico ao Pai ensinado por Jesus. O jovem cresce vivendo o conflito com o mundo que o cerca, gerando um sentimento de aversão a si mesmo, criando dentro si um ambiente composto de julgamento e condenações. O medo de serem excluídos do convívio daqueles a quem mais ama os leva à ensandecida atitude de atentar contra a própria vida.

Se existe alguém doente, esse alguém é aquele que vive incapaz de perceber que, mesmo diferentes, podemos ser irmãos, unos. Essa unidade é o que nos conecta ao divino. Respeito é o mínimo que o cristão deve ter, se quiser ser como o Cristo. Infelizmente, há muitos cristãos sem Cristo. Temos muito a aprender com a história de vida dos outros. Mesmo as mais diferentes podem nos dar lições grandiosas.

É preciso compreender que a fé cega nos mantém de mente fechada e que o amor é incapaz de florescer em terreno tão árido. A intolerância e o preconceito têm origem na ignorância. Calcula-se que quase metade das espécies vivas no planeta vai além das conhecidas categorias de macho e fêmea. Homossexuais, assim como heterossexuais e demais orientações, são obra do próprio Deus e filhos de um mesmo Pai.

Podemos comparar a intolerância à diversidade ao preconceito que existia, e ainda vigora, contra as mulheres, os negros, os canhotos, os bruxos e cientistas. Quantos foram mortos, perseguidos e torturados por nossa ignorância? Existem culturas, ainda hoje, que não permitem que as mulheres menstruadas rezem para Deus, pois acreditam que, nessa fase, estão imundas. Esquecem que quem criou a mulher com a condição de menstruar foi Deus. Por ignorância, defendíamos que os negros eram animais sem alma, somente para justificar a nossa pequenez de escravizar e dominar o semelhante. Na ignorância, a Igreja Católica sustentou por mais de mil anos que todo canhoto havia sido criado pelo diabo e que todo e qualquer canhoto era mau e diabólico. Então, o caminho da mão esquerda seria o caminho para o inferno, e com isso pessoas morreram nas fogueiras pelo simples fato de apresentarem um controle motor mais fino com a mão esquerda, indicando um predomínio do hemisfério direito sobre o esquerdo do cérebro.

As pessoas satisfeitas, felizes com elas mesmas e que entendem a mensagem de paz proveniente de Jesus, não são intolerantes, nem preconceituosas. Elas vivem bem e deixam os outros viverem. A proposta renovadora do Messias revela sua força em derrubar todos os preconceitos. Jamais se deixou contaminar pelo preconceito vigente em sua época, soube desfazer os equívocos das normas arcaicas do sinédrio, bem como dos ataques vis dos fariseus e escribas.

Diante do exposto, deixo ao leitor as seguintes interrogações: nossa religião está derrubando preconceitos, ou continua a propagá-los? Como muito bem ponderou o cãozinho vira-lata da crônica: se cultivarmos o ódio e a indiferença pelos demais da espécie, somos dignos do posto de amigo sincero e dedicado do Mestre Jesus?

Ab imo pectore!

 

(*) Nossas boas vindas ao confrade Mário Portela, integrado ao movimento espírita em Recife, Pernambuco, novo colaborador do nosso blog. Mário é psicólogo e pedagogo.

Um comentário: