Pular para o conteúdo principal

ILHA DA FANTASIA

 


Por Mário Portela

Logo nos primeiros anos de nossa vida passamos a ter contato com a fantasia. Através das narrativas e histórias que nos foram contadas, retratando um tipo de mundo imaginário, parte de um universo fictício presente em romances e jogos, divagamos o pensamento por entre campos e castelos. Essa viagem ajudou a construir nosso repertório cultural, que futuramente moldou nossa forma de pensar o mundo e as coisas a nossa volta. Heróis e monstros tinham suas biografias muito bem definidas e sabíamos o que estávamos a temer. Com a inconstância e impermanência dos acontecimentos que norteiam a contemporaneidade, vivemos a fugir da realidade negando os fatos como estratégia de nos proteger das tensões que podem fazer com que percamos a crença em nós mesmos.

Vasculhando os arquivos secretos de minha memória, recordei de um seriado antigo (1978 – 1984), que fez muito sucesso, chamado a Ilha da Fantasia. A história se passava num luxuoso resort, localizado num lugar paradisíaco, em alguma ilha do oceano pacífico. Lá, seus hospedes podiam realizar qualquer fantasia, muito embora nem sempre os resultados fossem o que eles esperavam. Seus protagonistas eram o elegante Sr. Roarke e seu assistente, Tattoo, um anãozinho simpático e curioso. Em um de seus episódios por nome “A fuga / As cinderelas” nos deparamos com duas histórias vividas à época, que poderiam muito bem ser vividas na atualidade. A trama retratava os desejos de duas jovens simples, que sonhavam viver um conto de cinderela. Pelo menos por instantes elas seriam ricas e bem sucedidas. Em seus devaneios, sonhavam com um mundo fantástico, onde o glamour as deixassem em evidencia aos olhares de todos da ilha. Imaginavam que sendo ricas e poderosas, encontrariam realmente a felicidade. A segunda história pertence a um homem. Um mágico escapista muito famoso, porém infeliz por achar que o pai, também mágico, teria mais fama que ele. Sua fantasia era escapar de uma prisão realmente segura. A fuga era seu desejo mais ardente. E assim, o episódio narra duas fantasias que retratam o nosso vazio de significado. Um vazio gerado pela frustação do sentido, a partir do momento que deixamos de decidir por nós mesmos e passamos a satisfazer os caprichos de uma sociedade enferma. Sem um conteúdo profundo para escrevermos nossa própria história carecemos de uma significação.

Assim como as duas personagens da primeira narrativa do episódio, muitos buscam uma vida recheada de facilidade e bem-estar. Em nome de uma corrida desenfreada à procura da felicidade, se deixam levar pela ideologia do consumo e fazem de tudo para chamar a atenção. Como crianças mimadas, mendigam um pouco de afeto e anseiam pela fama e reconhecimento. Os desejos e o vazio de sensação e sentimentos aumentam-lhes a angustia e o pessimismo. Perdidos, ladeiam o abismo da desesperança sobrando-lhes apenas o narcisismo como estratégia do vazio. Toda a identidade é focada na aparência.  Elegem a liberdade como valor, lançando mão de estratégias individualistas. Pensam e vivem somente para si. Sem se dar conta de que todo esse egoísmo engendra sua própria autodestruição. Na história, depois de muito mentir, as personagens se viram encurralas e tristes. Não há como enganar a todos ao mesmo tempo. Um dia a realidade bate a nossa porta e ao pisarmos no solo do destino, sentimos nossos passos afundar. Penso que esse instante, embora doloroso, é um convite ao reencontro do sentido. É preciso que construamos nossa própria história, livre de fantasias e ilusões, pois somente dessa forma, num processo de nos historicizarmos, conseguiremos nos sentir realmente uteis e com uma sensação de pertencimento ao todo. Na narrativa, as duas tiveram chance de encarar os fatos do presente sem medos e sem máscaras e optaram por viver com autenticidade, libertas da obrigatoriedade de uma vida de sucesso, estabelecida por padrões cruéis e desumanos de uma sociedade cada vez mais insana e consumista.

Mas não podemos esquecer-nos da segunda história. A do mágico escapista que desejava a fuga perfeita. Do que realmente ele queria fugir? Será que por trás da fuga, o que realmente ele queria não passava de poder e reconhecimento. Levado a garganta do diabo, uma prisão onde ninguém jamais conseguiu fugir, o personagem foi tratado com um prisioneiro perigoso. Sua fantasia parecia real. Ele sofria os maus tratos comuns a encarcerados. Na ilha da fantasia era assim, todos os seus sonhos seriam realizados realisticamente. Ao chegar a sua cela, o magico encontra um companheiro esperto, que assim como ele, teve um desejo semelhante. Preso há anos e com sede de liberdade o convidou para fugirem juntos. Por egoísmo, o jovem mágico jamais aceitaria tal convite. Queria o reconhecimento sozinho. O poder lhe cegava os olhos moralmente míopes. Depois de inúmeras tentativas infrutíferas, o sonhador se viu desesperado. Seu sonho lhe custou à liberdade, a vida, amores. Pobre homem, condenado a viver para sempre preso ao seu desejo.

Em nosso cotidiano também nos deparamos com situações semelhantes a do mágico e sua sede de poder. A busca por supremacia ocupa lugar fundamental dento de nossos anseios. Toda essa onda de comportamentos tóxicos nos traz um custo. E o custo à sobrevivência está alto. Essa corrida incessante por controle nos conduz para uma liberdade sem compromisso, gerando uma horda de zumbis solitários e presos aos próprios impulsos insanos e descontrolados. Assim como o personagem do seriado, acabamos feridos, presos aos nossos medos, infelizes e impotentes. Mas se a vida imita a arte, podemos aprender com o personagem em questão. Já triste e sem esperança ele se recorda da proposta de fuga no antigo companheiro de cela e juntos combinam uma estratégia de fuga. Unidos são mais fortes e novas potencialidades nascem do auxílio mutuo. Parceiros de propósitos, ambos conseguem fugir da garganta do diabo. Assim somos nós, caríssimo leitor, quando percebemos que somos a extensão do outro e nos sentirmos corresponsáveis pelo avanço do mundo, encontraremos soluções e alivio para nossas angústias e medos.

É preciso desbancar a fantasia e estreitarmos os laços que nos ligam à realidade e encararmos as experiências que a vida nos traz. Não haverá crescimento sem que o gérmen que fortalece a ilusão seja destruído. Que adianta ganhar o mundo inteiro e perder a própria vida? (Mateus 16.25-26). Realidade tem a ver com a interpretação consciente dos fatos, onde nos tornamos verdadeiros sujeitos da nossa história. Na série o Sr. Roarke se despedia dos hóspedes sempre perguntando sobre o que eles tinham achado da experiência. No episódio em questão, os personagens perceberam que sonhos construídos em alicerces pantanosos e poderio edificado sobre comportamentos egoícos somente os manteriam aprisionados em suas fantasias particulares e solitárias. E você, amigo leitor? Em que tipo de ilha deseja estar?

 

Ab imo pectore!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

A PIOR PROVA: RIQUEZA OU POBREZA?

  Por Ana Cláudia Laurindo Será a riqueza uma prova terrível? A maioria dos espíritas responderá que sim e ainda encontrará no Evangelho Segundo o Espiritismo a sustentação necessária para esta afirmação. Eis a necessidade de evoluir pensamentos e reflexões.

UM POUCO DE CHICO XAVIER POR SUELY CALDAS SCHUBERT - PARTE II

  6. Sobre o livro Testemunhos de Chico Xavier, quando e como a senhora contou para ele do que estava escrevendo sobre as cartas?   Quando em 1980, eu lancei o meu livro Obsessão/Desobsessão, pela FEB, o presidente era Francisco Thiesen, e nós ficamos muito amigos. Como a FEB aprovou o meu primeiro livro, Thiesen teve a ideia de me convidar para escrever os comentários da correspondência do Chico. O Thiesen me convidou para ir à FEB para me apresentar uma proposta. Era uma pequena reunião, na qual estavam presentes, além dele, o Juvanir de Souza e o Zeus Wantuil. Fiquei ciente que me convidavam para escrever um livro com os comentários da correspondência entre Chico Xavier e o então presidente da FEB, Wantuil de Freitas 5, desencarnado há bem tempo, pai do Zeus Wantuil, que ali estava presente. Zeus, cuidadosamente, catalogou aquelas cartas e conseguiu fazer delas um conjunto bem completo no formato de uma apostila, que, então, me entregaram.

"FOGO FÁTUO" E "DUPLO ETÉRICO" - O QUE É ISSO?

  Um amigo indagou-me o que era “fogo fátuo” e “duplo etérico”. Respondi-lhe que uma das opiniões que se defende sobre o “fogo fátuo”, acena para a emanação “ectoplásmica” de um cadáver que, à noite ou no escuro, é visível, pela luminosidade provocada com a queima do fósforo “ectoplásmico” em presença do oxigênio atmosférico. Essa tese tenta demonstrar que um “cadáver” de um animal pode liberar “ectoplasma”. Outra explicação encontramos no dicionarista laico, definindo o “fogo fátuo” como uma fosforescência produzida por emanações de gases dos cadáveres em putrefação[1], ou uma labareda tênue e fugidia produzida pela combustão espontânea do metano e de outros gases inflamáveis que se evola dos pântanos e dos lugares onde se encontram matérias animais em decomposição. Ou, ainda, a inflamação espontânea do gás dos pântanos (fosfina), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

O CORDEIRO SILENCIADO: AS TEOLOGIAS QUE ABENÇOARAM O MASSACRE DO ALEMÃO.

  Imagem capa da obra Fe e Fuzíl de Bruno Manso   Por Jorge Luiz O Choque da Contradição As comunidades do Complexo do Alemão e Penha, no Estado do Rio de Janeiro, presenciaram uma megaoperação, como define o Governador Cláudio Castro, iniciada na madrugada de 28/10, contra o Comando Vermelho. A ação, que contou com 2.500 homens da polícia militar e civil, culminou com 117 mortos, considerados suspeitos, e 4 policiais. Na manhã seguinte, 29/10, os moradores adentraram a zona de mata e começaram a recolher os corpos abandonados pelas polícias, reunindo-os na Praça São Lucas, na Penha, no centro da comunidade. Cenas dantescas se seguiram, com relatos de corpos sem cabeça e desfigurados.

ESPÍRITISMO E CRISTIANISMO (*)

    Por Américo Nunes Domingos Filho De vez em quando, surgem algumas publicações sem entendimento com a codificação espírita, clamando que a Doutrina Espírita nada tem a ver com o Cristianismo. Quando esse pensamento emerge de grupos religiosos dogmáticos e intolerantes, até entendemos; contudo, chama mais a atenção quando a fonte original se intitula espiritista. Interessante afirmar, principalmente, para os versados nos textos de “O Novo Testamento” que o Cristo não faz acepção de pessoas, não lhe importando o movimento religioso que o segue, mas, sim, o fato de que onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome ele estará no meio deles (Mateus XVIII:20). Portanto, o que caracteriza ser cristão é o lance de alguém estar junto de outrem, todos sintonizados com Jesus e, principalmente, praticando seus ensinamentos. A caridade legítima foi exemplificada pelo Cristo, fazendo do amor ao semelhante um impositivo maior para que a centelha divina em nós, o chamado “Reino de...

“BANDIDO MORTO” É CRIME A MAIS

  Imagens da internet    Por Jorge Luiz   A sombra que há em mim          O Espírito Joanna de Ângelis, estudando o Espírito encarnado à luz da psicologia junguiana, considera que a sociedade moderna atinge sua culminância na desídia do homem consigo mesmo, que se enfraquece tanto pelos excessos quanto pelos desejos absurdos. Ao se curvar à sombra da insensatez, o indivíduo negligencia a ética, que é o alicerce da paz. O resultado é a anarquia destrutiva, uma tirania do desconcerto que visa apagar as memórias morais do passado. Os líderes desse movimento são vultos imaturos e alucinados, movidos por oportunismo e avidez.

O ESTUDO DA GLÂNDULA PINEAL NA OBRA MEDIÙNICA DE ANDRÉ LUIZ¹

Alvo de especulações filosóficas e considerada um “órgão sem função” pela Medicina até a década de 1960, a glândula pineal está presente – e com grande riqueza de detalhes – em seis dos treze livros da coleção A Vida no Mundo Espiritual(1), ditada pelo Espírito André Luiz e psicografada por Francisco Cândido Xavier. Dentre os livros, destaque para a obra Missionários da Luz, lançado em 1945, e que traz 16 páginas com informações sobre a glândula pineal que possibilitam correlações com o conhecimento científico, inclusive antecipando algumas descobertas do meio acadêmico. Tal conteúdo mereceu atenção dos pesquisadores Giancarlo Lucchetti, Jorge Cecílio Daher Júnior, Décio Iandoli Júnior, Juliane P. B. Gonçalves e Alessandra L. G. Lucchetti, autores do artigo científico Historical and cultural aspects of the pineal gland: comparison between the theories provided by Spiritism in the 1940s and the current scientific evidence (tradução: “Aspectos históricos e culturais da glândula ...